Ronilso Pacheco
NOSSA POLÍTICA ENTROU num grau de disputa e esquizofrenia tão complexo que o fato de um ministro de Estado pedir demissão de seu cargo por ser pressionado por um superior se transformou num fato heróico. Não tornara-se apenas heróico, ele também se mostrou mais eficiente que a força de tantos protestos e demonstração de insatisfação com o governo. Pensemos nas críticas e protestos sucessivos recebido pelo governo Temer desde sua posse. Pense em quantos “Fora, Temer!” você ouviu. Quantas críticas à maneira como tudo isso se deu. Pense quantas pessoas que engrossaram a quantidade de figuras com camisa da seleção brasileira pedindo a saída da ex-presidenta Dilma nunca mais voltaram às ruas, ou por endosso ao atual governo, ou envergonhadas.
Nada disso parou o governo Temer e sua forma de conduzir a política. Mas eis que um homem forte do governo resolve renunciar, acuado, vendo seu poder e influência sendo incapazes de reverter as evidências de corrupção e abuso de poder e, muito de repente, o próprio presidente Temer pode ficar na berlinda de tal maneira que não ficara em nenhum momento até agora desde que assumiu.
Em grande parte, o que temos mesmo é o resultado do nosso cinismo.Marcelo Calero é mais um daqueles casos em que qualquer migalha de coragem ou aparência de ousadia honesta preenche a carência popular.
Calero estava no time porque compunha o time.
É fato que a decisão de Calero foi determinante para desequilibrar e embaralhar o tabuleiro do jogo político em Brasília. Tudo parece estar absolutamente indefinido. Ao que parece, um poder desequilibrado não se equilibra imediatamente de novo, e as peças do jogo não são repostas no lugar automaticamente. Calero estava no time porque compunha o time. Temer jamais colocaria alguém fora de seu raio de confiança, e Calero cumpriu bem essa missão.
Apoiou todas as decisões de Temer, foi contrário aos movimentos de resistência pela permanência do Ministério da Cultura e agiu com omissão (escondendo uma adesão) quando foram executadas as ações de reintegração de posse nos movimentos de ocupação no Rio de Janeiro e em São Paulo. Marcelo Calero que criticou de maneira veemente a equipe do filme Aquarius, pelas críticas que fizeram ao novo governo e terem se referido ao mesmo como um governo que se valeu de um golpe para chegar ao poder.
Sim, podemos ser gratos a Calero, não tenhamos dúvida. Mas antes do elogio festivo à sua “honestidade”, é importante considerar que sua “honestidade” não foi acionada enquanto Michel Temer montava seu horroroso ministério branco-hetero-machista, com as figuras mais truculentas da política brasileira. A honestidade de Calero nunca o colocou em rota de colisão com a gestão do PMDB no Rio de Janeiro, estando à frente da organização das comemorações dos 450 anos da cidade, sem qualquer desaprovação ou crítica (coerente com quem se diz escandalizado com a maneira como o mundo político funciona) às diversas repressões exercidas na cidade, ao longo de 2014 e 2015, como aquelas contra as manifestações contra o fim de importantes linhas de ônibus, que prejudicou tantos moradores das zonas Norte e Oeste da cidade.
Podemos ser gratos a Calero, mas parece que ele teve muito mais o seu ego ferido do que a consciência afrontada. Se um poder desequilibrado não se equilibra novamente de maneira rápida e imediata, as fissuras e brechas do governo Temer ainda estão muito expostas. Ao mesmo tempo em que o poder tenta se rearticular, após o impeachment, ele vai também criando as suas disputas internas, as demonstrações de forças entre nomeados, indicados, aliados e protegidos. Geddel se achou forte o bastante, influente o bastante, mas não contou com dimensão da ambição de um político tão jovem. Se esperava um Calero submisso e acuado, o que teve foi um Calero ambicioso e ousado o bastante para enfrentá-lo ao se sentir pressionado.
O Calero que sai denunciando Geddel é também o Calero que criou uma ideia “genial” e que, no seu entendimento, urgentemente necessária para o Rio de Janeiro, seu estado: separar o estado do Rio de Janeiro do estado da Guanabara. Empenhado nisso, Calero idealizou “O Rio decide”, uma plataforma que serve para estimular um plesbiscito em que a população do Rio iria escolher se deseja ter o “Rio para os cariocas”. A ambição de Calero pode ter sido fator determinante para que ele enfrentasse Geddel, mais do que seu compromisso com a ética e a não concordância com os trâmites naturalizados na política brasileira.
Parece que o governo Temer só é de fato ameaçado pela sua capacidade de se auto sabotar com o quadro político que tem. Se ganha de um lado, com as velhas articulações em benefício próprio, com a distribuição pesada de cargos, acordos e privilégios, o governo perde diante da forte disputa interna e a fortíssima rejeição ao governo, de outro.
Temer vai ficando cada vez mais desgastado com as trocas sucessivas de ministros, o avanço de fechamento de cerco da Lava-jato e as seqüência de denúncias que constantemente estão esbarrando em nomes do governo.
Se, por um lado, a força das ruas parece ser ignorada com o avanço do governo que resiste em recuar de propostas impopulares e de necessidades duvidosas como a PEC 55 e a reforma do ensino médio, por outro, a sociedade se satisfaz com as ações solitárias de heróis cínicos, que também estão inseridos na disputa, mas que, às vezes, pela força da disputa, eliminam uns aos outros, publicizando suas ações. E a conclusão triste desta história é que, ao que parece, apenas eles são capazes de derrubar a si mesmos.
(Publicado originalmente no Intercept Brasil)
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