Daniel Pereira
Andrade, Sociólogo e professor do Departamento de Fundamentos Sociais e
Jurídicos da Administração (FSJ) da EAESP-FGV
“Como el de otras pasiones, el origen de un odio siempre es oscuro”.
A observação de Jorge Luis Borges nos conduz a refletir com mais
cuidado sobre as causas da forte emoção que tem mobilizado uma parcela
considerável da classe média brasileira. Se hoje essa energia psíquica
está investida nas manifestações contra a corrupção, o fato é que sua
aparição se deu ainda antes do caso da Petrobrás, datando ao menos dos
protestos de junho de 2013 e sendo reeditada com crescente fulgor no
período pré-eleitoral. Sua origem não está, assim, ligada diretamente
aos escândalos atuais, sendo mais provável que tenha sido gestada no
dia-a-dia das pessoas. É na transformação da mais cotidiana das
atividades, o trabalho, que podemos encontrar o solo fértil onde germina
esse sentimento.
Nos últimos anos, não foram poucas as ocasiões em que ouvi queixas
sobre a piora das condições de trabalho. Não se tratava das reclamações
habituais, mas de mudanças substantivas em profissões tradicionais como
engenheiros, professores, advogados, profissionais da saúde,
administradores e jornalistas. Muitos foram sujeitos ao fenômeno da
“pejotização”, ou seja, à contratação de serviços prestados por pessoas
físicas, mas efetivados legalmente sob a forma de pessoa jurídica (PJ),
de modo a disfarçar relações de emprego e burlar direitos trabalhistas.
Outros foram empregados temporariamente, com baixos salários, e, a
despeito de grande esforço, não conseguiram ser efetivados, sendo ou
dispensados ou subcontratados como terceirizados. A informalidade também
não foi rara. Serviços permanentes ou “bicos” foram formas alternativas
para obter ou melhorar os orçamentos.
A fragilização dos vínculos trabalhistas se converteu assim em uma
ameaça permanentemente de demissão, mesmo que os índices de desemprego
estejam baixos. Esse temor é amplificado por estratégias de gestão que
colocam os profissionais em concorrência, numa espécie de seleção
contínua. Métodos como o “20-70-10”, em que os 20% que melhor
desempenham recebem aumentos substantivos, enquanto 70% permanecem
estáveis e os piores 10% são demitidos submetem as pessoas a um jogo de
eliminação similar aos reality shows. Nesse contexto, não há como
as relações de trabalho se manterem boas. Se o sucesso de meu colega
representa o risco da minha demissão, não posso ficar feliz por ele,
devo antes me preocupar comigo. Trata-se de uma máquina de maus
sentimentos recíprocos, em que a agressividade, o medo, a angústia, a
inveja e o ressentimento são os motores da produtividade. Se houver
dúvida quanto ao exagero da afirmação, sugiro o teste que Hobbes
propunha aos seus leitores: que cada um examine as suas próprias emoções
– no caso em questão, durante um dia de trabalho.
O resultado dessa experiência cotidiana de parcela da classe média é
uma concepção do mundo como uma luta de todos contra todos no livre
mercado, pressupondo acriticamente a igualdade de condições no ponto de
partida. A crença cega na meritocracia faz com que toda falha na
recompensa aos esforços individuais seja sentida como uma injustiça
pessoal pela qual alguém deve ser culpado, e não como uma arbitrariedade
cada vez mais comum em uma economia baseada na flexibilidade e na
precarização. Qualquer discurso que fuja a esta crua racionalidade
econômica e problematize a origem da injustiça social é repudiado como
uma forma de burlar a disputa, não havendo lugar para a compaixão.
A consequência desse ethos competitivo é o repúdio de toda
política de redistribuição de renda. Os beneficiários das políticas
sociais são vistos como usurpadores ilegítimos dos impostos e os
partidos que as promovem são acusados de interferência indevida na
disputa, rompendo com a “meritocracia” e tornando-se duplamente
corruptos. A desaceleração do crescimento econômico intensifica o
descontentamento, pois um cenário recessivo amplia o risco de demissão e
acirra a concorrência.
Boa parte da classe média tende assim a direcionar a agressividade
que vive cotidianamente no trabalho, resultante dos modernos métodos de
gestão, contra o governo e os trabalhadores pobres emergentes. Ainda
mais quando a ascensão social pode representar o aumento de competidores
qualificados dispostos a receber menores salários, resultado da
ampliação do ensino superior. Pode também representar maior custo dos
serviços, cujo consumo caracteriza a classe média, diferenciando-a até
então da trabalhadora. A “classe C” não apenas se tornou também
consumidora de serviços, reduzindo a exclusividade distintiva de classe,
como ainda obteve a formalização de seus empregos e o aumento do
salário mínimo, deixando os serviços braçais mais caros.
A competição, agora de classes e política, é encarada por parcela da
classe média como uma luta darwiniana pela sobrevivência. Ainda mais
quando o que está em jogo é quem vai pagar a conta da crise econômica.
Assim como no trabalho, o inimigo deve ser eliminado ou colocado no seu
lugar subalterno. O impeachment ou, mais radicalmente, a intervenção
militar surgem assim como alternativas à derrota nas urnas,
desqualificando os votos daqueles que recebem auxílios sociais. Mas
resta a questão fundamental: mudar o partido no governo vai desfazer
esse mal-estar cotidiano? Quem, afinal, ganha com a precarização do
trabalho e com o aumento da competição? Certamente não são os pobres,
que compartilham da mesma angústia. E não está claro que seja
diretamente um partido político. Por isso, além do governo, cabe
politizar também a gestão.
(Publicado originalmente no Estadão, 13 de maio de 2015)
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