publicado em 18 de julho de 2013 às 14:16
Wanderley Guilherme: Reforma política apressada por trazer retrocessopor Wanderley Guilherme dos Santos, em O Cafezinho, via Tijolaço
Vestais da esquerda saíram do armário com suas túnicas udenistas e se
abraçam à direita no ataque a algumas das instituições democráticas
vigentes. Sempre estiveram juntas nesse assalto, parceria obscurecida
pela discordância entre elas sobre políticas sociais.
O coração reacionário dessa cumplicidade pulsa na aceitação de que os
políticos que consideram desmoralizados e sem credibilidade são
exatamente os mesmos, esses que estão aí, aos quais entregam a
responsabilidade para elaborar uma proposta de reforma em que todos os
itens sugeridos, até agora, castram avanços pretéritos da sociedade.
Propostas de substituição do sistema proporcional são comuns à
direita e à esquerda desde a publicação da Constituição de 88. Voto
majoritário puro ou misto e voto em lista, para não mencionar a abolição
do voto obrigatório, são variantes nascidas no coração do reacionarismo
nacional, em São Paulo, e em parte adotado pelo Partido dos
Trabalhadores e até por centrais sindicais. Estas, contagiadas pela
vizinhança dos Jardins, retratavam Getúlio Vargas como um caudilho
maligno e nunca perceberam, por exemplo, que o imposto sindical
garantiu, fundamentalmente, o financiamento privado da participação política dos trabalhadores.
Privado, isto é, por eles mesmos. Hoje defendem o financiamento
público das campanhas alheias e recusam o financiamento privado,
restrito a pessoas físicas e com limite de contribuição, enquanto os
conservadores especulam com a possibilidade de que contribuições de
qualquer natureza só possam ser concedidas a partidos, administradas por
seus dirigentes, não a candidatos individuais.
Eis as fantásticas rupturas democratizantes alegremente saudadas pelas babás
(leia-se “analistas”) dos filhotes dos filhotes da ditadura. Nunca a
esquerda nocauteada admitiu tão completamente a sedução ideológica da
direita contra o poder do voto popular. Pedir de nariz arrebitado um
plebiscito para aprovar opções elaboradas pela direita é apenas
desolador.
Em meio ao assédio do casal de vestais da esquerda e garanhões da
direita tem sido fácil aprovar medidas que não passam de engodo ou
representam tiros demagógicos que fragilizam a Constituição diante de
futuras rajadas reacionárias. Dois exemplos recentes: a redução para um
do número de suplentes de senadores e a do número de assinaturas para
legislação de iniciativa popular.
Com a mímica da redução do número de suplentes de senadores, a
proposta recém aprovada no Senado simplesmente restabelece o comando
autorizado pelo parágrafo quarto do artigo 60 da Constituição de 1946,
fixando em um o número de suplentes, e que valeu até que a emenda
ditatorial de 17 de outubro de 1969, em seu parágrafo terceiro do artigo
41 da Constituição de 69, aumentasse para dois esse número.
A Constituição democrática de 88 incorporou e consagrou no parágrafo
terceiro de seu artigo 46 esse detrito ditatorial. Pretender avançar
retornando a um texto pré-ditadura equivale a contrabandear gato por
lebre.
No minueto do impedimento da candidatura de parentes para a vaga de
suplentes de senadores, a emenda dita progressista aprovada retrocede
outra vez à Constituição de 46, que já os tornava inelegíveis no item c)
da alínea I de seu artigo 140.
Enorme gato enfatuado, esses arrufos de vanguarda deixam escapar,
pimpona, a verdadeira ratazana, sócia atleta do sindicato dos
corruptores ou da oligarquia familiar – a instituição genérica da
suplência senatorial, em si mesma, a qual deveria ser simplesmente
abolida.
Há pior. A Constituição de 88 prevê, além de plebiscitos e
referendos, a tramitação de legislação de iniciativa popular, desde que
apoiada por um por cento do eleitorado nacional (em torno de 1 milhão e
trezentos mil subscritores). Os senadores Rodrigo Rollemberg (PSB-DF) e
Lindberg Farias (PT-RJ), respectivamente autor e relator da PEC 3/2011,
aprovaram, em 10/7/13, redução da exigência para 0,5% do eleitorado, com
aceitação de subscrição digital, ou seja, cerca de 650 mil
feicebuquistas.
À época da Constituinte de 86, o fenômeno das redes sociais era
inexistente e, portanto, nem se prenunciava o perfil que, aliás, ainda
está por ser inteiramente delineado. O eleitorado de então, em torno de
94 milhões e meio, correspondia a menos 48% dos 140 milhões e 400 mil
eleitores atuais. Era mais do que hospitaleiro o requisito de subscrição
de 1% daquele eleitorado para dar andamento a propostas legislativas,
sem torná-las inviáveis ou criar ameaças potenciais ao trabalho normal
do Congresso.
Mas o aumento homeopático no número absoluto de apoiadores, pela lei
que aprovaram, não protege a vulnerabilidade a que ficam expostos os
quase cento e cinqüenta milhões de eleitores que não opinarem, expulsos
da irrisória porcentagem de 0,5% de ativistas agraciados com a difusão
de molotovs legais, propiciada pelos dois senadores e os que os
seguiram, a saber, pouco acima da metade da Casa, 55 votos a favor.
O crescimento do eleitorado impõe como salvaguarda das maiorias –
atenção, salvaguarda das maiorias – o aumento no porcentual de
apoiadores para justificar o curso obrigatório de iniciativas populares.
Hoje, com a revolução nas mídias sociais e a capacidade de mobilização
de minorias ideologicamente organizadas, a possibilidade de fustigar o
ordenamento legislativo do país é mais do que óbvia.
Estão aí os “anônimos”. Sem mencionar tentativas de congestionar
Congressos legítimos com dezenas e dezenas de iniciativas “populares”
coordenadas por grupos fascistas. Aumentar seu potencial de dano a
custos baratos é atentado constitucional que febre momentânea ou
aventureirismo crônico explicam. Inaceitável é a adesão ou silêncio
cúmplice dos analistas modernos e de vanguarda, babás dos netos da
ditadura.
Ademais, ficam à mercê os brasileiros não eleitores e, cassação
elitista de direitos, os excluídos do mundo eletrônico, entre eles os
analfabetos digitais ou sem mesada gorda. Pois os facebuquistas não irão
procurar os analfabetos sem renda ou aparelhos eletrônicos para obter a
adesão deles. Nem saberão que há iniciativas de legislação popular com
adesão digital. Sutil discriminação tecnológica.
Estabelecido por decreto ditatorial, o voto ao analfabeto foi
concedido ao final do governo Figueiredo, com a restrição de que, embora
votantes, não podiam ser votados. A Constituição de 88 incorporou essa
meia cidadania, estabelecendo, no parágrafo terceiro de seu artigo 14,
que “são inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos”.
Agora, os senadores de esquerda estabeleceram que os netos da
ditadura pilotando tabletes terão oportunidades desiguais de aderir a
iniciativas populares.
À noite do modernismo digital, todos os gatos passam por lebres.
(Publicado originalmente no Viomundo)
Nenhum comentário:
Postar um comentário