Intelectuais que sempre fizeram o contraponto progressista reagem agora entre a indiferença e a prostração. Jorge Furtado, pergunta: quando o Brasil foi melhor?
A impressão de que o governo fala sozinho, cercado por um jogral ensurdecedor, ora raivoso, ora repetitivo, mas de qualquer forma onipresente, não é fortuita.
É isso mesmo, se a percepção se basear apenas na emissão veiculada pelos jornais, tevês e emissoras de rádio que ecoam o monólogo do ‘Brasil aos cacos’.
Mas já foi diferente? Em 1989, talvez, quando o Jornal Nacional editou o famoso debate final da campanha, às vésperas do voto? Ou em 2002, quando George Soros assegurava, com exclusividade para a Folha, que era Serra ou o caos?
Talvez em 2006, sob o cerco do ‘mensalão’? Ou então em 2010, quando a Folha se lambuzou na ficha falsa da Dilma e Serra convocou Malafaia como procônsul para assuntos relativos a moral e aos bons costumes?
Então o que mudou para que o ar pareça tão mais carregado, a ponto de ser necessário, às vezes, cortar com faca o noticiário para enxergar além da derrocada iminente que se anuncia?
Algumas coisas.
Vivemos uma transição de ciclo econômico.
Em parte pela reversão do quadro internacional, em parte pelo esgotamento de suas dinâmicas internas, o desenvolvimento brasileiro terá que se repensar para retomar uma trajetória de longo curso.
Trata-se de recompor as condições de financiamento da economia. E depurar prioridades em direção à maior eficiência logística e melhor qualidade de vida.
Não é café pequeno.
A expectativa provoca arrepios nas carteiras graúdas.
Não será mais possível, por exemplo, prosseguir apenas com o impulso das exportações de commodities, cujos preços triplicaram no mundo desde 2003 --os do petróleo quadruplicaram, mas os agrícolas cresceram mais de 50%.
Tampouco a liquidez internacional promete ser tão generosa a ponto de dissipar as contradições internas em um jorro de crédito apaziguador que tudo sanciona.
Os donos do dinheiro precificam as ameaças incrustradas nesse duplo esgotamento, que escancara a natureza paralisante da hegemonia rentista sobre o país.
Dispostos a não ceder, operam a plenos decibéis para sufocar a evidência de que seu privilégio entrou na alça de mira de uma encruzilhada histórica.
Aconteceu antes, em 32 e 53 – quase como uma revolução burguesa à revelia das elites; foi resolvido com o patrocínio do capital estrangeiro em 55; reprimido em 64; ordenado ditatorialmente nos anos 70 e terceirizado aos livres mercados nos anos 90.
A seta do tempo ensaia um novo estirão.
O desafio, antes de mais nada, é de natureza política.
A coerência macroeconômica da travessia será dada por quem reunir força e consentimento para assumir a hegemonia do processo.
Não por acaso, na abertura do 14º Encontro dos Blogueiros e Ativistas Digitais, nesta 6ª feira, Lula resumiu tudo isso em uma frase:
‘Sem reforma política não faremos nada neste país’.
E ela terá que ser construída pela rua. ‘Por uma Constituinte exclusiva’, adicionou o ex-presidente da República: ‘Porque o Congresso que está aí pode mudar uma vírgula aqui, outra ali. Mas não a fará’.
Não é um capricho ideológico.
Trata-se de dar consequência institucional às demandas e protagonistas que iniciaram a longa viagem à procura de um outro país, a partir das greves metalúrgicas do ABC paulista, nos anos 70/80.
E que agregaram mais 60 milhões de brasileiros pobres a esse percurso desde 2003.
Um passaporte da travessia consiste em regenerar a base industrial brasileira.
E tampouco aqui é contabilidade.
Para a economia gerar empregos e salários de qualidade, ademais de receita fiscal compatível com as urgências sociais e logísticas, é vital recuperar o principal polo irradiador de produtividade em um sistema econômico.
O pressuposto para um aggiornamento industrial é juro baixo, câmbio desvalorizado e controle de capitais.
Grosso modo, esse é o tripé que afronta o outro, da alta finança, baseado em arrocho fiscal, câmbio livre e juro alto.
Todo o círculo de interesses que orbita em torno do cassino está mergulhado até o pescoço na guerra preventiva contra o risco de uma reciclagem subjacente à eleição de outubro.
Essa é uma singularidade que distingue e radicaliza a presente disputa sucessória --feita em condições internacionais adversas-- a ponto de tornar o ar quase irrespirável.
Por trás dos ganidos emitidos pelo colunismo isento (ideológicos são os blogueiros) há um cachorro grande a soprar seu bafo sobre o cangote da sociedade.
O capital rentista.
Ele lucrou, limpo, acima da inflação, 18,5% em média, ao ano, no segundo governo FHC.
Faturou 11,5%, em média, no segundo governo Lula.
E, já impaciente, entre 3,5% e 5% agora, sob a gestão Dilma.
Estamos falando de massas de forças nada modestas.
Diferentes modalidades de fundos financeiros somaram um giro acumulado de R$ 2,4 trilhões no Brasil em 2012.
O valor equivale a mais da metade do PIB em direitos sobre a riqueza real --sem triscar o pé no chão da fábrica.
Não é um país à parte. Mas se avoca mordomias equivalentes às desfrutadas pelas tropas de ocupação.
Entre elas, rendimentos sempre superiores à variação do PIB, portanto, em detrimento de fatias alheias. E taxas de retorno inexcedíveis -- dividendos permanentes de dois dígitos, por exemplo-- a impor um padrão de retorno incompatível com a urgência do novo ciclo de investimento que o Brasil reclama.
Não se mantém uma tensão desse calibre sem legiões armadas.
Pelotões de estrategistas, exércitos de consultores, artilharias acadêmicas, bancadas legislativas, cavalarias midiáticas e aliados internacionais operam a seu serviço.
O conjunto entrou em prontidão máxima.
Um pedaço da hegemonia que vai ditar o novo arranjo macroeconômico será decidido nas eleições de outubro.
O embate escorre do noticiário especializado (isento como uma nota de três reais) para os espaços onde os cifrões são traduzidos em duelos entre o bem e o mal, entre corruptos e salvadores da pátria, intervencionistas e liberais, desgoverno e eficiência.
Daí são mastigados para o varejo do martelete conservador.
Nesse ambiente de beligerância em que o governo parece falar sozinho, a explosão de demandas que buscam carona na visibilidade da Copa do Mundo, apenas reafirma uma transição de ciclo, incapaz de ser equacionado por impulsos corporativos ou bandeiras avulsas, ainda que justas (leia mais sobre esse tema no blog do Emir).
‘Não vai ter Copa’ figura como o arremedo de uma unidade tão frágil quanto a aritmética subjacente à ideia de que os males do país se resolvem com os R$ 8 bilhões financiados às arenas do torneio --que serão pagos, ressalte-se.
No evento da sexta-feira, em São Paulo, Lula lembrou aos blogueiros que desde que começaram as obras da Copa, em 2010, o governo investiu R$ 825 bi em saúde e educação.
E, todavia, a escola pública e o SUS persistem com as lacunas sabidas.
O buraco é mais amplo.
O Brasil se confronta com o desafio de realizar grandes reformas que lhe permitam erguer as linhas de passagem entre o inadiável e o viável num novo ciclo de crescimento.
Menos que isso é dar à edição conservadora suprimentos para martelar a ideia de uma sociedade em decomposição.
Durante muito tempo a percolação desse veneno teve na comunicação do governo um filtro complacente.
Agora se sabe que essa inércia escavou também um corredor contagioso no ambiente cultural, a ponto de tornar adicionalmente opressivo o ar desta sucessão presidencial.
Um pequeno exemplo ilustra os demais.
Em entrevista recente à televisão portuguesa, o cantor Ney Matogrosso esboçou um cenário de terra arrasada para descrever o Brasil. https://www.youtube.com/watch?v=DqJ0kF1_oL0. De sobremesa, soltou agudos de visceral rejeição à política, aos políticos e ao PT.
O problema não é um cantor deblaterar contra o governo.
O problema é a ausência de contraponto ao redor, num momento em que interesses graúdos se empenham em vender a tese de que a melhor saída para o Brasil é andar para trás.
Em diferentes capítulos da história do país, o prestígio de seus intelectuais e artistas foi decisivo no repto ao cerco asfixiante com o qual o conservadorismo tentava, como agora, legitimar, ou impor, a receita de arrocho subjacente as suas propostas para os impasses nacionais.
Antes tarde do que nunca, o PT e suas maiores lideranças correm contra o tempo para corrigir o gigantesco erro político que foi subestimar o papel de uma mídia plural na luta pela ampliação da democracia brasileira .
Passa da hora de acordar também para a necessidade de reativar o diálogo com círculos intelectuais e artísticos, cujo protagonismo foi igualmente subestimado por uma concepção mecânica e economicista de desenvolvimento.
O sequestro da opinião pública pelo denuncismo conservador --que radicalizou um clima de indiferença e prostração semeado pelo próprio recuo do PT no ambiente intelectual -- evidencia o tamanho do equívoco cometido.
Leia, abaixo, a manifestação do cineasta Jorge Furtado (diretor do recém lançado ‘Mercado de Notícias’ e Urso de Prata em Berlim, em 1990, com ‘Ilha das Flores’) sobre esses acontecimentos, que marcam e vão marcar o ar pesado da disputa eleitoral de 2014.
'A mim não enrolam' , diz o diretor gaúcho que questiona em seu blog a tese de que o Brasil nunca esteve tão mal: pior em relação a quando e, sobretudo, para quem, argui. http://casacinepoa.com.br/)
O desafio do campo progressista é expandir essa argúcia solitária.
A íntegra do texto de Jorge Furtado:
"Fico triste ao ver artistas brasileiros, meus colegas, tão mal informados.
Imagino que, com suas agendas cheias, não tenham muito tempo para procurar diferentes fontes para a mesma informação, tempo para ouvir e ler outras versões dos acontecimentos, isso antes de falar sobre eles em entrevistas, amplificando equívocos com leituras rasas e impressionistas das manchetes de telejornais e revistas ou, pior, reproduzindo comentários de colunistas que escrevem suas manchetes em caixa alta, seguidas de ponto de exclamação.
Fico triste ao ler artistas dizendo que não dá mais para viver no Brasil, como se as coisas estivessem piorando, e muito, para a maioria. Dizer que não dá mais para viver no Brasil logo agora, agora que milhões de pessoas conquistaram alguns direitos mínimos, emprego, casa própria, luz elétrica, acesso às universidades e até, muitas vezes, a um prato de comida, não fica bem na boca de um artista, menos ainda de um artista popular, artista que este mesmo povo ama e admira.
Em que as coisas estão piorando? E piorando para quem? Quem disse? Qual a fonte da sua informação?
Fico triste ao ouvir artistas que parecem sentir orgulho em dizer que odeiam política, que julgam as mudanças que aconteceram no Brasil nos últimos 12 anos insignificantes, ou ainda, ruins, acham que o país mudou sim, mas foi para pior.
Artistas dizendo que pioramos tanto que não há mais jeito da coisa "voltar ao 'normal '", como se normal talvez fosse ter os pobres desempregados ou abrindo portas pelo salário mínimo de 60 dólares, pobres longe dos aeroportos, das lojas de automóvel e das universidades, se "normal" fosse a casa grande e a senzala, ou a ditadura militar. Quando o Brasil foi normal? Quando o Brasil foi melhor? E melhor para quem?
A mim, não enrolam. Desde que eu nasci (1959) o Brasil não foi melhor do que é que hoje. Há quem fale muito bem dos anos 50, antes da inflação explodir com a construção de Brasília, antes que o golpe civil-militar, adiado em 1954 pelo revólver de Getúlio, se desse em 1964 e nos mergulhasse na mais longa ditadura militar das américas. Pode ser, mas nos anos 50 a população era muito menor, muito mais rural e a pobreza era extrema em muitos lugares. Vivia-se bem na zona sul carioca e nos jardins paulistas, gaúchos e mineiros. No sertão, nas favelas, nos cortiços, vivia-se muito mal.
A desigualdade social brasileira continua um escândalo, a violência é um terror diário, 50 mil mortos a tiros por ano, somos campeões mundiais de assassinatos, sendo a maioria de meninos negros das periferias, nossos hospitais e escolas públicos são para lá de carentes, o Brasil nos dá motivos diários de vergonha e tristeza, quem não sabe? Mas, estamos piorando? Tem certeza? Quem lhe disse? Qual sua fonte? E piorando para quem?"
(Publicado originalmente no portal Carta Maior)
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