Selma dos Santos Dealdina é organizadora do livro 'Mulheres quilombolas', que reúne ensaios e poemas sobre o papel das mulheres nessas comunidades (Foto: Divulgação)
“Ser mulher quilombola é sinônimo de resistência. Significa carregar na identidade, no corpo, no cuidado com a família, na lida no campo ou na agitação do urbano uma história ancestral de muita dignidade”, assim Nilma Lino Gomes apresenta Mulheres quilombolas: territórios de existências negras femininas, organizado por Selma dos Santos Dealdina.
O livro reúne textos de mulheres de diferentes quilombos espalhados pelo Brasil, que reforçam, sob diferentes perspectivas, a afirmação acima. Mas o que seria um quilombo? Segundo Carlídia Pereira de Almeida, quilombo pode ser definido de várias maneiras, e a história de seu conceito “é controversa entre a população afrodescendente”, uma vez que “cada quilombo é diferente do outro e não há necessidade de fixar categorias estáticas, devido ao processo de reconhecimento da própria comunidade”. Entre as muitas definições de quilombo, algumas características parecem se repetir: “São comunidades que travam diariamente o embate pelo direito à terra e ao território, bem como por políticas públicas específicas, das quais foram sistematicamente privadas devido ao racismo do Estado”, como lembra de Almeida.
Os quilombos representam também, de acordo com Selma dos Santos Dealdina, “um projeto de partilha, de viver em comunidade, de construção de território enquanto coletivo, compartilhando o acesso a bens, em especial à terra”. O quilombo é uma alternativa ao capitalismo, afirma a pesquisadora. Talvez por isso, e principalmente neste governo, ele seja tão mal visto por aqui.
Nessas comunidades, as mulheres exercem um papel fundamental, pois são elas que transmitem oralmente seus valores culturais, sociais, educacionais e políticos para os mais jovens, ou seja, entre outras funções, cabe a elas serem as “guardiãs da pluralidade de conhecimento que são praticados nos territórios quilombolas”, como se lê no ensaio assinado por Givânia Maria da Silva.
Entre esses muitos conhecimentos, afirma Dealdina, estão aqueles relacionados ao cuidado da roça, das sementes e “da preservação de recursos naturais fundamentais para a garantia dos direitos”. Valéria Pôrto dos Santos destaca a prática da agroecologia, “uma ciência que valoriza o conhecimento agrícola tradicional, desprezado pela agricultura moderna […]. O principal indicador deve ser o bem-estar da população, e não a produção econômica”, o que leva a um “consumo consciente e sustentável, além de inserir práticas educativas nos diferentes espaços comunitários”.
Este livro chama a atenção para essa sabedoria, para essa “inteligência do sensível”, que apreende o mundo como totalidade viva e que, diferentemente do capitalismo, não produz ecocídios, como denuncia o pensador afro-europeu Dénètem Touam Bona, no recém-lançado Cosmopoéticas do refúgio (Cultura e Barbárie).
Por vezes o que acontece é que a sociedade civil e a academia se apropriam desses saberes das comunidades quilombolas para “uma pesquisa individualista e sem responsabilidade coletiva”, como já alertava, nos anos 1990, Dona Procópia, citada por Dealdina. Dessa forma, esses saberes expropriados dos quilombolas acabam sendo usados para outros fins, que não se coadunam com a compreensão de coletividade, fundamental para essas comunidades.
Além de ensaios, há também poemas no livro, entre eles, “Povo Negro”, de Ana Cleide da Cruz Vasconcelos, cujos versos enfatizam a luta pelo território, que é comum às comunidades quilombolas, já que ao longo dos séculos vêm sendo privadas de suas terras: “O povo negro é trabalhador/é pescador pra sua família alimentar./ O povo negro quer terra pra morar,/ quer terra pra plantar, mas não tem lugar”.
Em outro poema, “Mulheres da Amazônia”, Vasconcelos traz à tona a força das mulheres da Amazônia, “negras, indígenas, pescadoras./ As lavadeiras, as parteiras e as benzedeiras”, que não conheciam seus direitos, mas agora conhecem e conseguiram avançar em todas as áreas, como bem se pode observar nas biografias das estudiosas que assinam os textos desta antologia.
Cabe aqui, contudo, uma ressalva: a força das mulheres negras não significa que elas possam suportar tudo, “inclusive a violação de direitos fundamentais como educação, saúde, oportunidades de trabalho digno etc.”, como enfatiza Maria Aparecida Mendes.
Mulheres quilombolas é um livro fundamental, que nos dá a oportunidade de conhecer as experiências de mulheres negras que “silenciadas avançaram. Invisibilizadas avançaram. Aquilombadas, avançaram”, como diz Flávia Oliveira no texto de orelha.
Dirce Waltrick do Amarante é autora, entre outros, de Cem encontros ilustrados (Iluminuras).
Mulheres quilombolas: territórios de existências negras femininas
org. Selma dos Santos Dealdina
Jandaíra
168 páginas – R$48,00
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
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