JOSÉ LUIZ GOMES ESCREVE:
Em 1651,
Thomas Hobbes escreveu um livro que se tornou um clássico entre os manuais de
ciência política. O livro se tornaria uma das principais referências da chamada Teoria do Contrato Social. Escrito em meio ao caos provocado pela
Guerra Civil Inglesa, O Leviatã se constitui numa antítese ao "Bellum
ominium contra omnes", ou seja, a guerra dos homens contra os homens,
também chamada pelo autor como estado de natureza.
Nesse
contexto, Hobbes propõe um governo central forte e eclesiástico, além de uma
"sociedade", que pode ser traduzida como padrões civilizatórios de
convivência, com direitos delegados ao Estado - que arbitraria os litígios -
para que pudéssemos fugir da barbárie. Naturalmente, outras leituras são
possíveis a partir do texto do autor inglês, inclusive no que concerne à
constituição desse governo forte e eclesiástico, adjetivos que podem remeter às
tendências de corte autocráticas e limitadoras das manifestações religiosas.
Essa
introdução vem a propósito do ainda recente pronunciamento da jornalista do
SBT, Rachel Sheherazade, quando do episódio envolvendo aquele jovem negro
espancado e amarrado em praça pública pela população no Rio de Janeiro. À época,
em comentário no Jornal do SBT, a jornalista insinuou que a população estaria
cansada de esperar uma providência do Estado e havia decidido, por conta
própria, adotar tal medida punitiva ao suposto infrator. Pois bem. Logo em
seguida - além da repercussão negativa produzida por sua fala, o que
mobilizaria até mesmo entidades da sociedade civil organizada - surgiram uma
série de atos do gênero - onde a população resolveu fazer "justiça"
com as próprias mãos, em alguns casos, possivelmente, trucidando inocentes.
Não
foram poucos. Alguns deles bastante "festejado" pelas redes sociais.
Lembro de um jovem que teve seus dedos decepados, outro de 17 anos que foi
espancado até a morte. Todos jovens negros. É o que estamos denominando aqui de
"Efeito Sheherazade". Indícios perigosos da volta do "estado de
natureza" descrito por Hobbes, circunscritos – ainda bem - em alguns setores
da população. Um quadro profundamente lamentável. O pior é que essas situações servem
como fermento para alimentar a sanha de alguns irresponsáveis, que clamam pela
volta de governos ditatoriais, abdicando do Estado Democrático de Direito, com
argumentos insustentáveis, do tipo: "Tá com pena? Leva ele para casa".
Embora
tenha merecido as providenciais medidas de algumas entidades contra essa
atitude – até certo ponto racista – a jornalista envolveu-se numa polêmica que
contou – pasmem – com a solidariedade de alguns indivíduos, que a festejam –
como já afirmamos – pelas redes sociais. Já li muitas manifestações de
solidariedade a jornalista. Segundo consta, o Sistema Brasileiro de Televisão
teria sido pressionado por patrocinadores no sentido de exonerar a jornalista
dos seus quadros, o que não ocorreu. Seu patrão, Sílvio Santos, afirmou que não
cederia às pressões. Embora tenha acatado a decisão de retirá-la dos
comentários, irá mantê-la na emissora e no jornal.
O
que nos deixa profundamente preocupados, no entanto, é a ocorrência de
situações congêneres àquela que ocorreu no Rio de Janeiro, um fenômeno que vem
se verificando em todo o Brasil. Essas cenas são mostradas cotidianamente pelas
redes sociais, com um número expressivo de “curtidas” e “compartilhamentos”.
Mais do que a evidência de uma “patologia social”, estamos diante de uma
situação remissiva à subtração das
liberdades individuais, do direito de defesa e julgamento, e a extrapolação de
ações - constitucionalmente apenas facultadas ao Estado - como aplicação de
penas aos cidadãos que desrespeitam as leis. Legalmente, inclusive, o país não
tem pena de morte.
Aqui
em Pernambuco, numa cidadezinha conhecida como Camaragibe – onde está sendo
construída a cidade da Copa - foi assassinada, há alguns anos atrás, uma jovem
conhecida como “Um real” – ela não tinha nome? – numa referência ao que valor que ela cobrava
pra fazer programas. Viciada em crack, talvez em função de dívidas com
traficantes, a jovem foi morta a pauladas. Qual a sua idade? 12 anos. Perdi
essa aula de psicologia, mas talvez ainda possamos enquadrá-la como uma
criança. Esse caso nunca foi esclarecido, assim como outros tantos onde nunca
se descobriu os verdadeiros assassinos.
Está
aqui uma evidência de que é preciso analisar essas situações com mais
prudência, bom-senso, sensibilidade. No quadro de “um real”, todos temos nossa
parcela de culpa. Falhou a Família, falhou a Igreja, a Escola, a sociedade, o
Estado. Todos nós falhamos. Já ocorreram casos em que esses atos de “justiça
com as próprias mãos” se mostraram equivocados. As vítimas eram inocentes.
O
“Ovo da Serpente”, então, é a tolerância ou permissividade à atitudes como a descrita, criando um
ambiente perigosamente favorável ao totalitarismo e o endurecimento das ações
do Estado no enfrentamento dessas situações. É interessante observar que as
pessoas que defendem aqueles que praticam a “justiça com as próprias mãos” são,
quase sempre, as mesmas que advogam a volta de regimes ditatoriais. Não deve
ser por acaso.
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