pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: Ensaio: Sobre homens medíocres e violência
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sábado, 6 de novembro de 2021

Ensaio: Sobre homens medíocres e violência



 Desde a década de 1970 — pelo menos de forma mais sistematizada na universidade e nas críticas literária e de cinema —, pesquisadoras feministas buscam pensar escritas e olhares que estejam fora da lógica hegemônica, esta que foi boa parte construída pela figura intelectual masculina e branca. Em 1975, no ensaio Quando da morte acordamos: A escrita como re-visão,[nota 1] a estadunidense Adrienne Rich (1929-2012) aponta que o “ato de olhar para trás, de ver com um novo olhar, de entrar em um texto a partir de uma nova direção crítica” é uma questão de sobrevivência para quem se identifica como mulher. Portanto, o substantivo modificado re-visão seria uma ferramenta para não apenas compreender as pressuposições enraizadas sobre uma ideia de feminino ao longo do tempo, mas também de encontrar novas formas de existência, principalmente pela via da linguagem.

Seguindo com Rich e sua ideia de crítica que pensa obras como um indício de como vivemos em todos os tempos verbais, percebo vários “pontos em chama” de escritoras trabalhando com a violência na linguagem. Digo em chama pensando na argentina Mariana Enriquez e no (último) conto que dá título ao livro As coisas que perdemos no fogo (Intrínseca, tradução de José Geraldo Couto). Colocar o corpo em chama como forma de sobrevivência seria uma boa metáfora para a busca empreendida por muitas mulheres de re-visar as formas de escrever a violência em sua amplitude de significados. Seja de forma experimental ou trocando as chaves da construção narrativa tradicional, a literatura de gênero — que abarca desde o terror, suspense, fantasia até ficção científica e/ou especulativa — tem sido um dos lugares mais interessantes para colocar em funcionamento a prática proposta por Rich, justamente por serem marcadas por tropos pré-determinados.

Ao ler Nada vai acontecer com você (2021, Companhia das Letras), de Simone Campos (foto), me senti instigada a mobilizar algumas leituras e apontamentos sobre lógicas de violência em narrativas. O enredo geral do livro trata de uma série de mistérios pessoais, desvendados entre duas irmãs, Lucinda e Viviana, a partir do momento em que a segunda é sequestrada por um homem com quem saiu algumas vezes. Em um primeiro momento, as duas personagens não são muito diferentes de estereótipos da literatura contemporânea brasileira de classe média: moradoras do Rio de Janeiro, nascidas nos anos de 1980, preenchidas no texto por várias referências das décadas de 1990 e 2000, vivendo crises com seus corpos, sexualidades, afetividades etc. Apesar de tenderem a ser achatadas pela sua classe, ambas não são mulheres padrão e, conforme os capítulos se desenvolvem — recebem o nome de cada uma das irmãs —, vão surgindo vários elementos que as complexificam e que ajudam a criar uma lógica ficcional de aproximação com quem lê.

Contudo, a operação de re-visão mais interessante na leitura do livro acontece quando o olhar muda para um punctum diferente de cenas consideradas clássicas na literatura de gênero. Acostumada a lidar com a figura quase que sedutora do abusador (inteligente e ardiloso se pensarmos, por exemplo, em Hannibal Lecter, criado pelo escritor Thomas Harris e raramente visto como aquele que abusa), aqui encontrei um capítulo inteiro dedicado à vítima, de um sequestro — Viviana, uma mulher lésbica, prostituta e neurodivergente — estabelecendo um jogo mental com um homem jovem e tolo, um agroboy muito confiante de ser o cara certo para salvar uma mulher que tem tudo para ser o seu par perfeito.

Se alargarmos a ideia de indício, proposta por Adrienne Rich, e considerarmos as técnicas narrativas como parte formativa desses vestígios, é possível pensar Davi, o sequestrador, como indício de violência. Mesmo que ele próprio não seja quem sequestra, amarra e grita com a vítima: ele é quem manda e faz parte de uma genealogia de mandantes, assim como ele também é o dispositivo para o recorte da história das duas irmãs, seus segredos e o suspense que se desenrola. Porém, não mais com o foco no abusador como o Barba Azul do conto de fadas homônimo: agora mais como em A câmera sangrenta (TAG, tradução de Adriana Lisboa), na reescrita do conto de fadas feita por Angela Carter (1940–1992). Na construção de Simone Campos, a vítima não precisa apenas achar meios de sobreviver, mas também de não perder chances de analisar (e nos entregar) o retrato de um homem medíocre quando jovem.

Nada vai acontecer com você é dividido em quatros partes, sendo que a segunda é dedicada à narração, em primeira pessoa, de Viviana em cativeiro. A oportunidade de conhecer Davi pela visão dela também é um indício deixado pela autora para quem lê: um dos mais banais dos homens, em uma história que parece corriqueira sobre obsessão e desejo, é um potencial estuprador e assassino. Neste capítulo, rapidamente ele se torna um clássico irritante, mergulhado em uma banheira de tentativas clichês de se mostrar um homem que acredita ser “progressista” porque possui capital cultural. Davi não mede esforços para provar que é interessante, porém apenas reforça a certeza de que é um abusador e não tem nada de fascinante. Pelo contrário, damos gargalhadas às custas desse homem que se esforça tanto para ser o ideal. Por exemplo, há um momento em que ele lê a Odisseia, de Homero — no meio de um sequestro — na tradução considerada feminista feita pela inglesa Emily Wilson (que não é exatamente mencionada), tentando deixar claro que ele não é simplório e sim uma espécie de aliado. Essas piscadelas de Viviana, assim como as referências utilizadas pela autora ao longo da obra e compreendidas por diferentes leitoras pela via da familiaridade, também são formas de brincar com a mesma prática usada por escritores homens a fim de revelar personagens eruditos e, consequentemente, narcisistas.

Sobre homens medíocres e narcisistas, pode-se pensar na obra On violence and on violence against women (2021), da acadêmica inglesa Jacqueline Rose, que se vale de um trecho de discurso proferido pelo atual presidente brasileiro, em março de 2020, para compor uma das duas epígrafes da obra. No trecho, o dirigente afirma que a população deve enfrentar a crise desencadeada pela covid-19 como “homens e não como moleques”. Na introdução do livro, a autora vai lançar mão várias vezes às falas dele e de outros chefes de Estado para tratar da violência do discurso. Para ela, apoiada em Freud, esses homens que têm algum tipo de poder — de classe, posição política e afins — são narcisistas porque acreditam que o “mundo inteiro está a seus pés” e a agressividade é o resultado da percepção de que a violência é um direito deles, já que de forma alguma estão abertos ao diálogo. Para finalizar, a autora cita Hannah Arendt, em As origens do totalitarismo (1951), afirmando que homens que não conseguem agir e mudar, têm uma tendência distinta à destruição.

Pode parecer exagerado comparar atitudes de um homem jovem medíocre, personagem de um livro, com as de fascistas reconhecidos. Porém, a formação de todos passa pelas mesmas cartilhas da heteronormatividade e masculinidade hegemônica. Rose também cita o trabalho do fotógrafo Andrew Moisey com as fraternidades universitárias nos Estados Unidos, que coloca fotos escatológicas de festas e rituais de passagem, repletas de rostos ainda anônimos, ao lado de retratos de presidentes daquele país que passaram por esses grupos ao longo da História. Não há como definir um abusador ou figura violenta, por isso boa parte das narrativas policiais gosta de brincar sobre quem poderia ter matado determinada personagem e sua capacidade de camuflagem; porém o corpo da vítima é sempre um, facilmente identificado.

Percebo que a questão de a figura do abusador (com todos os nomes que pode levar: estuprador, serial killer, feminicida) ser um tropo corriqueiro na literatura e no audiovisual é um dos pontos em que escritoras têm exercitado a subversão. Há, por exemplo, alguns diálogos entre o livro de Simone Campos e os outros dois da estadunidense Carmen Maria Machado, publicados no Brasil, principalmente no exercício da construção da violência pela via da linguagem. Além de serem da mesma geração, ambas trazem para a ficção várias referências da cultura de séries, filmes, jogos e música que acabam se embrenhando no senso comum, normalizando situações de abuso, assédio e violência, por exemplo. No conto Especialmente hediondas, do livro O corpo dela e outras farras (Planeta, 2018; tradução de Gabriel Oliva Brum), a estadunidense recria sinopses da série policial popular Law and order SVU — uma variante dedicada aos crimes sexuais — a fim de ressaltar e ressignificar a espetacularização do corpo violentado em cena como dispositivo de narrativa.

Entre a fantasia, o fragmento e a violência hiperreal, Carmen arrasta quem lê pelo conto mais longo do livro, e justamente por isso duas possibilidades se abrem: ou se foge do conto pela dificuldade da leitura, longa e experimental, ou se torna obcecada em conseguir juntar suas peças — a indiferença não é uma opção. Jacqueline Rose dedica um ensaio inteiro de On violence and on violence against women para pensar a fragmentação de discursos de violência em textos escritos por mulheres desde o modernismo europeu. Para ela, há uma relação entre o experimento da linguagem e a violência no mundo contemporâneo: qual é a diferença entre uma frase truncada e uma vida truncada?

Pesquisadoras de vários campos veem na experimentação uma ferramenta interessante para escrever em situação de crise e violência. A própria Carmem Maria Machado é um dos exemplos mais interessantes, não apenas por esse conto, mas também pelo seu livro mais recente traduzido para o português brasileiro. Na casa dos sonhos (Companhia das Letras, 2021; tradução de Ana Guadalupe) a autora tenta elaborar as memórias de um relacionamento abusivo com uma ex-namorada, construindo de forma que não seja apenas um relato, mas também uma série de indícios sobre violência e abuso doméstico vividos por casais LGBTQI+. O livro faz uso de diversos gêneros literários e é dividido em dezenas de fragmentos. Em um dos primeiros Carmen diz que “histórias impossíveis” só podem ser narradas no subjuntivo, justamente porque podem gerar dúvidas e possibilidades em relação à memória e ao testemunho. É interessante pensar que esse mesmo subjuntivo é usado contra o discurso de depoimento dado por uma mulher vítima de violência, algo que também está presente no último capítulo de Nada vai acontecer com você.

Estes são alguns pontos que mostram um frescor — que não foge de uma espécie de genealogia — na literatura contemporânea escrita por mulheres e que buscam escrever de dentro das crises. No mais, nem a linguagem e nem o mundo estão a salvo, diria Jacqueline Rose. Trocar de lugar as chaves narrativas, usar a fantasia, experimentação textual e tirar a pessoa que lê do seu lugar de conforto é colocar foco sobre determinados indícios e isso é um bom começo para re-visar e sobreviver.


NOTAS

[nota 1] Ensaio traduzido por Susana Bornéo Funck e que faz parte da publicação Traduções da Cultura: Perspectivas feministas (1970–2010) (Editora Mulheres /EdUFSC /EdUFAL, 2017), que já se encontra esgotado.

(Publicado originalmente no site do Jornal Literário Pernambuco, editado pela Companhia Editora de Pernambuco)


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