“Ideias de Kollontai reacendem necessidade de uma saída do horror capitalista”, diz pesquisadora
Por Redaçãomaio 13, 2014 13:28
Em entrevista à Fórum, Diana Assunção fala sobre o livro “Mulher, Estado e Revolução”, de Wendy Goldman, que aborda os avanços da luta das mulheres após a revolução de 1917 na Rússia
Por Marcelo Hailer
Diana Assunção, que assina o prólogo do livro “Mulher, Estado e Revolução”, de Wendy Goldman,que estará no Brasil na próxima semana, recém-lançado pela edições Iskra em parceria com a Boitempo, acredita que a obra dialoga diretamente com o cenário político atual do Brasil. O livro, que recebeu o prêmio Berkshire Conference, examina as mudanças sociais pelas quais passou a sociedade da União Soviética nas duas décadas após a revolução de 1917, com foco nas mulheres.
“Em um momento em que nosso país entrou em consonância com as revoltas internacionais da classe trabalhadora e da juventude, após o que ficou conhecido como ‘jornadas de junho’ e as atuais ondas de greve, como a dos garis do Rio de Janeiro, acredito que trazer o livro ao público brasileiro é um enorme aporte para a luta das mulheres”, avalia Assunção, que é também autora dos livros A precarização tem rosto de mulher, que trata da greve das trabalhadoras terceirizadas da USP, e Lutadoras – Histórias de mulheres que fizeram história.
Assunção conversou com a Revista Fórum sobre a importância da publicação de Goldman no Brasil e o legado das feministas bolcheviques. As propostas de Alexandra Kollontai (foto acima), principal dirigente bolchevique da Revolução Russa, também estão no centro do debate proposto pela obra.
Kollontai defendia a ideia da construção de uma nova mulher, uma nova moral e o “amor-camarada”, que existiria para além das relações matrimoniais. Para Assunção, as ideias da dirigente bolchevique são “uma das tentativas de refletir como deve se dar as relações humanas numa sociedade sem exploradores e explorados”. “Que homens e mulheres possam pensar, por eles próprios, como são as relações afetivas sem o jugo capitalista é o mais avançado que uma sociedade comunista pode oferecer”, afirma a ativista. Confira a entrevista a seguir.
Fórum – Qual a importância da tradução de “Mulher, Estado e Revolução” no Brasil?
Diana Assunção - Em um momento em que nosso país entrou em consonância com as revoltas internacionais da classe trabalhadora e da juventude, após o que ficou conhecido como “jornadas de junho” e as atuais ondas de greves, como a dos garis do Rio de Janeiro, acredito que trazer o livro ao público brasileiro é um enorme aporte para a luta das mulheres. Temos visto já há alguns anos uma efervescência nos temas relacionados à luta dos setores oprimidos da sociedade, como as mulheres, e em cada debate podemos ver que existem diferentes estratégias sobre como encarar estas questões. O que a obra traz, de forma inédita e completamente distinta da biografia feminista existente no país até hoje, é uma visão concreta e contundente dos reais avanços que a Revolução Russa de 1917 trouxe no âmbito dos direitos das mulheres. Demonstra, com dados científicos, que estes avanços não estavam descolados de uma luta superior pelo fim da sociedade de exploração na qual vivemos hoje.
Diana Assunção - Em um momento em que nosso país entrou em consonância com as revoltas internacionais da classe trabalhadora e da juventude, após o que ficou conhecido como “jornadas de junho” e as atuais ondas de greves, como a dos garis do Rio de Janeiro, acredito que trazer o livro ao público brasileiro é um enorme aporte para a luta das mulheres. Temos visto já há alguns anos uma efervescência nos temas relacionados à luta dos setores oprimidos da sociedade, como as mulheres, e em cada debate podemos ver que existem diferentes estratégias sobre como encarar estas questões. O que a obra traz, de forma inédita e completamente distinta da biografia feminista existente no país até hoje, é uma visão concreta e contundente dos reais avanços que a Revolução Russa de 1917 trouxe no âmbito dos direitos das mulheres. Demonstra, com dados científicos, que estes avanços não estavam descolados de uma luta superior pelo fim da sociedade de exploração na qual vivemos hoje.
O livro permite compreender que foi justamente a classe operária tomando o poder que avançou nos direitos mais elementares das mulheres, legalizando o aborto e o divórcio, acabando com a perseguição a homossexuais e prostitutas, socializando as tarefas domésticas para livrar as mulheres da chamada “dupla jornada” de trabalho. Colocava que, ainda assim, era preciso conquistar não somente a igualdade perante a lei, mas perante a vida. Este era o pensamento bolchevique. Em meio à guerra civil, os bolcheviques defendendo a manutenção do Estado Operário em transição para lutar pela revolução a nível mundial, estavam também debatendo como a família seria organizada, como as crianças seriam criadas, como as mulheres podem estar nos cargos de poder do Estado Operário avançando contra toda a alienação do trabalho doméstico. Na história da democracia burguesa não nada que tenha avançado tanto nos direitos das mulheres.
Por isso, este é um livro militante, não é um livro para ficar nas bibliotecas, mas um livro para mostrar para a juventude de hoje, às mulheres e às novas gerações da classe trabalhadora, que os operários e operárias russas, que tomaram o céu por assalto, chegaram muito perto de destruir as amarras da opressão e permitir a beleza da vida, sem exploração e violência.
Fórum – A impressão que temos é que a ideia senso comum em torno da revolução vermelha e da consequente proposta de sociedade comunista se perdeu. Por exemplo, pouco se diz a respeito da proposta de união livre, a construção de uma nova moral, da criação socializada das crianças etc. Em sua opinião, por que tais propostas caíram no esquecimento?
Assunção - A década de 1990 foi uma década que podemos chamar de “restauração burguesa”, ou seja, um período de avanço neoliberal contra a classe trabalhadora e todas as suas conquistas, que teve seu correspondente também no campo ideológico. Buscou apagar da memória e da história a ideia de que é possível existir uma revolução operária triunfante, se apoiando no que ficou conhecido como “socialismo real”, tratando dos ex-Estados Operários burocratizados do Leste Europeu e da própria Rússia. A burguesia internacional, com o apoio de muitos intelectuais, inclusive que se diziam de esquerda, disseminaram a ideia de que a classe operária não existia mais, que se tratava do “fim da história”.
Assunção - A década de 1990 foi uma década que podemos chamar de “restauração burguesa”, ou seja, um período de avanço neoliberal contra a classe trabalhadora e todas as suas conquistas, que teve seu correspondente também no campo ideológico. Buscou apagar da memória e da história a ideia de que é possível existir uma revolução operária triunfante, se apoiando no que ficou conhecido como “socialismo real”, tratando dos ex-Estados Operários burocratizados do Leste Europeu e da própria Rússia. A burguesia internacional, com o apoio de muitos intelectuais, inclusive que se diziam de esquerda, disseminaram a ideia de que a classe operária não existia mais, que se tratava do “fim da história”.
Esta operação ideológica e o ataque concreto à classe trabalhadora, que lhe imprimiu uma “derrota moral”, deixando de se ver como classe, são responsáveis também para que se perca o ideal da revolução, ao mesmo tempo que a propaganda stalinista busca colocar um sinal de igual entre o stalinismo e o bolchevismo. O livro de Wendy Goldman é bastante preciso neste sentido e demonstra todo o retrocesso que foi levado adiante a partir da burocratização do estado operário na Rússia com Stalin à frente. No âmbito das questões da mulher, imprimiu um retrocesso, proibindo o aborto e chamando as mulheres a “voltarem pro lar”, reconstituindo um papel de mãe e esposa, que nada tinha a ver com os ideias libertários dos bolcheviques.
Aqui não se tratava de opções táticas, mas de uma diferença estratégica muito profunda entre Stalin e a Oposição de Esquerda de Leon Trotsky, uma vez que o primeiro defendia que a tomada do poder já significava que 90% da revolução estava consumada. Já Trotsky e a Oposição de Esquerda diziam que a tomada do poder era apenas o começo do processo revolucionário. Para Trotsky, era necessário levar adiante uma “revolução dentro da revolução” para conseguir alcançar uma sociedade verdadeiramente comunista, o que só poderia se dar a nível internacional, por isso uma revolução na Rússia, por mais gloriosa que fosse, tratava-se apenas do começo. Estas ideias são parte da Teoria da Revolução Permanente, que consideramos mais atual do que nunca pra responder a situação de crise capitalista em que vivemos, onde a burguesia demonstra que não pode proporcionar mais do que opressão e miséria para toda a população.
Neste sentido, as propostas mais interessantes que os bolcheviques também trouxeram à tona, como a união livre, a construção de uma nova moral e a socialização das crianças ficaram secundarizadas frente a um debate de estratégias para a revolução proletária – ao mesmo tempo que vale ressaltar que nenhuma obra havia trazido tamanha pesquisa de detalhes sobre os debates em torno destas propostas. Esse é um dos grandes trunfos desta publicação.
Fórum – Os textos de Alexandra Kollontai, principalmente o “Amor-camarada”, propõem, a partir de uma crítica estrutural, um amor que não mais aconteça apenas dentro do casamento, mas sim nas relações sociais e de forma liberta e solidária. A proposta de Kollontai ainda é uma utopia a ser buscada?
Assunção - A proposta de Alexandra Kollontai é uma das tentativas de refletir como devem se dar as relações humanas, numa sociedade sem exploradores e explorados. Que homens e mulheres possam pensar, por eles próprios, como são as relações afetivas sem o jugo capitalista é o mais avançado que uma sociedade comunista pode oferecer. Isso é impossível no capitalismo, onde todas as relações são atravessadas por dinheiro e posse. Por isso é interessante o pensamento de Kollontai, que foi uma forte organizadora das mulheres trabalhadoras a partir do Partido Bolchevique.
Assunção - A proposta de Alexandra Kollontai é uma das tentativas de refletir como devem se dar as relações humanas, numa sociedade sem exploradores e explorados. Que homens e mulheres possam pensar, por eles próprios, como são as relações afetivas sem o jugo capitalista é o mais avançado que uma sociedade comunista pode oferecer. Isso é impossível no capitalismo, onde todas as relações são atravessadas por dinheiro e posse. Por isso é interessante o pensamento de Kollontai, que foi uma forte organizadora das mulheres trabalhadoras a partir do Partido Bolchevique.
Neste sentido não considero que se trata de uma utopia, mas uma possibilidade concreta da revolução. Ainda assim é preciso destacar que Kollontai teve uma série de posições políticas oscilantes, em especial após se colocar ao lado de Stalin durante o período de burocratização, chegando a dizer que, enquanto todas as conquistas das mulheres retrocediam, ali vivia a “mulher emancipada”.
Mas, independente do posicionamento de Kollontai, as ideias que levou adiante durante os primeiros anos da Revolução Russa somente reacendem, hoje, a necessidade de debater firmemente uma saída para o horror capitalista. Cada vez mais vemos o aumento de assassinatos e estupros de mulheres, inclusive por seus próprios companheiros, num mundo onde o amor tem como objetivo a posse do outro e não o conjunto da comunidade.
Fórum – Podemos dizer que a ascensão de Stalin é a grande responsável pelo enterro da proposta revolucionária de sociedade?
Assunção - A burocratização era produto das contradições (dificuldades concretas) da revolução internacional e do próprio atraso da Rússia. Era neste cenário que Stalin deu passos contundentes no processo de burocratização do Estado Operário. A Revolução dirigida exemplarmente por Lenin e Trotsky foi uma experiência sem igual na história da humanidade. Mostrou o quanto a classe operária, com sua força, audácia e criatividade, é capaz de construir outra sociedade, se enfrentando com todos os ataques das potências internacionais que estavam em jogo.
Assunção - A burocratização era produto das contradições (dificuldades concretas) da revolução internacional e do próprio atraso da Rússia. Era neste cenário que Stalin deu passos contundentes no processo de burocratização do Estado Operário. A Revolução dirigida exemplarmente por Lenin e Trotsky foi uma experiência sem igual na história da humanidade. Mostrou o quanto a classe operária, com sua força, audácia e criatividade, é capaz de construir outra sociedade, se enfrentando com todos os ataques das potências internacionais que estavam em jogo.
Mas principalmente porque Stalin dirigiu uma burocracia, ou seja, uma casta de dirigentes que queriam viver justamente numa sociedade intermediária, que não era nem o capitalismo nem o comunismo, mas um período de transição onde eles poderiam gozar de vários privilégios e parar o processo revolucionário. Por isso defendiam firmemente a “revolução em um só país”, dizendo que tendo feito uma revolução na Rússia, já era suficiente, ou seja, 90% do comunismo estava garantido. Trotsky e toda a Oposição de Esquerda, que foi duramente perseguida e reprimida – inclusive assassinada, como no caso de Trotsky – diziam o contrário, que a Revolução Russa poderia abrir espaço pra revolução internacional inclusive se contribuísse para que países mais avançados conseguissem fazer também sua revolução em perspectiva internacionalista.
Fórum – Qual é o legado das feministas revolucionárias?
Assunção - As feministas revolucionárias, diferentemente das burguesas e até mesmo das pequeno-burguesas e radicais, têm como legado serem mulheres que romperam com toda a ideologia machista burguesa para lutarem pela emancipação das mulheres e do conjunto da sociedade, ligadas à única classe que pode dar uma resposta estratégica: a classe trabalhadora. Os movimentos feministas dos últimos 40 anos em sua maioria foram cooptados, ou se dignaram a aceitar uma igualdade de direitos por dentro do regime capitalista. Com meia-dúzia de mulheres no poder – como Dilma Rousseff –, alguns direitos e políticas públicas, muitas feministas se dizem satisfeitas, e falam de emancipação por dentro da sociedade capitalista. Outras inclusive se dedicam a debater o machismo dentro da classe operária, dos sindicatos e da esquerda.
Assunção - As feministas revolucionárias, diferentemente das burguesas e até mesmo das pequeno-burguesas e radicais, têm como legado serem mulheres que romperam com toda a ideologia machista burguesa para lutarem pela emancipação das mulheres e do conjunto da sociedade, ligadas à única classe que pode dar uma resposta estratégica: a classe trabalhadora. Os movimentos feministas dos últimos 40 anos em sua maioria foram cooptados, ou se dignaram a aceitar uma igualdade de direitos por dentro do regime capitalista. Com meia-dúzia de mulheres no poder – como Dilma Rousseff –, alguns direitos e políticas públicas, muitas feministas se dizem satisfeitas, e falam de emancipação por dentro da sociedade capitalista. Outras inclusive se dedicam a debater o machismo dentro da classe operária, dos sindicatos e da esquerda.
O que esquecem – ou querem esquecer – é que, por um lado, para aquelas que se consideram emancipadas no capitalismo, não há igualdade em um mundo baseado na desigualdade, ou seja, na exploração. Por outro lado, para aquelas que se dedicam a combater [o machismo] na classe operária, colocam um sinal de igual entre direita e esquerda, perdendo inclusive os contornos de classe, não levando em consideração justamente que a direita é ideologicamente machista. A esquerda é composta por pessoas que podem ser machistas, uma vez que continuamos vivendo numa sociedade capitalista, mas que se propõem lutar para mudar a sociedade. Neste processo, [essas pessoas de esquerda] enfrentarão as contradições para avançar, afinal, “não é possível se emancipar quem oprime o outro”. Por isso, as feministas revolucionárias que carregam a tradição bolchevique lutam para que a classe operária tome pra si a demanda das mulheres, com todas as contradições que carregam, que nada mais é do que a ideologia burguesa atuando para dividir esta classe, entre homens e mulheres, brancos e negros, homossexuais e heterossexuais.
Mas a estratégia revolucionária coloca para as mulheres a necessidade de escolher uma só classe, que deve ser a classe operária, uma classe que não tem nada a perder e que, como sujeito dirigente da revolução, pode fornecer a milhões de oprimidos de todo o mundo a possibilidade de uma vida sem opressão e exploração.
Fórum – E o que devemos a elas?
Assunção - Devemos às revolucionárias bolcheviques, que tomaram o céu por assalto, tirar as lições da grandiosa experiência da Revolução Russa e completar sua obra no Brasil e no mundo inteiro!
Assunção - Devemos às revolucionárias bolcheviques, que tomaram o céu por assalto, tirar as lições da grandiosa experiência da Revolução Russa e completar sua obra no Brasil e no mundo inteiro!
(Publicado originalmente na Revista Fórum)
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