3 de novembro de 2013 | 09:33
O artigo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, hoje, no Estadão, bem merecia o título aí de cima.
Aliás, em apenas 40 linhas, o ex-presidente consegue transitar de Carlos Lacerta a Marina Silva, num espetacular exemplo de ecletismo que tem como fio condutor o mau-humor com que encara a teimosa atitude dos eleitores – daqui e de fora – de escolherem seus governos fora da camada de “iluminados”, que sabem o que o povo quer melhor do que o próprio povo.
Protesta contra a legitimação dada pela Corte Suprema da Argentina à Ley de Medios, contra a reação do governo venezuelano à sabotagem econômica que campeia no país – é notória a ligação da elite empresarial com a direita e os EUA, ao ponto de o presidente da Fedecamaras, a Fiesp deles, ter sido colocado na “presidência” no golpe frustrado de 2002. Por eles, chega ao ponto de fazer o que nem em seu governo fez: questionar a decisão popular expressa em eleições livres.
E não apenas lá, mas em outros governos que reconhecem a autodeterminação e a soberania do voto que erigiu aqueles governos:
“O lamentável é que os governos democráticos da região assistem a tudo isso como se fosse normal e como se as eleições majoritárias, ainda que com acusações de fraudes, fossem suficientes para dar o passaporte democrático a regimes que são coveiros das liberdades.”
No mundo das escutas telefônicas dos Estados Unidos sobre a humanidade inteira – que não lhe merece uma palavra – é curioso que o ex-presidente chame de “coveiros da liberdade” governantes não apenas eleitos mas cujos governos se submetem ao controle das instituições judiciais.
Deste surto “Juraci Magalhães” de americanismo, FH salta à apologia da repressão.
“Temos assistido ao encolhimento do Estado diante da furia de vândalos, aos quais aderem agora facções do crime organizado. Por isso é de lamentar que o secretário-geral da Presidência se lamurie pedindo mais “diálogo” com os black blocs, como se eles ecoassem as reivindicações populares. Não: eles expressam explosões de violência anárquica desconectada de valores democráticos, uma espécie de magma de direita, ao estilo dos movimentos que existiram no passado no Japão e na Alemanha pós-nazista.”
Bem, ver o conteúdo fascista destes grupos violentos é, hoje, possível até mesmo a um cego. Mas veja que em contradição primária o nosso príncipe da sociologia incorre, no seu furor antigoverno:
“Esses atos vandálicos dão vazão de modo irracional ao mal-estar que se encontra disseminado, principalmente nas grandes , cidades, como produto da insensatez da ocupação do espaço urbano com pouca ou nenhuma infraestrutura e baixa qualidade de vida para uma aglomeração de pessoas em rápido crescimento.”
Ora, professor, “insensatez da ocupação do espaço urbano com pouca ou nenhuma infraestrutura e baixa qualidade de vida para uma aglomeração de pessoas em rápido crescimento.” serve para designar qualquer momento do crescimento das metrópoles brasileiras nos últimos 60 ou 70 anos, não é?
E, talvez mais do que em qualquer outra época – e certamente muito mais que em seu governo – esteja se investindo tanto em infraestrutura e fatores de qualidade de vida no país, especialmente em dois fatores-chave para isso: habitação e mobilidade urbana. Desnecessária, aí, qualquer comparação com dados, basta nossa memória.
A causa do caos urbanos? Os pobres, é claro:
“Os governos petistas puseram em marcha uma estratégia de alto rendimento econômico e político imediato, mas com pernas curtas e efeitos colaterais negativos em prazo mais longo. O futuro chegou, na esteira da falta de investimento em infraestrutura, do estímulo à compra de carros, do incentivo ao consumo de gasolina, em detrimento do etanol, e do gasto das famílias via crédito fácil, empurrado pela Caixa Econômica Federal. Os reflexos aparecem nas grandes cidades pelo País afora: congestionamentos, transporte público deficiente, aumento do nível de poluição atmosférica, etc.”.
Ter um automóvel ou comprar a crédito, ficamos sabendo, é “ uma estratégia de alto rendimento econômico e político imediato, mas com pernas curtas e efeitos colaterais negativos em prazo mais longo” , a não ser, claro, para a classe média alta. Para os demais, arrocho, porque arrocho ajuda a fazer mais superavit e superavit permite juros mais altos ao mercado.
E Fernando Henrique, aí, para não ter de ir além nesta desastrosa confissão de que “o problema” é que o povão tenha passado a fazer parte do mundo do consumo, parte para o “marinismo” de um mundo ideal, onde se atingiria o ótimo sem passar pelas vicissitudes do bom.
“Não basta melhorar a infraestrutura, se o crime organizado continua a campear, nem mais hospitais e escolas, se a qualidade da saúde e da educação não melhora. As soluções terão de ser iluminadas por uma visão nova do que queremos para o Brasil. Precisamos propor um futuro não apenas materialmente mais rico, mas mais decente e de melhor qualidade humana.”
Então, enquanto a “visão nova” não ilumina o mundo “sonhático”, fica-se na paralisia do desenvolvimento. Continua a faltar infraestrutura, escolas, hospitais porque sua qualidade é baixa. Naturalmente, a classe média e aos ricos não faltarão, porque há infraestrutura onde moram e podem pagar por escolas e planos de saúde.
Sacode-se o mundo ideal diante da opinião pública para que esta nãos veja – ou aceite – que o mundo real não pode ser para todos, pois isso torna tudo ruim, precário, desastroso.
Lembro de um amigo que brincava, dizendo que os gringos “sambam” com os dedinhos levantados para que nãos lhes vejam os pés desajeitados.
É sempre isso, nas mais variadas formas: o problema do mundo são os pobres pretenderem ter uma vida como tem as camadas médias e altas e como a que o mundo das elites lhes vende, glamurosamente, mas não lhe entrega nunca.
Por: Fernando Brito, no Tijolaço
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