pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO. : Perry Anderson: Para quem acha que o Brasil tem o monopólio da corrupção.
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terça-feira, 27 de maio de 2014

Perry Anderson: Para quem acha que o Brasil tem o monopólio da corrupção.

publicado em 26 de maio de 2014 às 23:48


Corrupção branca de olhos azuis? Imagina…
Da Redação
O artigo abaixo, que reproduzimos parcialmente graças à tradução de Heloisa Villela, não trata de justificar a corrupção no Brasil. Demonstra, apenas, que a corrupção está intimamente ligada a um modelo de democracia, que cabe reformar com mais democracia, aquela que efetivamente esteja subordinada ao controle popular. O objetivo do artigo foi demonstrar que, contrariamente ao que diz a opinião pública fora da Itália, a corrupção italiana não é excepcional, mas mediana para os padrões europeus. Ou seja, nada de culpar os mediterrâneos, como se fossem corruptos em relação aos nórdicos. No nosso caso, trata-se acima de tudo de um alerta aos simplistas, que acham que a democracia dos outros, “europeia”, está livre dos problemas que enfrentamos aqui simplesmente por ser “europeia”. Viralatas, acordem!
O Desastre Italiano
Perry Anderson, no London Review of Books
A Europa está doente. A gravidade e o motivo da doença são temas nem sempre fáceis de julgar. Mas entre os sintomas, três são conspícuos e se relacionam. O primeiro, e mais conhecido, é a flutuação degenerativa da democracia através do continente, da qual a estrutura da União Europeia (UE) é ao mesmo tempo causa e consequência.
A casta oligarca e seus arranjos constitucionais, concebida inicialmente como andaime provisório para uma soberania popular de escala supranacional que viria depois, se enrijeceu ao longo do tempo.
Os referendos são derrubados regularmente se contrariam a vontade dos governantes.
Eleitores cujas visões são desprezadas pelas elites ignoram as assembleias que em tese os representam; com isso, o comparecimento às urnas diminui sucessivamente a cada eleição.
Burocratas que nunca foram eleitos policiam os orçamentos de parlamentos nacionais desprovidos até mesmo do poder de gastar.
Isso reflete, assim como aprofunda, tendências de longo prazo dentro. A nível nacional, virtualmente em toda parte, executivos domesticam ou manipulam legisladores com muita facilidade; partidos perdem membros; eleitores deixam de acreditar que eles contam, enquanto as opções políticas se estreitam e promessas de mudança nas plataformas políticas desaparecem quando chegam ao poder.
Com essa involução generalizada veio também uma corrupção dominante da classe política, tópico sobre o qual a ciência política, eloquente o suficiente a respeito do que, na linguagem dos contadores, é chamado de déficit democrático da União, tipicamente se cala.
As formas dessa corrupção ainda não encontraram uma taxonomia sistemática.
Existe a corrupção pré-eleitoral: o financiamento de pessoas ou partidos por fontes ilegais – ou algumas legais – mediante promessa, explícita ou tácita, de favores futuros.
Existe a corrupção pós-eleitoral: o uso do cargo para obter dinheiro com a malversação das receitas, ou propinas em contratos.
Existe a compra de vozes ou votos no legislativo.
Existe o roubo direto do bolso público.
Existe a falsificação de credenciais para ganho político.
Existe o enriquecimento através do cargo público depois do evento, como também durante ele.
O panorama desta malavita é comovente. Um afresco dele poderia começar com Helmut Kohl, governante da Alemanha por 16 anos, que amealhou cerca de dois milhões de marcos alemães em fundos lamacentos de doadores ilegais cujos nomes, quando ele foi exposto, se recusou a revelar, com medo de que os favores que eles receberam fossem revelados.
Atravessando o Reno, Jacques Chirac, presidente da República Francesa por 12 anos, foi condenado por desfalcar fundos públicos, abuso do cargo e conflito de interesse, quando sua imunidade terminou.
Nenhum dos dois sofreu qualquer penalidade. Esses eram os políticos mais poderosos de seus tempos na Europa. Uma olhada na cena desde então é suficiente para afastar qualquer ilusão de que eles foram fora do comum.
Na Alemanha, o governo de Gerhard Schröder garantiu um empréstimo de um bilhão de euros à Gazprom para a construção de um oleoduto do Báltico, poucas semanas antes de deixar o cargo de chanceler e entrar na folha de pagamento da Gazprom com um salário mais alto do que o que recebia para governar o país.
Desde que partiu, Angela Merkel viu dois sucessivos presidentes da República serem forçados a renunciar envoltos em controvérsia: Horst Kohler, ex-chefe do FMI, por admitir que o contingente do exército alemão no Afeganistão estava protegendo interesses comerciais da Alemanha; e Christian Wulff, ex-chefe da democracia cristã na Baixa Saxônia, por conta de um empréstimo questionável de um amigo empresário para a casa de Wulff.
Dois ministros de destaque, um da Defesa e o outro da Educação, tiveram que sair quando seus doutorados foram anulados – uma credencial importante para a carreira política na República Federal – por furto intelectual.
Quando essa última, Annette Schavan, íntima de Merkel (que expressou total confiança nela) ainda se agarrava ao cargo, o diário Bild-Zeitung afirmou que ter uma ministra da Educação que falsifica sua pesquisa era como ter um ministro das Finanças que tivesse uma conta secreta na Suíça.
Nem bem se falou, se viu. Na França, o ministro socialista do Orçamento, o cirurgião plástico Jérôme Cahuzac, cuja causa era cobrar probidade fiscal e igualdade, foi flagrado com algo entre 600 mil e 15 milhões de euros escondidos em depósitos na Suíça e em Cingapura.
Nicolas Sarkozy, enquanto isso, é acusado por testemunhas de ter recebido algo em torno de US$ 20 milhões de Kadaffi [o assassinado presidente da Líbia] para a campanha eleitoral que o levou à presidência.
Christine Lagarde, sua ministra das Finanças que agora dirige o FMI, está sendo interrogada por seu papel no pagamento de uma “compensação” de 420 milhões de euros para Bernard Tapie, um conhecido bandido com passagem pela prisão, mais tarde amigo de Sarkozy.
A proximidade tranquila com o crime é bipartidária. François Hollande, atual presidente da República, manteve encontros secretos com sua amante no apartamento da prostituta de um gângster da Córsica morto em uma troca de tiros na ilha, no ano passado.
Na Grã-Bretanha, mais ou menos ao mesmo tempo, o ex-premier Tony Blair estava assessorando Rebekah Brooks, ameaçada de ir para a cadeia por cinco acusações de conspiração criminosa (“Tenha comprimidos para dormir fortes. Isso vai passar. Fique firme”), e recomendou insistentemente que ela “publicasse um relatório estilo Hutton”, como ele havia feito para limpar qualquer participação que seu governo pudesse ter tido na morte de uma pessoa que denunciou sua guerra no Iraque.
Uma invasão com a qual Blair ganhou – claro, para sua Faith Foundation – várias gorjetas e negócios pelo mundo, entre eles, proeminente, o dinheiro de uma empresa de petróleo da Coréia do Sul dirigida por um criminoso condenado que tem interesses no Iraque e na dinastia feudal do Kuwait.
Que recompensa Blair pode ter recebido um pouco mais ao leste, por conselhos profusos dados à ditadura de Nazarbayev ainda não se sabe (“As realizações do Cazaquistão são incríveis. Entretanto, Sr. Presidente, o senhor ressaltou novos desafios em sua mensagem à Nação”. Literalmente).
Em casa, em uma troca de favores sobre a qual ele mentiu ao Parlamento sem o menor escrúpulo, a mão de Blair estava escorregadia, recebendo um milhão de libras para os cofres do partido do magnata das corridas de automóvel, Bernie Ecclestone, atualmente indiciado na Bavária por propinas no valor de 33 milhões de euros.
Na cultura do Novo Trabalhismo, figuras de destaque do círculo de Blair, um dia ministros do governo – Byers, Hoon, Hewitt – poderiam se colocar à venda em seguida. No mesmo período, independentemente de partido, a Câmara dos Comuns foi exposta como uma cloaca de desfalques mesquinhos do dinheiro do contribuinte.
Enquanto isso, na Irlanda, Bertie Ahern, líder do Fianna Fáil [o Partido Republicano], tendo desviado mais de 400 mil euros em pagamentos inexplicáveis, votou para si mesmo o salário mais alto de um primeiro-ministro europeu – 310 mil euros, mais do que o do presidente dos EUA –, um ano antes de pedir demissão em desonra por desonestidade generalizada.
Na Espanha, o atual primeiro ministro, Mariano Rajoy, liderando um governo de direita, foi flagrado com a mão em recibos de propinas de empreiteiras e de outros negócios no valor de um quarto de milhão de euros em uma década, entregues a ele por Luis Bárcenas.
Secretário do Tesouro de Rajoy por dois anos, Bárcenas está preso agora por ter acumulado 48 milhões de euros em contas não declaradas na Suíça. Os registros escritos à mão das transferências de Rajoy para outros notáveis do Partido Popular – incluindo Rodrigo Rato, outro ex-dirigente do FMI – apareceram à vontade em fac-símiles na imprensa espanhola.
Quando o escândalo veio à tona, Rajoy enviou uma mensagem de texto a Bárcenas com palavras virtualmente idênticas às de Blair para Brooks: “Luis, eu entendo. Fique firme. Eu te chamo amanhã. Um abraço”. Enfrentando descaradamente um escândalo no qual 85% do público espanhol acredita que ele está mentindo, Rajoy continua firme no Palácio de La Moncloa.
Já na Grécia, Akis Tsochatzopoulos, sucessivamente ministro do Interior, da Defesa e do Desenvolvimento pelo Pasok, que uma vez chegou muito perto de liderar a democracia social grega, teve menos sorte: foi condenado no outono passado a vinte anos de cadeia por uma formidável carreira de chantagens e lavagem de dinheiro.
Do outro lado da água, Tayip Erdogan, por muito tempo apontado pela mídia europeia e pelo establishment intelectual como o grande estadista da democracia turca, cuja conduta virtualmente deu ao país o direito de membro honorário da UE, mostrou que ele tem valor para ser incluído no ranking de lideranças da União de uma outra forma: em uma conversa gravada, instruindo seu filho sobre onde esconder dez milhões em dinheiro vivo, em outra aumentando o preço da propina em um contrato de construção.
Três ministros do governo caíram depois de revelações semelhantes, antes que Erdogan expurgasse a força policial e o Judiciário para ter certeza de que o assunto não seguiria em frente.
Enquanto ele fazia isso, a Comissão Europeia divulgou seu primeiro relatório sobre a corrupção na União, cujo extensão o comissário autor do trabalho descreveu como “de tirar o fôlego”: uma estimativa, por baixo, de que custa à UE tanto quanto o orçamento total da União, em torno de 120 bilhões de euros por ano – sendo que o montante real “deve ser bem mais alto”. Prudentemente, o relatório cobriu apenas estados-membros. A UE, cuja Comissão inteira, em um passado recente, foi obrigada a entregar o cargo sob uma nuvem negra, foi excluída.
Comum em uma União que se apresenta ao mundo como tutora da moral, a poluição do poder pelo dinheiro e pela fraude se segue à filtragem da substância ou do envolvimento na democracia.
Elites libertas ou da real divisão no topo ou de cobrança significativa de baixo podem se enriquecer sem distração ou castigo.
A exposição deixa de ter tanta relevância, já que a impunidade se torna regra. Assim como os banqueiros, lideranças políticas não vão para a cadeia.
Dessa fauna toda, apenas um grego idoso sofreu essa indignidade.
Mas a corrupção não é apenas uma função do declínio da ordem política.
Ela é também, claro, sintoma do regime econômico que tomou conta da Europa desde os anos 80. No universo neoliberal, no qual os mercados são a medida de valor, o dinheiro se torna, mais diretamente do que nunca, a medida de tudo.
Se hospitais, escolas e presídios podem ser privatizados como empreendimentos com fins lucrativos, por que não também os cargos públicos?

(Publicado originalmente no site Viomundo)

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