O Brasil visto pela casa-grande
Professor analisa filme O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho, a partir da sociologia freyriana
Publicado em 24/03/2013, às 05h42
Anco Márcio Tenório Vieira
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O alerta veio do professor Luís Reis: “Vá ver O som ao redor,
é um filme gilbertiano”. De fato: Não só é um filme gilbertiano, como
provavelmente será a melhor homenagem que ele, Gilberto Freyre, recebe
no ano em que Casa-grande & senzala completa 80 anos.
É um filme aparentemente modorrento, como era a vida nos engenhos.
Mas nessa aparente modorra, onde um dia parece igual ao outro, plasmam
os signos do Brasil de ontem e de hoje: o patrimonialismo; a ausência do
Estado; o modo selvagem e utilitarista como estamos arruinando as
nossas cidades (a lógica que destruiu a mata atlântica em prol da
monocultura da cana, repete-se, agora, na ausência de um projeto urbano
civilizatório); o direito individual em detrimento da coletividade; as
relações de mandonismo entre patrões e empregados, e a permanência dos
agregados; os ódios familiares; a interpenetração cultural e o
equilíbrio dos opostos; a banalização da violência; o antagonismo entre a
casa e a rua; a ausência de consciência de classe e a vingança antes
por razões pessoais do que por questões ideológicas.
Urdindo todos esses signos, a metáfora do som como o modo formal de
organizar o filme e explicitar o que a sua aparente ausência de ação
esconde: o medo ancestral que nos acompanha desde os tempos da colônia.
No caso, os incompreensíveis batuques que chegavam da senzala; os sons
produzidos pela moagem (ao tempo em que multiplicavam as riquezas da
terra, poderiam também promover a revolta dos escravos); os sons dos
ventos, das águas e dos animais da floresta. E ante tais medos, “as
portas e as janelas das casas-grandes foram se trancando a ferrolho e
travessão às primeiras sombras da noite por precaução contra inimigos
misteriosos que andavam no ar, que vinham do mais profundo das matas e
das águas”, diz Freyre, em Nordeste. Junte-se aos sons, o temor das
entidades sobrenaturais: o saci-pererê, o negro do surrão, o caipora, o
boitatá, o mão-de-cabelo, a mãe-d’água, o mingau das almas, o
Quibungo..., ensina-nos Casa-grande & senzala.
No Som ao redor os ruídos estão ressignificados, mas os
medos, não. As grades nos separam da rua, assim como os ferrolhos e os
travessões separavam a casa-grande do resto do engenho, sem impedir que
ele, o medo, continue a povoar o sonho daqueles que acreditam estar
protegidos pelo feitor dos tempos modernos: o segurança particular. Sons
estranhos, agora não mais produzidos pelo imaginário supersticioso e
pela natureza, são gerados pela cidade, que se revela um ambiente tão
hostil quanto fora o Brasil rural.
Se Freyre foi acusado de escrever a partir da casa-grande, Kleber
Mendonça Filho, fugindo do lugar-comum da nossa cinematografia, constrói
o seu filme a partir de uma rua de classe-média. Rua esta que tem em um
senhor de engenho o proprietário de quase todas as suas casas. Não há
cenas de favelas (nem a cidade se faz conhecer em panorâmica), mas
sabemos que ela está lá. Não só pelos seguranças, guardadores de carro,
empregados domésticos e entregadores de água, mas pelo medo que esse
universo social, aparentemente invisível, impõe ao nosso cotidiano. A
modorra aparente esconde os nossos medos, e são esses medos, traduzidos
em sons, que, como metáforas, constroem a ação do filme.
Assim, Kleber nos revela que Freyre ainda continua a ser um dos
nossos grandes intérpretes, pois o seu Brasil profundo ainda continua a
nos governar. Ao recorrer à sua obra (desdenhando o marxismo vulgar que
impregna muitas das nossas interpretações, particularmente no cinema),
Kleber parece desarmar a crítica brasileira (repetidora de chavões de
orelha sobre a obra gilbertiana) ao reafirmar que foi nas casas-grandes
“onde melhor se exprimiu o caráter brasileiro; a nossa continuidade
social”, e que o estudo da sua história íntima “nos oferece de
empolgante por uma quase rotina de vida: mas dentro dessa rotina é que
melhor se sente o caráter de um povo”. Não só: ao contemporizar Freyre,
ele mostra que os ruídos que nos atormentam são também os mesmos que
infligem, hoje, as demais sociedades modernas (sejam elas desenvolvidas
ou não): os sons das periferias, os ruídos que transformam os nossos
sonhos em pesadelos.
Anco Márcio Tenório Vieira é professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE
(publicado originalmente no portal NE 10, do Jornal do Commércio)
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