Matheus Ichimaru
Busto do filósofo francês Augusto Comte, na França (Foto: Maria Spector)
Recentemente reacendeu-se a discussão (já levantada em outros momentos) a respeito da inclusão da palavra “amor” na bandeira nacional. Um artigo publicado na Folha de S.Paulo, no dia 18 de novembro, tratou de apresentar ao grande público o movimento “Amor na bandeira”, uma iniciativa suprapartidária que defende – a partir de “argumentos teóricos, históricos, culturais e espirituais” – que se corrija “este erro histórico que foi deixar o Amor de fora do nosso lema”. Em linhas gerais, o argumento dos idealizadores do movimento (já repetido em outras ocasiões) consiste em afirmar que a divisa “ordem e progresso”, estampada na bandeira brasileira, seria na verdade uma versão incompleta do lema “o amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim”, formulado em meados do século 19 pelo filósofo francês Augusto Comte, fundador do positivismo.
A afirmação, no entanto, é controversa. Do ponto de vista histórico, não há razão para acreditar que a divisa “ordem e progresso” seja uma versão mutilada do lema que contém o “amor”. Como se alguém tivesse, aliás, sob golpe de espada, cortado o amor da nossa bandeira – como ocorre na célebre encenação do Teatro Oficina de Os sertões, de Euclides da Cunha. Do ponto de vista da cronologia dos eventos, a divisa é anterior ao lema, e mesmo quando o lema é cunhado (algo que se dá por volta de 1851) a antiga divisa não deixa de ser utilizada, nem é rebaixada de status no interior da doutrina.
Ainda em março de 1848, quando Augusto Comte funda a Sociedade Positivista em Paris, o dístico que aparece em seus textos e documentos oficiais, acompanhado da inscrição “República Ocidental”, consiste apenas em “Ordem e Progresso”, sem o “amor” – como, aliás, já ocorrera no âmbito da Associação para Instrução Positiva do Povo, uma espécie de embrião da Sociedade criado por Comte apenas um mês antes. É somente em julho de 1848 que a frase “o amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim” aparecerá pela primeira vez no texto do filósofo, mais precisamente na “conclusão geral” do seu Discurso sobre o conjunto do positivismo. De todo modo, ela não possui ainda o estatuto de lema e ao longo de todo o discurso se pode também encontrar passagens em que a “Ordem e Progresso” é reafirmada como “divisa fundamental” do positivismo.
A frase contendo o amor só será convertida em lema – ou “fórmula sagrada dos positivistas”, como dirá Comte daí em diante – em 1851, momento em que o próprio positivismo adentra sua fase religiosa. O lema aparecerá inscrito, por exemplo, na página de rosto do Sistema de política positiva (ou Tratado de sociologia instituindo a religião da Humanidade). Acima dele, no entanto, figuram ainda as antigas divisas da Sociedade Positivista, “República Ocidental” e “Ordem e Progresso”, acrescidas agora da expressão “Viver para outrem”, que pretende simbolizar, no positivismo religioso, o predomínio do “altruísmo” (neologismo inventado por Comte) sobre o egoísmo. Se a Sociedade Positivista se inspirara abertamente na Sociedade dos Jacobinos, a religião da Humanidade se inspirará, a ponto de mimetizá-lo, no catolicismo.
O positivismo religioso, no entanto, nunca chegou a ter relevância na cena política e cultural francesa da segunda metade do século 19. Restrita a uma pequena seita obscura, a religião da Humanidade – sobretudo por conta da morte prematura de seu “sumo pontífice” (Comte morre em 1857) – não chega a se institucionalizar plenamente em solo francês – diferentemente do que viria a ocorrer no Brasil, sobretudo no Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Fortemente impregnado de significado religioso, o “amor” acaba não penetrando os círculos republicanos (essencialmente anticlericais) do Segundo Império, nos quais uma certa versão (científica) do positivismo vem finalmente a se estabelecer e prosperar.
A “ordem” e o “progresso”, por outro lado, amalgamados aos ideais de 1789, constituíram o solo filosófico e intelectual no qual se erigiu o pensamento político dos chefes republicanos que fundaram, nas décadas de 1870-80, a Terceira República francesa. Ainda em 1898, por exemplo, se pode encontrar a divisa estampando a capa de um periódico dreyfusard como o Les droits de l’homme – a divisa completa, bastante sugestiva, é “Ordem e progresso pela Revolução Francesa”. Na França, portanto, se pode afirmar que a recusa do “amor” esteve intimamente associada à recusa da religião da Humanidade e à sua correspondente afirmação da laicidade republicana – mas não apenas.
Quando, em 1852, Émile Littré – o grande vulgarizador do positivismo na França, eleito senador inamovível em 1875 – rompe com Augusto Comte, o que está em causa é não apenas seu crescente incômodo com a deriva religiosa (e sobretudo ecumênica) do positivismo, mas principalmente o apoio de Comte ao golpe de Napoleão sobrinho, que põe fim à Segunda República e inaugura o Segundo Império. Se em 1848 Comte defendera a implantação de uma ditadura do proletariado – o que não deixa de surpreender –, em 1852 ele defenderá igualmente uma ditadura imperial, evidenciando, portanto, sua inclinação ao autoritarismo, mas também a imensa dificuldade de classificação de seu pensamento no espectro político tradicional.
A falta que brasileiros e brasileiras sentem do “amor” na bandeira – não apenas os idealizadores do referido movimento, mas também Chico Alencar, Eduardo Suplicy, Zé Celso, Jards Macalé, Emicida e tantos outros –, embora, como pretendemos mostrar, dificilmente encontre fundamento histórico na doutrina positivista original (o que frequentemente vem a ser irrelevante, do ponto de vista político) é claramente um sintoma da falta de amor na sociedade brasileira. Não um amor religioso, que submete, disciplina e governa. Mas um amor solidário, da comiseração sincera, que tem no ódio – motor da atual política e do atual governo – seu avesso total.
Matheus Ichimaru é doutorando em Ética e Filosofia Política pela Universidade de São Paulo (USP) e pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) de Paris. Bolsista da Maison Internationale d’Auguste Comte (2017), antiga residência do filósofo, atualmente um importante museu e centro de documentação para os estudos do positivismo.
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
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