publicado em 9 de fevereiro de 2015 às 11:42
09/02/2015 08:01
O PT e o mar
por Marcelo Manzano*, no Brasil Debate
Assim como os ataques dos tubarões estraçalharam o peixe de Santiago,
o pescador protagonista do livro “O velho e o mar”, de E. Hemingway, o
exercício do poder produziu estragos irreparáveis sobre o corpo e a alma
do PT. Mas será que ele caminha para o seu fim?
Desde que Lula assumiu o mais alto cargo político do Brasil em 2003,
são incontáveis as manifestações anunciando o fim do Partido dos
Trabalhadores. O primeiro ato dessa procissão talvez tenha sido
protagonizado pela turma que migrou para o PSOL.
O saudoso Plínio de Arruda Sampaio, em “entrevista explosiva” à
revista Caros Amigos de maio de 2005, já tratava de jogar luz sobre a
“crise terminal” do PT. De lá para cá, a despeito de o PT ter realizado
uma transformação social sem precedentes no País e ter conseguido vencer
mais três eleições seguidas para a Presidência, a obsessão com o fim do
PT só faz crescer.
E tem pra todo gosto. Da extrema esquerda ao Instituto Millenium, de
petistas históricos a jejunos, de sindicalistas a ilustres acadêmicos,
fervilham palpites e maus agouros a respeito do tempo de vida do
partido.
Entre os argumentos, o mais frequente, espécie de denominador comum
entre todos os críticos – inclusive dentro do partido – é o de que “o PT
já não é mais aquele”. Já não teria o vigor nem a ousadia que tão bem
empunhou na campanha das Diretas, no inesquecível processo eleitoral de
1989, na defesa intransigente de utopias de um difuso socialismo
democrático.
Será? De fato, o desgaste que o PT vem sofrendo lhe tira o lustro e
traz dúvidas quanto à sua capacidade de continuar avançando como
partido. Talvez tenha cometido erros que transformem a sigla em um fardo
excessivamente pesado para se carregar nos próximos pleitos eleitorais.
O tempo dirá.
Entretanto, é preciso tomar cuidado e separar a análise da
viabilidade política da sigla nas próximas eleições da análise do
significado da experiência do PT como vetor de um projeto de esquerda
para o País.
Tal qual o velho pescador Santiago, protagonista do livro “O velho e o
mar” de E. Hemingway, o PT se aventurou pelo mar bravo do sistema
eleitoral brasileiro e, em busca de realizar seu sonho de longa data – a
construção de um país mais justo, soberano e igualitário – fisgou o seu
Marlin-azul: a Presidência do País.
Peixe grande, canoa pequena, a viagem desde então se transformou em
intensa luta pela sobrevivência e trouxe à tona as ameaças inescapáveis
que recaem sobre aqueles que ambicionam avançar para além da linha do
horizonte. Assim como os ataques dos tubarões estraçalharam o peixe do
valente Santiago, o exercício do poder produziu estragos irreparáveis
sobre o corpo e a alma do PT.
Mas, quando finalmente é avistado da costa, o peixe está lá,
estampado na canoa do velho: na forma de um esqueleto enorme, a lição de
que parte do sonho era inalcançável, mas também que o cerne de osso,
esticado de uma extremidade à outra, é a peça de resistência que dá
sentido à luta.
O PT errou, muito – como, aliás, erraram todos os outros partidos de
esquerda ao redor desse mundão capitalista em que estamos metidos. Mas
errou não porque abriu mão dos sonhos de outrora. Errou principalmente
por ter acreditado ser possível, a um só tempo, jogar o jogo sujo do
sistema eleitoral brasileiro, enfrentar os interesses rentistas que há
tantas décadas nos governam e garantir os avanços das instituições
republicanas que emergiram com a Constituição de 1988. A equação não
fecha.
Contudo, a despeito de ter sido seriamente avariado no percurso, há
motivos para dizer que o PT de hoje, talvez apenas uma carcaça do
vigoroso partido dos anos oitenta, é melhor do que aquele.
O PT sabe hoje que não se constrói um país com arroubos
voluntaristas, com uma cesta de boas causas, com um catado de princípios
valorosos. O PT – e parte importante da esquerda brasileira – aprendeu
na marra que não se consegue avançar em um país capitalista da periferia
se não houver um Estado que seja o protagonista do desenvolvimento
econômico, isto é, que lidere a acumulação capitalista e, ao mesmo
tempo, imponha limites aos interesses privatistas.
Aliás, vale recordar, o PT dos oitenta, das “Diretas Já”, da
encantadora melodia do “Lula-lá”, dava de ombros para o tema do
“desenvolvimento” – olhava torto, por exemplo, para debates sobre os
rumos da nossa indústria, desconfiava dos empréstimos subsidiados do
BNDES ao capital e acendia velas para a austeridade fiscal.
Com a estrela na testa, restringia-se à defesa valorosa dos direitos
dos trabalhadores, dos sem terra, das minorias e dos desvalidos. Aquele
PT foi, sim, fundamental no processo constituinte e na sua longa jornada
regulatória: mas às bandeiras meritórias de então foi acrescido o
cerne, o eixo estruturante que até 2003 passava ao largo do ideário
petista.
Hoje, graças ao choque de realidade de ser governo, tanto o PT quanto
a esquerda brasileira estão em outro patamar. Graças às contradições
enfrentadas pelos governos de Lula e Dilma, sabe-se, por exemplo, como a
defesa dos empregos e dos salários, exige uma musculatura do Estado e
de outras instituições públicas que vai muito além da intransigente
defesa dos direitos da pessoa humana ou da inocente prática do orçamento
participativo.
Dizem os críticos – externos e internos – que o PT, na medida em que
galgou a hierarquia política do País, permitiu-se enrijecer; que seus
quadros se encantaram com os vícios do poder e da grana; enfim, que o
projeto de transformação social do País foi reduzido a um projeto de
poder.
Sim, em parte isso de fato aconteceu – o que não é novidade alguma em
se tratando de seres humanos, sejam eles franceses, japoneses ou
menonitas. Mas é verdade também que muito se fez para avançar no sentido
do pleno emprego e da melhora sistemática da renda dos assalariados e
dos mais pobres. Isso foi conquistado – e não é pouco: basta olhar ao
redor do planeta.
Em última instância, portanto, esse é o esqueleto que mantivemos
preso ao barco, e é ele que nos permite perceber, por um lado, o quão
pouco sabíamos antes de nos lançarmos ao mar e, por outro, o quanto
tivemos que enfrentar para conquistar avanços civilizatórios
fundamentais para o povo deste País.
*É economista, Pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e
de Economia do Trabalho e Professor de Economia da Faculdades de
Campinas – Facamp
(Publicado originalmente no site Viomundo)
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