O aprofundamento das crises política e econômica torna mais próximo o momento do pacto. Sempre é temerário apostar no bom senso político nacional.
Mas o bom senso é meramente questão de preço. Em países modernos, chega-se ao bom senso a preços módicos. No Brasil do impeachment, a um preço caro. Mas o aprofundamento da crise já se tornou o excessivamente caro. Dentro de algum tempo induzirá o país ao pacto.
A grande dúvida é sobre quem conduzirá a travessia.
1. Não há maneira de vestir Michel Temer com a aura de estadista.
Desde que teve início o processo do impeachment, os grupos de mídia empenharam-se em uma tarefa hercúlea: dentro da dramaturgia que cerca a sociedade do espetáculo, tratar de conferir ao interino Michel Temer a aura de estadista.
Embora antigo na política, o personagem Temer era quase desconhecido da opinião pública, podendo, assim, ser um livro em branco no qual jornais e seus jornalistas, de forma combinada, pudessem escrever o perfil de um grande homem.
O entusiasmo precoce provocou elogios surpreendentes, como o do blogueiro Ricardo Noblat, confirmando a máxima de San Thiago Dantas, de que “o poder é afrodisíaco”:
“Uma coisa eu jamais observara: como Temer é um senhor elegante. Quase diria bonito. A senhora dele, também”.
A roteirização da política consistia em supervalorizar positivamente os pequenos gestos de Temer e negativamente os da oposição.
Esse papel coube a Jorge Bastos Moreno, brilhante colunista de O Globo.
Por ocasião da demissão do Ministro do Turismo Henrique Alves, velho companheiro de Temer, Moreno saudou a prontidão com que o interino defenestrou o Henriquinho (como é tratado no círculo íntimo do Palácio, ao qual pertence Moreno), cuja atuação era de conhecimento de Temer e de Moreno há décadas.
Ontem, com a fúria de um Catilina, Moreno desancou sem dó a insensibilidade de parlamentares da oposição, por ousarem manter uma conversa descontraída no ambiente austero de... uma festa junina.
Conhecidos os detalhes sórdidos da delação de Machado, esperava-se que nessa noite os políticos se recolhessem, envergonhados, mais cedo para a casa.
Pelo contrário. Foram para a festa de São João, por si só uma piada pronta, da senadora Kátia Abreu.
Entre as pérolas captadas na mesa da diretoria, presidida por Renan, destaco esta:
— Vanessa está sendo massacrada nas redes porque apareceu retocando a maquiagem com um pó da marca Shiseido — denunciou Lindbergh.
— Oxe, o pó custa R$ 260. Será possível que não posso comprar um pó de R$ 260?
— perguntou a senadora.
E Renan, que não se maquia com pó, certamente, embora mantenha a cara sempre lustrada:
— Vocês não passam de comunistas de boutique.
É compreensível a confusão de Moreno. Afinal, nos dois casos há a presença insofismável das quadrilhas.
Em poucas semanas, no entanto, Temer construiu uma imagem tão negativa que nem os melhores roteiristas de O Globo conseguirão mais vender o peixe do Temer Bom.
No mundo real, o Temer Bom é só para consumo caseiro e dos amigos. Tem duas filhas adultas admiráveis e cultiva amigos do naipe de Celso Antônio Bandeira de Mello e Antônio Mariz de Oliveira. E só. Seu passado distante atenua mas não o absolve.
O Temer Mau é o da política, aliado e influenciado por vestais da qualidade de Eduardo Cunha, Eliseu Padilha, Gedel Vieira de Lima e Moreira Franco, os quatro porquinhos e o lobo mau querendo devorar o Chapeuzinho Vermelho da democracia e a cesta do orçamento público. E também é o amigo do Henriquinho (apud Moreno), do Mendoncinha políticos que, apesar de tratados no diminutivo, são dotados de uma voracidade pantagruélica.
Ocorre que quem governa o país é o Temer Mau, e não o Temer elegante, quase bonito, que encantou Noblat.
A diferença entre o estilo cordato do Dr. Jekill e o perfil truculento de Mr. Hyde é de tal magnitude que, antes do impeachment, pessoas próximas a Dilma atribuíam o oportunismo do vice à má influência de Eduardo Cunha. Ou seja, um senhor de 85 anos sofrendo da síndrome da má influência.
Como o Brasil é o país da intimidade benevolente, mesmo figuras públicas referenciais fecham os olhos aos malfeitos, quando cometidos por amigos. Ainda assim, Celso Antônio Bandeira de Mello e Antônio Mariz de Oliveira devem ao país a chamada pressão positiva sobre o amigo. Não permitam que a amizade os diminua perante uma legião de admiradores.
Já os grupos de mídia decidiram promover uma cirurgia nos xipófagos que habitam a alma de Temer.
O Temer Bom passou a ser o da área econômica, que veta reajustes do Bolsa Família, planeja arrebentar as verbas da saúde e da educação, mantém as taxas de juros em patamares elevados mesmo o mercado prevendo inflação no centro da meta em 2017. Este é o Temer Bom.
Pega, separar os dois? Não pega.
O padrão Temer ficou muito exposto à opinião pública.
Consiste em trazer para o governo seus aliados, o que de pior a política brasileira gerou no período democrático, dentro de um acordo tácito. Temer e cada Ministro sabem o que ambos fizeram. Se as falcatruas se tornarem públicas, o Ministro sai e o Jorge Bastos Moreno apregoa que Temer é diferente, porque não vacila em demitir Ministros cuja presença no governo tornou-se inviável por razões alheias à vontade de Temer. É isso?
Some-se a isso a Lava Jato que prossegue a todo vapor e que já assestou sua mira na JBS – uma das grandes financiadoras dos partidos políticos e, até pouco tempo atrás, presidida por Henrique Meirelles, do suposto grupo dos homens bons de Temer.
Juntando tudo isso, chega-se ao busílis da questão: com o processo de radicalização do impeachment, a ampliação da radicalização perpetrada pelos quatro porquinhos, pelo seu passado e pelo seu presente, Temer teria condições de ser o mediador desse pacto?
É evidente que não. O Temer Bom só se sustenta com a aliança que o Temer Mau monta com as facções que dominam a Câmara. Quando o Temer Bom planeja direcionar o orçamento inteiro para o mercado (através dos juros da dívida pública), os aliados do Temer Mau não permitem.
A não ser que se acredite que as Forças Armadas irão se lançar contra as manifestações, nenhum pacto frutificará nem com o Temer Mau, nem com o Temer Bom.
Não sendo Temer, como poderia ser conduzida a transição?
2. A alternativa a Michel Temer
Posto que o interino é inviável, o que restaria? A volta da titular?
Depende.
A inabilitação de Temer cria um vácuo. Mais um pouco e todos se darão conta do jogo de perde-perde na qual o país vai afundando. E aí se terá que buscar alternativas de pacto de fato, que pacifique o país, que varra do mapa a velha política e abra espaço para o novo.
O primeiro passo é extirpar da vida nacional a mancha de um impeachment sem fundamento constitucional. É condição essencial para o restabelecimento dos postulados democráticos.
Por outro lado, não se pode tapar o sol com a peneira e imaginar que bastaria a queda do impeachment para Dilma recuperar as condições de governabilidade.
E aí tomo a liberdade de enxergar duas Dilmas, como figura pública.
A Dilma presidente queimou sua oportunidade no início de 2013, quando cedeu ao mercado e voltou a aumentar a Selic. Dali em diante, seu governo caminhou como um barco adernando. Não há a menor possibilidade de viabilizar um terceiro mandato.
A Dilma deposta, no entanto, assumiu uma dimensão pública inimaginável em Dilma pré-impeachment. Tornou-se amada pelos movimentos sociais. No auge do poder, a crista empinada era sinal de arrogância; deposta, tornou-se prova de grandeza, de coragem, de destemor.
É essa Dilma que emerge das trevas– da sessão que votou o impeachment – que poderá ser a condutora da transição. Mesmo porque é praticamente a única grande figura política não maculada pelos borrifos da Lava Jato.
É hora de deixar um pouco de lado a presença nas manifestações públicas e buscar as lideranças da sociedade civil para começar a se pensar no grande pacto.
Há dois desafios políticos e um econômico, tendo que ser administrados simultaneamente.
Os políticos são uma Constituinte para discutir a reforma política, seguida de eleições gerais.
O econômico é a pactuação de um conjunto de medidas visando blindar a economia dos solavancos da política. Com o agravamento da crise, haverá condições de empresários, trabalhadores e movimentos sociais começarem a sentar para conversar, especialmente se Dilma apresentar um conjunto racional de propostas de transição.
Para trabalhar junto aos setores produtivos, ela terá ao seu lado duas figuras significativas das chamadas forças produtivas – Armando Monteiro e Kátia Abreu. Junto ao sistema bancário, há duas lideranças expressivas e de bom senso, Roberto Setúbal, do Itaú, e Luiz Trabucco, do Bradesco. Os movimentos sociais e sindicatos já estão com ela.
Havendo isenção na condução da transição, poderá ampliar o círculo de apoio.
Restarão as incógnitas: o Congresso pós-Eduardo Cunha, a Procuradoria Geral da República e a Lava Jato, o Senado com ou sem Renan Calheiros (obviamente, com Renan haverá maior espaço para o bom senso).
Luis Nassif, publicado originalmente no Jornal GGN
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