O modelo político-eleitoral, que depende do financiamento empresarial de campanha, que por sua vez cobra a fatura desse financiamento por meio de contratação de obras e serviços, é o que tem ditado o centro da política urbana nos últimos anos...
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por Silvio Caccia Bava |
As eleições municipais deste ano ocorrem em um cenário de profunda crise política e econômica. Para debater as perspectivas que se abrem com o pleito e analisar os atores e modelos em disputa pela cidade, o Le Monde Diplomatique Brasil conversou com a urbanista Raquel Rolnik, professora da FAU-USP. Confira a entrevista a seguir LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL – Vamos ter eleições daqui a um mês e pouco e não estamos ouvindo muita discussão sobre programas, sobre conteúdo. E isso ocorre num cenário meio crítico. Como esses novos prefeitos vão governar sem dinheiro? RAQUEL ROLNIK – Vai haver muito pouco espaço nesse debate eleitoral sobre o destino da cidade, sobre um projeto de cidade, já que o ambiente eleitoral está muito contaminado pela crise política e pela pauta da crise política. Por outro lado, os partidos que hoje estão concorrendo ao pleito, pelo menos as grandes coalizões, aquelas que têm mais tempo na TV, mais recurso para financiar campanha, justamente são os que se desenvolveram graças às práticas que levaram à crise política que estamos vivendo hoje. Enfim, o modelo político-eleitoral, que depende do financiamento empresarial de campanha, que por sua vez cobra a fatura desse financiamento por meio de contratação de obras e serviços, é o que tem ditado o centro da política urbana nos últimos anos... Portanto, a expectativa é muito baixa de uma discussão real sobre as questões da cidade e menor ainda de enfrentamento da crise fiscal. O fato é que os governos municipais não vão operar com o rio de dinheiro que operaram nos últimos anos. Muito provavelmente vamos ver campanhas que vão falar ou ficar mostrando as obras que foram inauguradas ou prometer obras que serão feitas, quantos hospitais, quantas creches, quantos quilômetros... Isso evidentemente será menos possível, menos factível, em um contexto de crise fiscal. Mesmo assim, dificilmente o embate eleitoral vai fugir das “obras que fiz” ou “das obras que prometo fazer” e enfrentar, de fato, os nós do modelo de desenvolvimento urbano (muito tributário e conectado ao modelo político-eleitoral) que temos. Vai estar muito pouco presente a questão de que não vai haver dinheiro para as “obras” e que o modelo de financiamento do desenvolvimento urbano que temos é incapaz de “resolver” nosso déficit de urbanidade. Por outro lado, do ponto de vista dos efeitos da crise política, ao que parece, a indignação da sociedade não foi suficiente para superar esse modelo, já que hoje as forças políticas e as coalizões que articularam o golpe, que propuseram o impeachment, são as mesmas que vão disputar as eleições com força e estão umbilicalmente vinculadas ao tal modelo de desenvolvimento urbano falido a que me referi. Não há uma luz imediata no fim do túnel de que elas vão se desconstituir a curtíssimo prazo, ou seja, no prazo da próxima disputa eleitoral municipal. Então o que vai acontecer diante da falta de dinheiro? Os prefeitos não terão alternativa senão tentar responder com alguma proposta de política inovadora. Quem viveu nos anos 1990 no Brasil sabe que esses foram períodos também de crise fiscal e falta de dinheiro, em que os governos se viraram e introduziram políticas muito baseadas em mobilização social, em participação. Por exemplo, no campo da moradia foi o momento em que se começou a urbanizar favelas, mobilizando mutirão dos próprios moradores para instalar o sistema de saneamento de esgoto e de melhorias; um momento em que se construiu também moradia por meio do mutirão, em que se propôs assistência técnica e jurídica para os moradores em processos de regularização fundiária e autoconstrução assistida. Essas são políticas com baixo custo e muita mobilização, que começavam a dar respostas naquele período para questões que estavam batendo na porta dos prefeitos, e estes tinham de dar uma resposta. Eles faziam isso por meio da participação popular, da cogestão com os próprios cidadãos. Mas o neoliberalismo combina com democracia? Então, enquanto uma parte da sociedade, uma parte minoritária eu diria, estava envolvida em projetos de radicalização democrática, de mobilização social, na direção da ampliação dos direitos, o neoliberalismo e a visão neoliberal estavam penetrando também em nosso país e em nossas cidades, em nossa política municipal. Os próprios governos democráticos e populares, quando chegaram ao governo federal, construíram todo o arcabouço jurídico e regulatório para, pelo menos no campo da política urbana, promover as parcerias público-privadas (PPPs) nos projetos urbanos. Acabamos de ver um ensaio geral disso muito claro no Rio de Janeiro, que utilizou exatamente esse tipo de marco regulatório. O que aconteceu lá? O projeto urbano ligado à transformação urbanística do Rio de Janeiro em razão da Copa do Mundo e das Olimpíadas é 100% neoliberal, pois foi introduzido por meio de parcerias e da privatização dos espaços e recursos. Além disso, foi modelado e definido em arenas que nada têm a ver com os espaços públicos de negociação e decisão acerca das políticas. E com um pequeno detalhe, mas muito relevante: 100% financiado pelo fundo público. Não há um tostão de empresa privada. Pega o Porto Maravilha: R$ 8 bilhões do FGTS! Para não dizer que é zero de participação privada, há aí uns US$ 20 milhões do Santander na construção do Museu do Amanhã. E é só, porque o resto ou é recurso de fundos públicos, ou renúncia fiscal, que é o quê? Dinheiro público, o dinheiro de imposto que não entra. Eu não sou contra investimentos feitos pelo poder público. Sim, só que esse foi um investimento público dirigido 100% para uma transformação urbanística pensada e modelada para beneficiar o privado, e não o público. Como foi no Porto Maravilha, o que se implantou sobre terras que eram públicas? Torres corporativas AAA, para gerarem o quê? Uma frente de expansão do capital financeiro global, que encontra mais uma fronteira, mais um terreno no qual pode investir para poder ser rentável a médio e longo prazo. Alguém vai falar: mas a Praça Mauá ficou linda, ficou superlegal, o Rio de Janeiro ganhou um espaço público de que a população se apropriou e o qual usa. É só fazer a conta: quanto custaria fazer uma Praça Mauá renovada? Não sou contra a Praça Mauá renovada, está linda mesmo, só que foram gastos R$ 8 bilhões de nosso FGTS para fazer algo que com alguns milhões se poderia fazer... Você acha que isso é um anúncio do que vai ser a gestão municipal nas cidades aqui no Brasil? É o que as gestões municipais hoje gostariam de ser quando crescer, esse é o modelo. E, de preferência, com um ator como a Globo por trás para ajudar a construir toda a base de apoio político e simbólico do projeto. Mas no Rio de Janeiro há uma grande resistência ao projeto de cidade introduzido sob o manto dos megaeventos, há uma grande contestação. Isso nos dá esperança de que esse modelo não vá ser absolutamente disseminado em todo o país. Ademais, esse projeto tem como ator/protagonista central, além do fundo público, as grandes empreiteiras. São estas que armaram e modelaram essas PPPs de projetos urbanos no Brasil e que, evidentemente, se beneficiam também da introdução das obras de infraestrutura ali contidas, que elas serão remuneradas para instalar. Mas, na atual conjuntura, em que o fundo público está diminuindo e os grandes empreiteiros estão envolvidos na Lava Jato, é difícil pensar que esse modelo possa ser amplamente reproduzido. Então a ideia de que todas as cidades brasileiras vão virar o Rio de Janeiro de Eduardo Paes não me parece ter nenhuma viabilidade econômica e política neste momento. Assim como foi nos anos 1990, algum espaço para experimentação democrática vai fatalmente acontecer. Como, onde e quais serão as forças políticas que vão protagonizar isso, não sabemos. Mas dá para governar sem dinheiro? Sem nenhum dinheiro não dá mesmo, claro que não, mas dá para governar com muito menos dinheiro do que se governou na última década. Você está falando da prestação de serviços públicos ou só do desenvolvimento urbano? Vamos falar dos custos da prestação de serviços públicos, como transporte e lixo, e de sua qualidade. Há uma falta de controle público efetivo, de controle social sobre esses custos e sua performance. Os instrumentos de controle dentro do Estado brasileiro estão muito contaminados pela lógica política partidária até dentro do próprio Ministério Público, infelizmente. Nós vemos quanto o Judiciário tem parte, não é independente, e quanto o Estado brasileiro, incluindo os órgãos de controle e fiscalização, está contaminado pela lógica política partidária: os tribunais de contas, por exemplo, cuja lógica são indicações políticas, uma coisa completamente dentro do mesmo esquema. Então não se introduziu um controle social efetivo sobre as empresas que prestam serviço público na cidade. Cada vez menos temos noção dos reais custos da operação. Dá para desconfiar muito quando se mencionou na investigação jornalística dos Panama Papers que um dos grandes investidores offshore do Brasil é um grande concessionário de ônibus. São milhões e milhões que eles ganharam da exploração dos serviços de ônibus, e vamos combinar que essa está longe de ser uma prestação de serviço de alta qualidade. Sim, mas como você vai brigar com eles, se no caso de São Paulo, por exemplo, dois empresários têm 8 mil ônibus? Está tudo cartelizado, muito cartelizado, e infelizmente também a relação empresas/sistemas políticos partidários está muito entranhada nas câmaras municipais, nas assembleias legislativas. Na gestão Luiza Erundina, quando se tentou romper o cartel do lixo, o governo foi quase a nocaute. Os empresários da coleta de lixo ameaçaram não realizar o serviço. “Eu deixo aí sua cidade um mês sem coletar o lixo, vai ter impeachment contra você, prefeito.” Eles realmente dominam, é verdade. Então como nós rompemos esses cartéis? É incrível como na Lava Jato surgiu a história, mas não a história inteira, não a relação entre as empresas que prestam serviços ao setor público e o sistema partidário, político-eleitoral, o efeito disso sobre a gestão da cidade, sobre as escolhas, sobre a qualidade do serviço, sobre o destino da cidade. Isso ainda não se mostrou claramente, então vai ter que efeito? Isso é o mais maluco da história, porque parece que o problema são os 10% que os partidos e os políticos levavam de corrupção, e não a política pública que existia para sustentar o negócio e não para atender ao interesse do cidadão. Veja, no neoliberalismo, em sua dimensão simbólica e cultural, quanto o imaginário neoliberal penetra em nosso país já há muito tempo. Enquanto o imaginário triunfa, porque é repetido nos meios de comunicação, é o que as pessoas falam, a ideia do mercado, do mérito, do cara que vai se fazer sozinho, por mérito próprio, toda essa ideologia é uma ideologia anti-Estado, anti-Estado com redistribuição. Esse pensamento foi entrando forte em nossa sociedade, e não é de hoje, e neste momento esse pensamento detém uma hegemonia cultural, desmontando o imaginário social dos direitos e da redistribuição. Mas isso não foi capaz de moldar a cabeça, por exemplo, de uma juventude secundarista, dos meninos que já nasceram bombardeados por esse imaginário e, no entanto, se organizam e resistem em cima de uma pauta de autonomia, autodeterminação, participação, respeito aos direitos. Há uma luz no fim do túnel no sentido de que o neoliberalismo, seus instrumentos e seus imaginários são dominantes, mas estão mortos do ponto de vista de sua possibilidade concreta de oferecer alternativas para a crise que estamos vivendo, crise de mobilidade, crise ambiental, crise de representatividade do Estado. Como diz Franco Berardi, pensador italiano, o neoliberalismo está morto e nós estamos vivendo dentro do cadáver. Quando você acena para a inovação, a experimentação como resposta a essa situação atual, isso pode ser possível em pequenas cidades, até talvez em médias, mas não nas regiões metropolitanas. Há um paradoxo aí. Lembrando outro momento interessante de inovação político-social e de gestão local, por incrível que pareça, foi nas grandes cidades, nas regiões metropolitanas em que elas mais aconteceram – Porto Alegre, São Paulo e municípios de sua região metropolitana, como Diadema. Por que isso? Porque nas regiões metropolitanas é onde se concentra também um capital crítico, cultural, tecnológico, social e político muito forte. Não acho que seja um problema de escala; não foi nos pequenos municípios, nas pequenas cidades que tivemos, por exemplo, instrumentos como orçamento participativo em seus tempos de glória, não o que ele virou depois disso. Não acho que seja um problema de escala, que haja uma espécie de comunitarismo, que então dá para fazer uma gestão comunitária onde você tem um tête-à-tête, não. Acho absolutamente possível e necessário neste momento percebermos que os movimentos de experimentação reais já estão ocorrendo pela própria sociedade. O processo de apropriação dos espaços públicos na cidade de São Paulo não foi uma iniciativa da gestão, e sim uma iniciativa e um movimento da própria sociedade com que a gestão – no caso, a gestão Haddad – se relacionou, percebendo seu potencial e a fortalecendo. Do que você está falando? Processos de ocupação dos espaços públicos são uma coisa supergenérica. Nos anos 1990, os anos negros da crise e da miséria produtiva, de desemprego, o crescimento da cidade se deu por meio de muros, enclaves fortificados, shopping centers, condomínios e, assim, houve um esvaziamento dos espaços públicos, dos espaços de convívio. A cidade de São Paulo se transformou fisicamente com esse modelo, e começamos a ver nos últimos anos iniciativas dos próprios cidadãos, da própria sociedade, de retomar a cidade, a calçada, a praça, o lugar de convívio, de rejeitar esse modelo, embora ele ainda seja dominante. Foi graças a movimentos da própria sociedade que surgiu esse movimento pelo uso da bicicleta, pela humanização do trânsito. A gestão municipal precisa se ligar nesses movimentos de transformação ativados pela própria sociedade para extrair deles políticas públicas que consigam oferecer respostas a esses movimentos. Dei um exemplo de um processo que parte de uma leitura de que está havendo uma transformação na própria sociedade que induz a políticas inovadoras, dá força a elas. Temos mil exemplos, até em questões como financiamento coletivo colaborativo, autogestão, autotransformação. Não é o do it yourself no urbanismo, tudo fragmentado, cada um faz a cidade do jeito que quiser, não é isso; mas temos outras formas de financiar iniciativas de projetos. Se vier a ocorrer a aprovação da PEC 241, que limita o gasto social àquilo que foi despendido no ano anterior mais a inflação, vai haver um corte muito grande no repasse de recursos para os municípios nas áreas de educação, saúde, assistência social e várias políticas. Como esses novos prefeitos vão se virar com isso? Uma questão não equacionada no Brasil é nosso modelo federativo, o tema do financiamento desse modelo. Hoje, na verdade, os municípios têm baixíssima autonomia e vivem basicamente de transferências federais e estaduais. Transferências obrigatórias e compulsórias com percentuais preestabelecidos para educação e saúde, e transferências voluntárias, muito mediadas politicamente. Com a PEC 241 isso cairá, não será mais obrigatório. Sim, mas o município vive dessas transferências ou de transferências voluntárias. O exemplo que posso dar é o que ocorreu nas cidades quando foi lançado o Minha Casa, Minha Vida. As poucas cidades que tinham políticas municipais locais pararam imediatamente de praticá-las por causa do Minha Casa, Minha Vida. A pergunta dos prefeitos nesses últimos anos, e isso foi péssimo, não era: “Do que minha cidade está precisando, quais são suas necessidades e como eu vou enfrentá-las?”. A pergunta era: “Que oferta eu tenho do governo federal, o que você pode me dar aí? Ah, um ginásio! Beleza, então vou fazer um ginásio. Ah, um equipamento para reciclar lixo! Ótimo, vou fazer. Umas casas das construtoras do Minha Casa, Minha Vida! Maravilhoso, eu passo a lista, vocês fazem a casa e eu inauguro”. É verdade que não havia tantas políticas municipais assim virtuosas para serem desmontadas, porque essa equação do financiamento é uma equação não resolvida já desde a Constituição. Nós lutamos tanto pelos planos diretores municipais! Eles valem alguma coisa hoje? Os planos diretores municipais são, como toda esfera da regulação e da legislação, arenas de conflito, e não projetos efetivos de cidade. Eles podem ser apropriados, e muitas vezes o são, nas lutas e nas resistências do cidadão para defender qualidade, inclusão etc., e também são utilizados para introduzir projetos, abrir frentes para o capital financeiro, para o complexo imobiliário financeiro. Em sua maioria, os planos diretores são verdadeiros frankensteins. São uma mistura porque tiveram de ser aprovados nas câmaras. Eles apostam e têm instrumentos em duas direções: uma para desmontar e bloquear tudo o que o outro faz, então são uma arena de conflito no momento da elaboração, e são uma arena de conflito também nos momentos subsequentes, que são de aplicação. Esses famosos anos 1990 não desmontaram também a capacidade técnica de planejamento das prefeituras? Mesmo quando há uma oportunidade de financiamento, muitas vezes a cidade não tem um projeto para apresentar. Como você vê isso? Essa foi a grande justificativa utilizada pelo governo federal, particularmente pelos governos Lula e Dilma, para lançar projetos e políticas que dispensam a capacidade de planejamento e gestão dos municípios, porque elas não existem. Então como é que construímos uma capacidade de planejamento e gestão se as políticas têm de dar resultado rápido, em quatro anos, e é no período eleitoral que tudo tem de dar resultado? Então não se faz nada que dê muito trabalho, como construir uma capacidade de planejamento e gestão. Em um momento mais complexo de crise, em que não vão existir essas ofertas, não existe uma saída fácil e rápida que garanta a reeleição. É preciso inventar de alguma forma e eventualmente reconstruir uma capacidade de planejamento. O cenário hoje das prefeituras, principalmente das cidades grandes, é de tudo muito terceirizado, nada é o próprio município que faz. O município fica extremamente amarrado, porque a legislação toda que rege o Estado, no Brasil, não deixa quem está no Estado fazer nada. É muito difícil, muito difícil. Em nome do combate à corrupção, da fiscalização e do não desvio de recursos, engessou-se totalmente o Estado. E o paradoxo é que isso não acabou com a corrupção, pelo contrário! Isso matou a capacidade de ação do Estado e privatizou-o para que este funcionasse como um veículo de transferência de fundos públicos para as empresas privadas, que sustentam a reprodução política das coalizões e dos mandatos. Esse é o enrosco em que nos encontramos hoje. É engraçado porque, no Brasil, o modelo demoniza o Estado, mas o fundo público pode ser largamente utilizado. Essa é uma diferença grande do modelo neoliberal, de como ele é aplicado no Brasil em relação a outros lugares do planeta, inclusive na área de desenvolvimento urbano. PPP 100% financiada pelo fundo público dos trabalhadores – quando apresentei isso num congresso internacional, com participantes do mundo inteiro, as pessoas falavam: “Não é possível, é mentira”. Aí perguntaram: “Como os trabalhadores deixam?”. Eu dei risada, porque no Brasil temos essa especificidade de privatização do Estado, do fundo público. O modelo afirma que o Estado é ineficiente, incapaz de gerir, então a resposta é justamente deixar isso tudo na mão do privado, sem nenhuma mediação. É a democracia direta do capital, como diz Carlos Vainer. Eu acho que são ondas das chamadas best practices urbanas que vão vir, e não estamos dando a devida atenção política a elas. A questão fundamental é universalizar. Você pode até criar um mercado disso ou daquilo, mas como você universaliza isso? Como isso é para todos? Não dá para ser para todos, há um limite. Então é sobre isso que as prefeituras e os governos vão ter de dar uma resposta para esses cidadãos que são vistos como descartáveis, cidadãos que não vão ter acesso a isso. Estou vendo uma capacidade muito grande aqui no Brasil, diante de situações de crise, de inventar, mobilizar, criar, imaginar. É o país do puxadinho: uma improvisação que vai surgindo e se experimentando, e com coragem de fazer isso. Há um lado ruim, pois poderíamos planejar e fazer tudo direito, mas há o outro lado, que é o pragmatismo mesmo, a capacidade de as pessoas se engajarem, terem energia para isso. Eu vejo que a juventude hoje tem muito mais acesso à informação, à comida, a muita coisa que as juventudes das gerações anteriores não tiveram; ela tem uma capacidade enorme não só de reivindicar, mas também de fazer. Agora é dar tempo para que essa geração constitua lideranças novas, novos agrupamentos políticos e coalizões, e consiga promover transformações aqui no Brasil. De certa maneira, estamos em melhor condição do que outros países, até porque já conhecemos isso, já sabemos o que é viver sob a crise fiscal, o que é viver sem recurso etc. Isso dá certa esperança. Vão ser anos difíceis, anos duros, até conseguirmos sair do cadáver..., mas acho que temos uma perspectiva de longo prazo pela frente.
Silvio Caccia Bava
Diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique BrasilIlustração: João Montanaro |
sábado, 1 de outubro de 2016
Le Monde: A disputa pela cidade
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