QUAIS
LIÇÕES PODEMOS EXTRAIR DA PEDAGOGIA DA
CRIMINALIZAÇÃO DA PICHAÇÃO NO CE?
Para quem não sabe do
que se trata a “pedagogia da criminalização”, um brevíssimo esclarecimento:
tendo em vista uma reunião de avaliação e oficina sobre a grafitagem na fachada
do CE, e outras atividades culturais, aquel@s que participavam do evento,
espontaneamente, começaram a realizar a pichação no Centro de Educação (UFPE).
Essa ação gerou reação sectária de alguns docentes, com discussão no Conselho
Departamental, originando três reuniões nos três turnos para discussão sobre o
ocorrido e denúncia na Reitoria visando criminalizar a direção do Centro e seus
participantes.
Uma das lições é
lamentar o ocorrido. Lamentavelmente, a experiência democrática e dialógica
discursivamente propalada no CE está bastante longe. Lamentar também – e isso
nos espantou – o fato de alguns desses discursantes, que mantinham entre si
laços afetivos e de respeito, terem partilhado ou serem cúmplice de tal
prática. Parte desses docentes decidiu extrair lições de repressão, e não
educativas. As certezas moralistas prevaleceram diante da perplexidade
reflexiva. A pedagogia da criminalização suplantou daqueles que bradaram e
diziam: eu existo.
A ditadura de 64 não
acabou. Como diz Felix Guatarri, pensando na sua realidade, os hítleres (aqui,
os ditadores civis-militares) estão nas almas e mentes das pessoas e das
organizações. Os cabos Anselmos estão soltos ainda dançando nas luzes do dia –
e, à noite, entregando os outros.
A discussão ocorrida na
manhã da quarta (07/08/13), denominada “roda de diálogo”, iniciou-se com os
convidados expondo a mesma posição (não havia o contraditório), dando ênfase à
“pirâmide do terror”: “pichação é crime”, é “ato de quadrilha”, é “contra a
lei”. Eles insistiram em suas falas na pregação do medo, do terror, buscando
intimidar e dominar os presentes por esses sentimentos. A “roda” e o “diálogo” foram pelos ares –
apenas retóricas: o roteiro, os personagens e a dinâmica das filmagens estavam
decididos antecipadamente: pichação=vândalos, logo, criminosos.
Criminosos=punição. Era uma equação fácil, simples... e reacionária.
Tão assustadora quanto
as imagens aterrorizantes que emergiram nas falas dos “convidados” foi, por
parte de alguns dos organizadores, a prática política de se esconderem por trás
dessas falas, querendo tratá-las como linguagens neutras e científicas
enunciadas pelos convidados. Se Paulo Freire estivesse vivo, estaria revoltado
pelo fato de algumas categorias e conceitos centrais do seu pensamento estarem
sendo usados de forma tão irresponsável. Paulo Freire nunca defendeu a
pedagogia da prática punitiva da lei
para educar os adultos analfabetos. O diálogo, para ele, era de subversão –
logo, de transgressão à norma heterônoma (como os pichadores agem, só que com
instrumentos e estéticas diferentes). Ele sempre defendeu uma universidade
autêntica, contrapondo-se à inautêntica (alienada dos problemas nacionais). Uma
Universidade autêntica seria subversiva, porque autêntica ... e autônoma.
O silêncio no momento
do debate, daqueles que o organizaram, que defenderam essa concepção pedagógica
da repressão, é assustador..... porque tínhamos tudo para instaurar, a partir
de práticas construídas historicamente,
coletivamente, um debate que viesse da alma, das crenças de cada um.
Poucos foram sinceros nas suas crenças e se expuseram. Aos que se expuseram,
nosso maior respeito e admiração – apesar de discordarmos do conteúdo das
argumentações. Não haverá espaço público democrático sem sinceridade e sem amor.
Infelizmente, não teremos “tempo” para desenvolver esses aspectos da política
desprezados pelos discursos da teoria política (a ênfase é no utilitarismo e no
interesse). Repetimos: não haverá espaço
público democrático sem sinceridade
e amor.
O Congresso Nacional já
discute a lei antiterror para a Copa de Futebol, proibindo qualquer
manifestação pública e crítica sobre o evento ou qualquer outro que o
prejudique. Novas violências virão, por parte do Estado, caso seja aprovado tal
projeto aberrante. É lícito perguntar: esses discursos repressores da lei
retornarão? Docentes, discentes e servidores administrativos que se
manifestarem publicamente deverão ser enquadrados nessa lei? O discurso
produzido aqui no CE se somará ao do Estado repressor e propagará a prisão dos
supostos envolvidos? Retornaremos ao
famoso 477 e aos Atos Institucionais com apoios de docentes da Educação?
Esse acontecimento de
filme de ficção trágica deve nos alertar de uma coisa: o Centro de Educação até
hoje não instituiu um espaço público democrático – o que é uma tautologia,
pois, se é público, é democrático. Não confundamos “coletivos” de seres humanos
com “espaços públicos”. Hoje, o que nós temos são “coletivos humanos”
privatizados (burocráticos-fálicos), e não públicos. O episódio da criminalização
da pichação teve a repercussão que teve, certamente, por um dentre tantos
outros motivos: o Centro se institui no seu cotidiano por construções
burocráticas (Conselho Departamental, Colegiados, Comissões, etc); não temos
órgãos que incorporem a participação efetiva dos três segmentos (estudantes,
servidores e docentes) de forma democrática. O desejo da comunhão não
existe ou está fraco. Somos governados, ainda, pelo estatuto da ditadura e pelo
imaginário da ordem que só sabe pregar: respeito aos mais “antigos”, respeito
aos mais “antigos”, respeito aos mais “antigos” (que é o mesmo que dizer:
manter o que aí está, manter o que aí está). Lembremo-nos de um slogan que a
ditadura defendeu muito bem, “Brasil, ame-o ou deixe-o”; “CE, ame-o ou deixe-o”.
O forte sentimento de
medo da pichação, talvez, possamos compreendê-lo em razão de pichação ser uma
transgressão (não é revolução), um grito de insatisfação, um ato de autonomia,
de liberdade. O ato foi um gesto de singularidade, de liberdade política. Ora,
as forças conservadoras da “alma atormentada” não admitem (ou, naquele momento
não admitiram) singularidade política que implica autonomia. A energia
libidinosa da pichação assustou a ordem
da rotina em que não acontece nada (antierótica). Esse gesto da pichação
instaurou um princípio de formação do espaço
público, como tal, livre, que num
gesto de irmandade ameaçou valores recalcados, conservadores, tendendo a
defender a pureza da ordem das coisas. A pichação foi associada à sujeira, à
desobediência, à destruição (impurezas). A pichação tocou no calo da ordem: erotizou o espaço e as formas arquitetônicas
(transformou o puro em impuro). A pureza na política (inclusive a travestida de
administração e legalidade) é perigosa: ela nos remete à movimentos
reacionários visando a purificação como os nazismos, os stalinismos, o
varguismo, a ditadura civil-militar (vide a defesa da Família e da Tradição)
etc. Todos esses movimentos ideológicos visaram a purificação da Nação e do Patrimônio
Público (que de público não há nada). A política de competição hoje
implementada na Pós-Graduação visa, também, a purificação: afastar os impuros
(os improdutivos) para que não contaminem os puros (a busca pela produtividade
e resultados individuais e institucionais).
Por fim, a gestão atual
do Centro precisa assumir para si a responsabilidade de pautar a criação de
órgãos democráticos (no plural): operativos, consultivos e deliberativos (sem
estes, não há democracia) – a discussão da estatuinte vem a calhar. Essa
direção está tímida, inexistindo ações eficazes: o Conselho Departamental
Ampliado e a Ouvidoria são medidas burocráticas e privatistas que não
interessam à democratização do CE. A votação estrondosa que recebeu essa
direção precisa ser expressa em ações e propostas para que todos se reconheçam
no processo de criação e implementação desses órgãos; assim, daremos passos
firmes e consistentes, diminuindo ou eliminando práticas, que emergiram da alma atormentada (imagens recalcadas de
repressão) e que não ajudam na consolidação democrática que o CE
discursivamente propaga de vento em popa.
Proponho a criação de
um órgão, bastante amplo, político-pedagógico que teria a função
de discutir e deliberar posição/orientação
sobre temas político-pedagógico-educacionais em âmbito nacional ao local
(UFPE), um órgão técnico-adminsitrativo-educacional, assembleias gerais nos
três turnos para assuntos polêmicos, realização de Congresso bi anual.
Precisamos instituir um espaço público de fato, e não essa farsa, oriunda da
ditadura: burocrática, fálica e privada.
A construção coletiva
desses novos órgãos dará nova oxigenação ao CE, resgatando formas comunitárias
e solidárias. Certamente, emergirão conflitos antagônicos, porque velhos
poderes visam desaparecer ou serão canalizados para estruturas administrativas
e outras serão propostas para instituir novos valores, novas pedagogias. O importante é que as diversas opiniões,
ideologias e pedagogias tenham espaços organizacionais que possibilitem a
circulação e que as condições de disputas de idéias sejam respeitadas, e não
escondidas nas estruturas conservadoras/reacionárias dos atuais Conselhos e
Colegiados. Os estudantes e servidores precisam ser chamados a assumirem suas
responsabilidades em defesa da coisa pública, do bem público. O diretório
acadêmico precisa se mobilizar para assumir-se como sujeito histórico, e não
apenas, objeto. A participação efetiva dos estudantes é fundamental para que se
instaure e institua novos órgãos e democráticos. Incluímos ainda, como sujeitos
vivos a se integrarem na composição e criação dos órgãos democráticos, a
comunidade da várzea, seus moradores e artistas/educadores, criando laços
afetivo-corpóreos, instituindo um corpo vivo e pulsante na perspectiva de um
imaginário público e revolucionário.
Antes de encerrarmos, é
bom demarcar a importância política de a direção do CE informar publicamente (e
não apenas nos Colegiados e Conselho Departamental), com detalhes, sobre a
denúncia (e o/a denunciante) na Reitoria e seus desdobramentos por parte da
administração central, caso ocorram. A prática criminalizadora precisa ser
combatida na raiz para que ela não volte novamente. Precisamos construir um
espaço público que as pessoas se reconheçam e respeitem a sua dinâmica e
deliberações. O Conselho Departamental e os colegiados dos departamentos
representam a escuridão da ditadura. Eles não conseguem mais – se é que algum
dia conseguiram – traduzir os anseios coletivos democráticos. Enterremos esses
órgãos, pois a palavra “democracia” não tem valor nenhum se não houver
correspondência com o corpo, a organização. Façamos o seu luto. A insistência
em propagar tal palavra, democracia, sem mexer em seu “interior” só poderá ser
interpretada como manipulação, engodo, pois não há “alma” sem “corpo” e “corpo”
sem “alma”.
Aqueles que se sentiram
agredidos, por favor relevem interpretações pessoalizadas. Aqui, propusemos uma
análise consistente; e caso não a tenhamos conseguido, resta-nos pedir-lhes
desculpas pelos limites, enfatizando porém, o que nos moveu foi o objetivo sincero
de contribuir para a construção democrática apregoada pelo CE.
PELA CRIAÇÃO
DE UM ESPAÇO
PÚBLICO DEMOCRÁTICO DESEJANTE: PLURAL, DIVERSO E AUTÔNOMO!
Recife, 26 de agosto de 2013
Evson Malaquias
de Moraes Santos
(Texto publicado com a expressa autorização do autor, que é professor do Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco )
Nenhum comentário:
Postar um comentário