pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: O Brasil em campo com Nelson Rodirgues
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domingo, 23 de setembro de 2012

O Brasil em campo com Nelson Rodirgues

 
Mais uma obra de referência para a literatura esportiva. No ano do centenário de Nelson Rodrigues, a coletânea de crônicas organizada por sua filha, Sonia Rodrigues, “O Brasil em Campo” (Editora Nova Fronteira) é leitura obrigatória. Desde as crônicas organizadas por Ruy Castro, seu biógrafo, Nelson Rodrigues não tinha uma de suas maiores paixões, o futebol, tão bem explorado. São 71 crônicas sobre esporte, 58 delas nunca publicadas em livro.
 
Sinopse (da Editora):

“Nelson Rodrigues e o futebol. Pode parecer mera repetição, mais do mesmo, mas não é! Brasil em campo é uma antologia em que se conjugam ironia, versatilidade, repetição — com muito estilo — e belíssimos chutes a gol de um dos maiores cronistas esportivos do país!
E não é só isso. Nas crônicas aqui reunidas, percebe-se que, a partir do chute inicial, com belos e inesperados dribles na pauta de sua coluna, Nelson passa a bola para questões políticas, culturais e acaba chegando ao mais fundo da alma brasileira. Porque esse é seu espaço por excelência de discussão do humano e de suas verdades.
Mas Brasil em campo é ainda, sobretudo, o retrato de uma paixão. Paixão pessoal, coletiva, brasileira.
Talvez essa seja mesmo a palavra que grite mais alto nas páginas deste livro, como um torcedor em final de campeonato ou quando sente que seu time foi garfado pela arbitragem.
Paixão é o sentimento que todos os brasileiros devotam a esse esporte e com Nelson não foi diferente. Sabidamente apaixonado por futebol e pelo seu time, o Fluminense, Nelson elege esse esporte como nosso maior traço de união, fazendo dele uma verdadeira metáfora do Brasil e dos brasileiros”.
Na primeira crônica da antologia organizada por sua filha, um texto inédito de Nelson Rodrigues sobre a Seleção Brasileira na Copa de 1958, na Suécia:

No Brasil, o futebol é que faz o papel da ficção
Por Nelson Rodrigues (O Globo, s/d)

“Ontem, o Wilson Figueiredo faz-me o apelo dramático: — “Não misture o Brasil com o escrete!” Segundo o caro confrade, há todo um abismo entre a pátria e a seleção. Deixo o telefone numa amarga perplexidade. E das duas uma: — ou é o colega que não enxerga o óbvio ou sou eu que vejo uma relação. Falsa. Mas com uma pertinácia bovina reafirmo: — o escrete é o Brasil; é a pátria dando botinadas.

Confesso, porém, que sou um brasileiro obsessivo e repito: — um brasileiro delirante, que precisa ver o Brasil, por todas as partes. Há pouco, numa exposição em Bruxelas, premiaram uma das nossas marcas de fósforo. Pois bem. A partir de então, uma caixa de fósforos passou a ser, aos meus olhos, um símbolo nacional, dos mais válidos e incisivos. Era a pátria em palitos. De uma outra feita, houve um concurso de gado, em Uberaba. Selecionaram um dos animais e lhe enfiaram pelo pescoço uma fitinha, com uma medalha pendurada. E a vaca premiada foi, por um momento, o Brasil, a pátria viva.

Agora é a vez do escrete. E não importa que o Wilson Figueiredo proteste, com escândalo e irritação: — “Futebol é clube e não pátria!” Lá fora, quando se quer conhecer um povo, o sujeito recorre à ficção. Mas no Brasil, não. O nosso romance é ralo, é escasso de grandes símbolos nacionais. Quer-se um Tartarin e não temos um Tartarin, quer-se um Peer Gynt e não temos Peer Gynt, um Karamázov e não há um Karamázov. É verdade que temos um Paulo Francis, ressentido como um Raskólnikov de galinheiro. Mas o Paulo Francis ainda não está impresso.

Eis a verdade: — no Brasil, o futebol é que faz o papel da ficção. O sujeito quer um herói de botas e penacho? um supertipo? ou mau-caráter, em dimensão gigantesca? Encontraremos tudo isso e muito mais nos clássicos imortais ou nos amistosos caça-níqueis. Lembro-me de uma pelada a que assisti, faz tempo. Um dos adversários era o brioso Rosita Sofia. E o outro devia ser o Manufatura, ou Mavilis, sei lá. De repente, a coisa começou a crescer em campo. Tudo adquiriu um dramatismo inesperado e colossal.

E me doeu não ser um Camões, ou um Sófocles, ou um Tolstói. Eu via, ali, todo um material abundantíssimo para uma Guerra e paz.

E, no entanto, não há em toda a já vasta obra de Guimarães Rosa uma única e mísera pelada. Todo o seu monumento romanesco não inclui uma vaga e lírica botinada. Nada. O ficcionista ainda não desconfiou que os nossos descobridores, os nossos argonautas de cristal, os nossos lusíadas, os nossos mares — estão no futebol. Toda a experiência vital e romanesca do Guimarães Rosa vai se enriquecer quando ele descobrir o Maracanã.

Amigos, aí é que está: — o sujeito que quiser conhecer o Brasil terá de olhar o escrete. Não há nada mais Brasil do que Pelé. E repito: — todo o Brasil estava no goal que Pelé marcou, de cacetada, contra o País de Gales. Também a desgraça venta no futebol. Pior do que Canudos foi a vergonha épica de 50. No Maracanã inaugurado, o uruguaio Obdulio Varela venceu, no palavrão, o escrete e toda a nação.

A ressurreição nacional data de 58. Que era o brasileiro antes da Jules Rimet? Um humilhado, um ofendido. No seu amargo cotidiano, sofria desfeitas da mulher, da criada e, até, do caçula. Pois bem. A vitória de 58 mudou até as nossas reações domésticas. O brasileiro já entra em casa dando patadas. Agora é ele quem ofende, é ele quem humilha. E toda essa nova e triunfante disposição vital nós devemos ao escrete.

Eu queria dizer, ainda, que o Brasil também está no arremesso lateral de Djalma Santos, o negro. É um grave, um transcendente arremesso lateral. Amigos, imaginemos a cena. A bola está no chão. E vem Djalma Santos. Ele se curva. Apanha a bola e a carrega, a mãos ambas, como diria o Eça. Não é um esforço leve e frívolo. Não. Djalma Santos parece estar suspendendo um piano. Ele ergue a bola. Balança o corpo. E aí é que está o sortilégio: — o seu arremesso lateral é solene, forte, herói — como um tiro de meta. É uma bomba. Amigos, pode-se ligar a potencialidade manual de Djalma Santos à nossa epopeia industrial”.

Em outra crônica inédita, Nelson Rodrigues, como sempre, fala de outro personagem fundamental de suas histórias: o torcedor brasileiro.

Narciso às avessas, que cospe na própria imagem
Por Nelson Rodrigues (Revista Manchete Esportiva, 17/5/1958)

Hoje, o meu personagem da semana é uma das potências do futebol brasileiro. Refiro-me ao torcedor. Parece um pobre-diabo, indefeso e desarmado. Ilusão. Na verdade, a torcida pode salvar ou liquidar um time. É o craque que lida com a bola e a chuta. Mas acreditem: — o torcedor está por trás, dispondo.

Escrevi acima que o torcedor não é um desarmado e provo. De fato, ele possui uma arma irresistível: — o palpite errado. Empunhando o palpite, dá cutiladas medonhas. Vejam o primeiro jogo com os paraguaios. Vencemos de cinco e podia ter sido de dez. Fizemos do adversário gato e sapato. Ora, para uma primeira apresentação foi magnífico ou, mesmo, sublime. Mas quando saí do Maracanã, após o jogo, vejo, por toda parte, brasileiros amargos e deprimidos. Mais adiante, esbarro num amigo lúgubre. Faço espanto: — “Mas que cara de enterro é essa?” O amigo rosna: — “Estou decepcionado com o escrete!” Caio das nuvens, o que, segundo Machado de Assis, é melhor do que cair de um terceiro andar. Instantaneamente, vi tudo: — o meu amigo era ali, sem o saber, um símbolo pessoal e humano da torcida brasileira. Símbolo exato e definitivo.

Em qualquer outro país, uma vitória assim límpida e líquida do escrete nacional teria provocado uma justa euforia. Aqui, não. Aqui, a primeira providência do torcedor foi humilhar, desmoralizar o triunfo, retirar-lhe todo o dramatismo e toda a importância. Atribuía-se a vitória não a um mérito nosso, mas a um fracasso paraguaio. Os guaranis passavam a ser pernas de pau natos e hereditários. Dir-se-ia que, por uma prodigiosa inversão de valores, sofremos com a vitória e nos exaltamos com a derrota.

E, no entanto, vejam vocês: — o escrete visitante, que nos parecia de vira-latas, acabara de vencer e desclassificar a “Celeste” e bater a enfática Argentina. Mas, para cuspir na vitória brasileira, o nosso torcedor fingiu ignorar a real capacidade, a indiscutível classe do adversário. Veio o segundo jogo, no campo careca e esburacadíssimo do Pacaembu. Houve um empate, que teve para o Brasil o gosto de uma semiderrota. Desta vez, porém, nada 22 de choro, nada de vela. Por toda parte, só se viam caras incendiadas de satisfação.

Com o olho rútilo e o lábio trêmulo, o torcedor patrício lavava a alma: — “Eu não disse?” Os pernas de pau não eram mais os paraguaios, eram os brasileiros. E está-se vendo esta vergonha: — um escrete, que começou vencendo, já é vítima de uma negação frenética. Há gente torcendo para que ele apanhe de banho na Suécia.

Eis a verdade, amigos: — tratam do craque, tratam da equipe e esquecem o torcedor, que está justificando cuidados especiais. Que estímulo poderá ter um escrete que é negado mesmo na vitória? A seleção não tem saída. Se vence de cinco, se dá uma lavagem, o torcedor acha que o adversário não presta. Se empata, quem não presta somos nós. Durma-se com um barulho desses!

Há uma relação nítida e taxativa entre a torcida e a seleção. Um péssimo torcedor corresponde a um péssimo jogador. De resto, convém notar o seguinte: — o escrete brasileiro implica todos nós e cada um de nós. Afinal, ele traduz uma projeção de nossos defeitos e de nossas qualidades. Em 50, houve mais que o revés de onze sujeitos, houve o fracasso do homem brasileiro.

A propósito, eu me lembro de um amigo que vivia, pelas esquinas e pelos cafés, batendo no peito: — “Eu sou uma besta! Eu sou um cavalo!” Outras vezes, ia mais longe na sua autoconsagração, e bramava: — “Eu sou um quadrúpede de 28 patas!” Não lhe bastavam as quatro regulamentares; precisava acrescentar-lhe mais 24. Ora, o torcedor que nega o escrete está, como o meu amigo, xingando-se a si mesmo. E por isso, porque é um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem, eu o promovo a meu personagem da semana.

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