José Luiz Gomes da Silva
Continua pelas redes sociais as polêmicas sobre o projeto Novo Recife.
As opiniões se radicalizam, entre argumentos a favor e contra o projeto.
No dia de ontem, mais um componente, digamos assim,
entrou no debate. Em meio às discussões políticas, jurídicas, o caráter
das intervenções urbanas, eis que surgiu na rede uma entrevista com o
economista ecológico, Clóvis Cavalcanti, da Fundação Joaquim Nabuco. Não
que essa temática, mesmo que anpassant, já não esteja inserida nos
debates, mas, invocá-la, neste momento, é interessante porque remete, na
sua essência, à degradação do conceito de cidadania engendrado por esse
processo. Apenas para quem não tomou conhecimento dos fatos, o
economista teria sido processado por uma dessas construtoras integrantes
do consórcio Novo Recife, ao postar um artigo no Diário de Pernambuco
argumentando sobre um possível "roubo de paisagem" ao serem erguidas
aquelas duas famosas torres da Moura Dubeux. A paisagem é um direito
coletivo e eles, ao erguerem aquelas torres estavam impedindo que esse
direito fosse exercido por toda a população. Lembro agora que o IPHAN
embargou a construção de um viaduto aqui em Olinda, tempo atrás,
acredito, sob o mesmo argumento. Se fosse mantida a altura original,
comprometeria a visão do patrimônio histórico da cidade. A construtora
que o processou perdeu em todas as instâncias. Essa questão está na raiz
das intervenções urbanas do Recife, ou seja, a profunda "seletividade"
de sua matriz.. Se, como dizem, há benefícios dessas intervenções, quem
vai poder beneficiar-se deles? Até mesmo um logradouro público - uma
praça - que ficava nas proximidades das duas torres, quase foi
privativada pela população residente nos apartamentos. Não somos
necessariamente contra que haja intervenções naquela área do Cais José
Estelita. O conceito de patrimônio histórico/artístico, de fato, em
situações específicas, talvez não se aplica à situação. Por outro lado, o
caráter e a finalidade dessas intervenções precisam, urgentemente, ser
revistos. Se não, vejamos. a) Há uma ingerência demasiada dos interesses
do capital na tomada de decisões do poder público sobre o assunto. Um
lobby pesado, tráfiico de influência, denúncias de pagamento de
propinas, financiamentos de campanhas, aparelhamento dos departamentos
jurídicos das prefeituras. Num contexto como esse, as decisões não
poderiam deixar de ser enviesadas. Torna-se necessário criar mecanimos
de envolvimento mais efetivo do cidadão comum nessas decisões. A
Prefeitura do Recife, por acaso, ouviu a população do Recife sobre o que
fazer com o Cais José Estelita? b) Se considerarmos as últimas
intervenções, talvez se aplique aqui uma tendência higienista, como
sugere alguns críticos, reservando alguns espaços públicos apenas para
os ditos cidadãos-consumidores, aqueles que podem pagar para adquirir
uma apartamento residencial ou um sala comercial naquele trecho, que
deve custar os olhos da cara. Fala-se em píer, em parques, em espaços
culturais, mas, a rigor, certamente pensados para atender às
necessidades desses cidadãos. Em última análise, o que está em curso é
um banimento da população de baixa renda desses entornos. Coque, Pina,
Ilha de Joaneiro estão sendo, gradativamente, descaracterizadas pelo
especulação imobiliária imposta pelo capital. Na década de 40 existia
uma grande polêmica sobre o que fazer com as palafitas dos bairros
'afogados" do Recife, um verdadeiro laboratório para os trabalhos de
sociólogo Josué de Castro. Enquanto o interventor Agamenon Magalhães
defendia que eles precisavam ser removidos, de preferência para lá dos
Macacos - uma localidade, salvo engano, nas proximidades da cidade de
Camaragibe - , Gilberto Freyre considerava os mocambos uma solução de
arquitetura engenhosa e, que, portanto, precisavam ser preservadas.
Assim como na década de 40, recrudesce no Recife uma solução de força,
da imposição de uma lógica orientada pela seletividade "higienista". A
cidade, pensa os gestores atuais, deve ficar mesmo para os
cidadãos-consumidores. Isso nos faz lembrar de uma crônica que
escrevemos sobre a presença de Orson Welles no Brasil. De passagem por
essas terras tropicais, ele conheceu três cidades: Recife, Fortaleza e
Rio de Janeiro. Aqui no Recife, depois de tomar um porre daqueles, caiu
no Rio Capibaribe e quase se afogava. No Rio, fazia suas tomadas para o
filme inacabado Its All True - sobre a saga dos jangadeiros cearenses.
Eis que o ditador Getúlio Vargas escreveu para o Departamento de Estado
Norte-Americano para queixar-se de Orson Welles. Estava bastante
preocupado com a presença de favelas, pobres e negros nas tomadas do
cineasta. Deixaram Orson à mingua. Nossos governantes estão deixando a
população mais empobrecida do Recife à mingua, sem direito de usufruir
de sua cidade. Só falta mesmo os cinturões de contenção nos seus
entorno. Logo, logo eles estarão sendo erquidos.
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