pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO. : Da ponte pra cá: Gilvan Eleutério
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quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Da ponte pra cá: Gilvan Eleutério

 


Da ponte pra cá: Gilvan Eleutério
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Você conhece algo da cena artística do velho oeste paulista? Já ouviu falar do Museu do Sol, primeiro museu de arte naïf da América Latina (localizado em Penápolis) ou da roça elétrica da banda Mercado de Peixe (formada em Bauru?)

Hoje é dia de um rolê pelas quebradas do cerrado paulista, ali onde o estado encontra-se com o Mato Grosso do Sul. Nosso anfitrião nesse corre é o escritor Gilvan Eleutério, que já fez um pouco de tudo nessa vida: foi segurança de boate, professor de Muay Thai, trabalhador de frigorífico e mc de rap:

Quando penso em Penápolis, primeiramente lembro da Vila Altimari, Planalto, Vila São João, Aparecida, Jardim Pevi, Mutirão, vilas no qual conheci muitas pessoas que realmente  valeram a pena conhecer nessa breve existência. Frenquentei lugares que facilmente poderiam ser cenários de filmes e séries, pela carga cultural e emocional, como o clube Corinthians, Zoom Night Club, Bar do Jhow, Chaparral, River’s Bar, Bar do Nory, entre outros.

O cenário alternativo, underground, sempre foi muito forte, pois nas periferias sempre alguma coisa acontecia, sendo eventos, festa em bairros, festivais em praças, ou nas mesas de boteco, o cenário cultural sempre foi de resistência. Conheci muita gente, grupos de rap e bandas de rock que o mundo deveria conhecer, porém poucas sobreviveram devida à dura realidade de ter que pensar primeiramente no trabalho para ter comida no prato, e sempre deixar para depois os sonhos e aquilo que realmente te faz feliz. 

No cenário atual a quebrada conta com muita gente boa, Big G com suas letras de rap contundente e rimas inteligentes, com o mestre Bylla nas ilustrações, Praga de Mãe no cenário punk, Q.O.E.S grupo de rap de respeito, Calibre100 Porte também pra fechar os monstros do cenário.

O mundo devia conhecer não  só eles, mas valorizar e procurar conhecer aqueles que fazem parte de uma cultura verdadeira e sincera, que mesmo nas adversidades conseguem produzir um conteúdo muito bom, longe dos padrões impostos por gravadoras e grande mídia.

Gilvan é um contista com sangue no olho, linguagem dura e dono de histórias passadas nas quebradas do interior. Alguma semelhança com a prosa de Charles Bukowski é mera semelhança de vivência, porque o contista de Piquete nunca leu o “velho safado”. Participou, no entanto, da antologia “Geração 2010: o sertão é o mundo” (Editora Reformatório, 2021). Para nossa série “Da ponte pra cá”, colaborou com outra história curta “O dragão trabalha, se São Jorge vacila”, que você lê no final deste texto.

Capa da antologia "Geração 2010: o sertão é o mundo"
Capa da antologia “Geração 2010: o sertão é o mundo”

Gilvan, o que você pensa quando pensa nos territórios em que foi criado no interiorzão de São Paulo?

Nascido em Piquete, pequena cidade localizada no vale do Paraíba no estado de São Paulo, depois da separação dos meus pais, fui para Penápolis, outra pequena cidade, localizada no noroeste paulista, cruzando literalmente o estado, morei lá por 30 anos, quebrada de respeito, região 018, onde sua realidade não era compatível com seu tamanho, pois lá aconteciam fatos dignos de uma metrópole. Na minha caminhada por lá, conheci pessoas, histórias, vivi situações e sobrevivi para contá-las. Participei de movimento estudantil, movimento punk, movimento hip-hop, trabalhei por exatamente 10 anos de vigilante, especialmente 8 anos na vida noturna.

Nesse caldeirão de emoções, com manifestações, tretas, romances, amigos presos e assassinados, sempre procurei observar na triste realidade algo a mais, olhar para cada acontecimento como uma história particular, singular e tentar passar para o papel os sentimentos que foram vividos nesses momentos.

São demais as quebradas dessa vida, já  cantou o poeta. Para encerrar a prosa com o Gilvan Eleutério, lemos um conto do artista, nascido em Piquete, mas criado a vida toda nas vilas de Penápolis:

O dragão trabalha, se São Jorge vacila

_ Nossa como está frio!!
_ Está mesmo.
_  Boa noite, senhor…O vento gelado envolve meu corpo, arrepios, apenas uma camiseta preta… Puxa, devia ter ouvido minha mãe: “Leva a blusa que vai fazer frio”. Dona Maria é uma rainha. Mães… Quando não as ouvimos a gente se fode.
Mais uma noite, mais alguns trocados, assim logo terei minha carta de habilitação. Mil conto, puta que o pariu, caro pra caralho._ O parceiro aonde é o banheiro?
_ É logo ali…Putz, nem um obrigado. Pessoas começam a entrar, estou só essa noite, que Deus me proteja e São Jorge também, tenho confiança nele, já me salvou de várias tretas._ Pois não, senhor?
_ Opa! Tranqüilo? Viu… Quantas mulheres tem hoje?
_ Hoje estamos trabalhando com seis, senhor.
_ Humm bom… Quanto é a entrada?
_ Senhor R$ 10,00 e tem direito a três cervejas!
_ Porra, tá caro!!!Mão de vaca do caralho, tem quatro fazendas, canavieiro, tem dinheiro e tá reclamando._ Eu pago, vou entrar
_ Sim, senhor, aguarde que vou efetuar a revista no senhor.
_ Tem isso também?
_ Senhor, guarde a arma no carro, por favor.
_ Olha garoto vou ficar com elaPuta merda, só falta encrencar agora._ Senhor… Com arma não entra.
_ Faz assim, fica com ela pra mim, depois eu pego.Nossa, mais uma, já não basta a minha? Cara folgado… Ambiente escuro, a música toca na máquina. R$1,00: mais uma música… Assim a madrugada vem, lenta e traiçoeira. Me assusto com uma barata no meu pé, filha da puta vou te dar um tiro. Clientes e mais clientes, homens casados, homens separados, homens… Todos solitários e carentes, sem sorte no amor, frustrados. Puxa mais um striptease, cansei de vê-las, vou ver a lua, faz mais tempo que não a vejo.

_ Careca tem um cara cheirando no banheiro, porra, te pago pra que? Ficar xavecando a Lua?

Nossa! Mas já? A noite vai ser longa.

_ E, ai, irmão, firmeza? Então, se quiser cheirar vai lá fora, aqui não dá.
_ É rapidinho, só tem uma carreira. É um, dois.
_ Não dá, ou você cheira, ou você vai embora.
_ É rapidinho.

Não acredito que ele vai encher minha paciência logo agora.

_ Você vai cheirar? Então deixa eu ver essa carreira, vai.

O idiota ainda mostra. Uma carreira grande e gorda em cima da tampa do sanitário.

Fuuuuuuuuuuuuuhhhhhhhhh, um leve assopro resolve, que dó.

_ Caralho, irmão, era meu último papelote
_ Foda-se, pra fora!
_ Firmeza… Vou te encontrar ainda.

Vai ter que pegar senha, a fila pra me matar ta grande. Volto para a portaria, de um lado um copo de uísque, do outro um recipiente com alho e sal grosso, espanta mal olhado e atrai mais cliente. Estou com fome, que horas são? Quase 2 da manhã, nossa tem chão ainda pra noite acabar.
Adoro essa música, Jenifer Lopez Love Don’t Cost a Thing, já sei quem a colocou. Primeira dedução e acerto, olho a máquina de música e lá está ela, Luciana. Morena clara, estatura mediana, cabelos até os ombros castanhos claros, hoje ela está mais moderada, veste um vestido branco um palmo antecedendo o joelho, sem sutiã, com uma sandália de salto. Sou louco por ela, meus olhos brilham ao notar sua presença, um leve sorriso aparece no canto da minha boca, tento esconder a satisfação em vê-la, mas não dá, pareço pit bull ao ver o dono.

_ Olá moço, tudo bem? Me dá um abraço.
_ Oi, como você está?

Abraço Luciana e sinto seu cheiro. Ela me dá um leve beijo, fico parado e aproveito o momento, logo volto a mim e percebo que alguém se aproxima, é o patrão. Fodeu, ele não gosta que me envolva com as meninas em hora de serviço, espanta os clientes.

_ Vai para a portaria, Careca.
_ Sim, senhor!

Nossa, falo senhor o tempo inteiro, quando será que me chamarão de senhor? A última vez que me chamaram de senhor foi quando o sargento no quartel me colocou de guarda: “Parabéns, senhor, acaba de ganhar um final de semana no quartel !”. Gente fina, o sargento, ensinou-me muitas coisas.

_ Briga!!! Briga!!!

De repente ouço gritos, minha barriga gela, meu coração dispara, os olhos começam a ficar vermelhos… É agora, a adrenalina domina meu corpo, em instantes chego no balcão, a confusão está armada, são dois, respiro, consigo dominar um, o outro se afasta, levo o cliente pra fora, ele nada fala, segue em direção ao seu carro, abre a porta e mexe debaixo do banco, sem vacilar pego minha arma engatilho e espero. Minhas pernas tremem, a respiração incontrolável, quando ele se levanta vejo um objeto em sua mão, não consigo identificar. O cliente se aproxima… Mais um passo e revelo meu guardião.

_ Aí, irmão, perdeu, fica parado ai mesmo, larga isso e deita no chão.

Ele não obedece…

_Parado, porra, caralho, parado!

Parou, largou o objeto e deitou-se. Puta que o pariu, era um simulacro, uma arma finta, arma de brinquedo.

_ Seu merda, ia me matar com isso? _ Dou um tiro para o alto. _ Corre seu cuzão, entra no carro e vaza.

Em minutos ele não esta mais lá. Não foi dessa vez, agradeço a Deus e a São Jorge pela proteção, estou cansado, a adrenalina em excesso cansa, volto para dentro do estabelecimento e olho no relógio, são 5 horas, acabou.

_ Ae, tio, tá na hora, passa o cadeado na porta.
_Sim, senhor…

Mais uma noite, mais alguns trocados. Logo terei minha carta de habilitação.  Mil conto, puta que o pariu, caro pra caralho.


(Publicado origilmente no site da Revista Cult)

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