terça-feira, 19 de novembro de 2024
Le Monde Diplomatique: Os medos e os desejos de Kafka
Inédita em tradução direta para o português brasileiro, na “carta do medo e do desejo”, escrita em janeiro de 1920 para Milena Jesenská, Kafka procura explicar a tensão singular entre esses dois polos, que determinaram sua vida e sua escrita
Leonardo Petersen Lamha
19 de fevereiro de 2024
Começa a enfraquecer o barulho da “descoberta” de que Kafka teria frequentado bordeis e assinado revistas pornográficas, que logo descambou para a surpresa de que o autor seria “atormentado pelo desejo sexual”, algo pouco digno do ascetismo e da santidade associados à sua figura.
Santo é como a primeira noiva, Felice Bauer, designa o autor ao concluir a releitura das mais de mil páginas de cartas que recebeu de Franz antes de vendê-las para o editor Schocken, na década de 50, que as publicaria sob o título Cartas a Felice. Milena Jesenská, a jornalista e tradutora tcheca, cuja relação também predominantemente epistolar, por sua vez, nos legou as Cartas a Milena, faz eco a isso em carta a Max Brod de agosto de 1920: “Franz não é alguém que constrói seu ascetismo como meio para um fim, mas alguém que, com sua lucidez terrível, sua pureza e sua incapacidade de compromisso, é forçado ao ascetismo”.
O escritor Franz Kafka (Wikimedia Commons)
Contudo, para nós, distantes do começo do século XX, talvez seja melhor ler o ascetismo ou seu oposto não como fato ou sentença a respeito de Franz, mas como efeito que a leitura de suas cartas produz em seus leitores, seja Felice, Milena ou nós. Pois, se a polêmica se quer calcada em informação biográfica, retirada do biógrafo Reiner Stach, de que de Kafka, como de qualquer homem de seu tempo, era esperado a visita a bordeis na juventude, o mesmo Stach admite que:
“[o trabalho do biógrafo] é reconstrução, e seu material não são os fatos, como o leitor gostaria de acreditar, e sim os vestígios que esses fatos deixaram na linguagem […] Ele descobre que o lado espontâneo, físico, orgânico da vida, ou seja, aquilo que se tentou capturar como a vida por excelência, tem a tendência de suplantar a escrita. Caso não queira se tornar um roteirista, esse é um paradoxo que o biógrafo precisa fazer chegar ao leitor, sem desembaraçá-lo.”
Não fatos, mas paradoxos e vestígios são tudo o que temos. Quem pleiteia acesso às pulsões kafkianas e seus destinos precisa se contentar com seus escritos e com escritos de terceiros: cartas, diários, pesquisadores, correspondentes, cujos últimos vestígios são palavras. Além disso, se alguma coisa, Kafka era “epístolo-sexual”, como tuitou alguém. Se, em vida, sua atividade sexual esteve fundamentalmente ligada à escrita, em especial à escrita íntima, quem dirá cem anos após sua morte? Sem contar que, em Kafka, o ato de observar-se a si mesmo, posto em prática nas cartas e nos diários, é também um ato de criação, também inseparável da escrita enquanto atividade criativa. Como ele adverte Milena em relação à Carta ao Pai, trata-se sempre, tanto quanto mais íntimos, de “escritos por demais visando um objetivo determinado.” Objetivos, portanto, retóricos e estéticos.
Mas há uma carta especial, a que se costuma recorrer quem busca algum testamento sexual kafkiano: a “carta do medo e do desejo”, escrita entre os dias 8 e 9 de janeiro de 1920 para Milena Jesenská, em que Kafka procura explicar a tensão singular entre esses dois polos, que determinaram sua vida e sua escrita.
Após meses de distância, Kafka e Milena se encontram no começo de julho de 1920, em Viena. As cartas seguintes registram o encantamento e a intoxicação resultantes da “súbita aproximação física” entre os dois. O segundo encontro aconteceria só no mês seguinte, em agosto de 1920, no povoado de Gmünd, fronteira entre a Áustria e a então Tchecoslováquia – no meio do caminho entre Praga e Viena –, e é marcado, desta vez, por resignação, melancolia; pela impossibilidade de uma vida a dois.
A “carta do medo e do desejo” foi escrita sob a ansiedade da aproximação do dia do encontro em Gmünd e, portanto, da proximidade física com Milena, para quem ele procura, no limite da vida e da literatura, explicar a singular relação de proximidade e distanciamento do desejo por meio da história do que se presume ser sua primeira noite de sexo.
Inédita em tradução direta para o português brasileiro, e parte do meu esforço em andamento de tradução integral das Cartas a Milena, compartilho parte dessa carta, me abdicando de interpretá-la e me contentando em sugerir que, em se tratando da vida de Kafka, é com a ambiguidade, a complexidade e o paradoxal da literatura que temos de tratar.
***
Para Milena Jesenská, em Viena
Praga, 8 a 9 de agosto de 1920
[…]
Vou, portanto, responder à questão do “medo” e “desejo” – de uma só vez será difícil, mas voltando a ela em mais cartas, talvez seja possível. Uma condição preliminar seria você conhecer a carta para o meu pai (de resto ruim e dispensável). Talvez eu a leve comigo para Gmünd.
Limitando o medo e o desejo como você faz na sua última carta, a questão continua não sendo simples, mas de fácil resposta: sendo assim, só tenho “medo”. E da seguinte forma:
Lembro-me da minha primeira noite. Naquela época, morávamos na rua Zeltnergasse, na frente de casa havia uma loja de confecção, uma jovem vendedora estava sempre à porta. E lá em cima, no quarto, estava eu com meus 20 e poucos anos, andando de um lado para outro, ocupado em memorizar nervosamente, para o primeiro exame de estado da faculdade de Direito, uma série de coisas totalmente sem sentido para mim. Era verão, fazia muito calor, provavelmente por volta desta mesma época de agora, estava completamente insuportável, eu parava sempre, remoendo nos dentes a repulsiva História do Direito Romano, à janela, por fim nos comunicamos, eu e a moça, através de sinais. Às oito da noite eu iria buscá-la, mas, quando desci, um outro sujeito estava lá, bem, isso não mudava grande coisa, eu tinha medo do mundo inteiro, portanto, também desse homem; se ele não estivesse estado ali eu também teria tido medo dele. Mas, mesmo enganchada nele, a moça fez sinal para que os seguisse. Assim, chegamos ao bar Schützeninsel, onde tomamos uma cerveja, eu na mesa ao lado, então fomos, eu atrás deles, devagar para a casa da moça, que ficava em algum lugar no bairro de Fleischmarkt, lá o homem se despediu, a moça entrou correndo no prédio, esperei um pouco até ela voltar e fomos então para um hotel no bairro Kleinseite. Tudo isso, já antes do hotel, havia sido excitante, provocante e repulsivo, no hotel não foi diferente. E quando então, pela manhã – que continuava quente e bonita –, passamos os dois pela Ponte Carlos a caminho de casa, eu me sentia feliz, mas essa felicidade consistia apenas no fato de eu finalmente ter descansado daquele corpo que não parava de gemer, mas a felicidade consistia sobretudo no fato de a coisa toda não ter sido ainda mais repulsiva, ainda mais imunda. Eu estive uma outra vez com a moça, acho que duas noites depois, e foi tudo tão bom quanto da primeira vez, porém, quando logo em seguida saí de Praga para passar o verão fora, onde brinquei um pouco com uma outra moça, ao voltar para Praga não consegui mais olhar para a moça da loja, nunca mais troquei uma palavra com ela, ela era (da minha perspectiva) minha cruel inimiga, embora fosse uma moça bondosa e amável e não parasse de me perseguir com seus olhos que não compreendiam absolutamente nada. Não quero dizer que a única razão para a minha animosidade (certamente não foi isso) tenha sido que, no hotel, a moça, com toda a sua inocência, fez uma coisinha repulsiva (que não vale a pena mencionar), disse uma coisinha imunda (que não vale a pena mencionar), mas a lembrança ficou, e naquele exato momento eu soube que nunca mais esqueceria daquilo, ao mesmo tempo, soube, ou acreditei saber, que essa coisa repulsiva e imunda, embora externamente desnecessária, internamente contudo estava absoluta e necessariamente ligada à situação como um todo, e precisamente essa coisa repulsiva e imunda (cujo ínfimo sinal, para mim, fora aquela pequena atitude dela, aquela palavrinha dela) é que havia me impelido com tão desvairada violência para o hotel, ao qual, de outra forma, eu teria resistido com todas as minhas forças.
E assim continua até hoje. Meu corpo, com frequência anos a fio sossegado, passou então a ser sacudido, até um ponto intolerável, pela ânsia por aquela coisinha bem repulsiva, por algo levemente asqueroso, vergonhoso, imundo, havia algo disso mesmo no que de melhor havia para mim aqui, algum cheirinho ruim, um pouco de enxofre, um pouco de inferno. E esse impulso tinha também algo do Judeu Errante, absurdamente arrastado, vagando absurdamente por um mundo absurdamente imundo.
Depois também houve épocas, porém, em que o corpo não sossegava, em que absolutamente nada sossegava, em que, contudo, eu não me sentia nem um pouco pressionado, era uma vida calma e boa, só perturbada pela esperança (você conhece perturbação melhor?). Nessas épocas, durassem o quanto durassem, sempre estive só. Agora, pela primeira vez na minha vida, há também essas épocas nas quais eu não estou só. Por isso não é apenas a sua presença física, mas também você mesma, que tranquiliza e perturba. Por isso é que não anseio por nada de sujo (na primeira metade da época de Merano, passei os dias e as noites planejando, contra minha expressa vontade, como eu poderia me apoderar da empregada – e coisas piores, perto do final me caiu nas mãos uma moça bem predisposta, primeiro por assim dizer tive que traduzir suas palavras para o meu idioma para sequer poder entendê-la) nem vejo absolutamente sujeira alguma, não há nisso nada que excite de fora para dentro, mas há tudo que traz vida de dentro para fora, em suma, há algo do ar que se respirava no Paraíso antes da Queda. Mas só algo desse ar, pois nele ainda falta o “desejo”, e não todo aquele ar, pois há o “medo”. – Bem, eis que agora você sabe. E por isso até tive “medo” de uma noite em Gmünd, mas só o “medo” comum, (ah, basta o medo comum) que eu também sinto em Praga, não algum medo particular de Gmünd.
[…]
Agradeço à Susana Kampff Lages pela leitura e pelos comentários ao rascunho deste texto.
Leonardo Petersen Lamha é tradutor e doutorando em Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense, com estadias de pesquisa na Universidade de Viena e na Universidade Livre de Berlim. Traduziu autores como David Abram e Harold Innis (no prelo) e no momento trabalha na tradução integral e direta das Cartas a Milena, de Kafka.
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