Amanda Massuela
A professora Regina Dalcastagnè, doutora em Teoria Literária pela UNICAMP (Divulgação/UNB)
O perfil do romancista brasileiro publicado por grandes editoras se manteve o mesmo por pelo menos 43 anos. Ele é homem, branco, de classe média, nascido no eixo Rio-São Paulo. Seus narradores, protagonistas e coadjuvantes são em sua maioria homens, também brancos, de classe média, heterossexuais e moradores de grandes cidades.
A conclusão é resultado de um estudo iniciado em 2003 pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília, sob a coordenação da professora titular de literatura brasileira Regina Dalcastagnè, 50. Dividida em duas etapas – a primeira publicada em 2005 e a segunda com previsão de lançamento até abril de 2018 –, a pesquisa analisou um total de 692 romances escritos por 383 autores em três períodos distintos: de 1965 a 1979, de 1990 a 2004 e de 2005 a 2014. Ainda inéditos, os números anteriores à década de 1990 e posteriores a 2004 são publicados com exclusividade pela CULT.
Apesar de bastante homogêneos, os dados mostram um aumento de 12 pontos percentuais na publicação de romances escritos por mulheres – fato que, por sua vez, não produziu um crescimento significativo na quantidade de personagens femininas. O que salta aos olhos – mas não surpreende – é a falta de mulheres e homens negros tanto na posição de autores (2%) como na de personagens (6%). Mulheres negras aparecem como protagonistas em apenas seis ocasiões, e outras duas como narradoras das histórias. Mulheres brancas, por sua vez, ocuparam essas posições 136 e 44 vezes, respectivamente. Os autores vivem basicamente no Rio de Janeiro (33%), São Paulo (27%) e Rio Grande do Sul (9%)
Estudiosa do romance brasileiro, doutora em Teoria Literária pela UNICAMP e autora de Literatura brasileira contemporânea: um território contestado (2012), entre outros títulos, Dalcastagnè atribui esse desequilíbrio ao próprio campo literário, que produz um ciclo vicioso de publicações homogêneas, escritas do ponto de vista de uma classe média autorreferente e “entediante”. “Quando as grandes editoras publicam livros que tratam sempre dos mesmos temas e trazem um perfil de autor muito parecido, estão dizendo ao leitor o que é considerado literatura e quem pode ser chamado de escritor no Brasil”, critica.
O levantamento foi baseado apenas em lançamentos da Record, Companhia das Letras e Rocco, critério adotado com base em consultas a trinta ficcionistas, críticos e pesquisadores de diferentes estados. O estudo deve originar, ainda, um banco de dados aberto com informações mais detalhadas sobre cada romance analisado pelo grupo. Leia a seguir entrevista de Dalcastagnè à CULT.
Quase nada mudou em relação ao perfil do autor “típico” brasileiro publicado pelas grandes casas editoriais. O que mais lhe chamou a atenção nessa segunda fase do estudo?
Regina Dalcastagnè – A questão da autoria negra. Se olharmos para o primeiro período, de 1965/1979 a 1990/2004, há uma evolução significativa, por exemplo, no número de mulheres publicando. Mas é impressionante como há uma barreira para a questão da autoria negra. E não é que não haja produção – embora autores negros produzam mais contos, crônicas e poesia do que romance –, mas ainda assim há uma ausência muito gritante, tanto em relação à autoria como em relação às personagens. E não tem como escapar: não é possível tirar a literatura do contexto nacional do racismo e de exploração do trabalho. Não é um problema exclusivamente literário, embora eu ache que seja uma obrigação da literatura colocar o problema em discussão.
Mesmo quando são publicados, autores e autoras negras costumam ter sua produção deslocada do campo da literatura para o do “registro social”. A falta de legitimidade acadêmica impede a criação de um campo literário efetivamente diverso, seja do ponto de vista da autoria, seja do da temática?
Não é só um problema acadêmico, mas de mercado, do jornalismo, de tudo isso que chamo de “campo literário” – emprestando o conceito de Pierre Bourdieu: jornalistas, universitários, pesquisadores, leitores, bibliotecários, editores. É todo um conjunto de agentes que têm realmente um problema com a autoria negra. E não é uma questão individual, de acusar um editor especificamente, mas estrutural.
É uma exclusão que se retroalimenta dentro do mercado editorial?
Sim. O que essa pesquisa mostra é que quando as grandes editoras publicam livros que tratam sempre dos mesmos temas e trazem um perfil de autor muito parecido – e são esses livros que são resenhados nos jornais, que estão nas livrarias do país inteiro –, elas estão dizendo ao leitor o que é considerado literatura e quem pode ser chamado de escritor no Brasil. A presença dentro das livrarias e dos jornais é um carimbo do que é considerado literatura: se você quiser ser escritor, tem que se parecer com isso. O que é bastante perverso, principalmente quando se pensa na autoria de mulheres, de indígenas, de negros, periféricos ou pobres que estão longe deste circuito e que acreditam que têm algo a dizer, que acreditam que também podem expressar o mundo através da literatura, mas que acabam recusados de algum modo. O que está sendo dito, hoje, é que o que eles podem vir a fazer não é válido.
É uma questão que passa não só pela diversidade dos autores, mas dos profissionais que comandam o setor livreiro?
A verdade é que precisamos da presença das mulheres, como precisamos da presença de negros nos diferentes espaços sociais, inclusive no mercado editorial brasileiro, porque são essas pessoas que, de maneira geral, vão acabar chamando atenção para essas questões. Você pode pensar que uma mulher, em algum momento, vai se perguntar por que não há autoras mulheres num determinado conjunto de obras. Uma forma de alterar um pouco esse quadro é por meio disso que se pede tanto hoje, representatividade. É bom ter pessoas variadas nos espaços em que as coisas são decididas – porque, afinal de contas, é disso que se trata, decisão. A presença das mulheres no mercado editorial [nessas posições] é muito recente. Às vezes temos a impressão de que são muitas, mas elas não são. Será interessante acompanhar que tipo de modificação elas farão dentro desse mercado a partir de agora.
A literatura brasileira vem reproduzindo padrões de exclusão da própria sociedade?
Exato. Fala-se muito sobre isso no cinema, no jornalismo, na publicidade, mas não na literatura, como se ela estivesse à parte das críticas, como se fosse intocada, uma arte superior. Quando na verdade ela é mais um discurso social, mais um discurso que está aí para ser contestado e debatido. A pesquisa mostra como o perfil dos autores e das personagens é de classe média – e cada vez mais vemos como a classe média é entediante. É tudo muito repetitivo, os enredos, as preocupações, as cidades; muito pouco variado, sem graça. Por que temos tão poucos protagonistas cabeleireiros, manicures, bancários, motoristas de ônibus? Outros universos que não aqueles que já conhecemos, tão batidos. O terrível é que, quando essas personagens aparecem, são sempre colocadas em um papel inferior na narrativa, são subalternas, construídos de forma estereotipada, como se não tivessem outras preocupações que não envolvessem comida, emprego, dinheiro. Sempre me incomodo muito quando alguém diz que a pessoa é “simples” para dizer que ela é pobre. E é essa a ideia que aparece na literatura, uma vez que pessoas pobres são retratadas como personagens simples quando na verdade poderiam ser extremamente complexas. Isso não quer dizer que não haja personagens interessantes em alguns desses livros. Mas a perspectiva geral das obras é de classe média, e fala muito sobre como essas pessoas são vistas ou pouco vistas, porque no Brasil existe esse muro social. Convive-se pouco com pessoas de outras classes, e mesmo quando se convive, não se enxerga quem elas são.
Há autores que consideram essas preocupações uma espécie de “patrulha” literária.
Isso é triste, porque quando falamos que é importante ler mulheres, ler autoras e autores negros, muitos escritores homens e brancos se sentem ressentidos, como se estivéssemos dizendo que eles não devem ser lidos. É uma autodefesa desnecessária. Há espaço para todo mundo. O que se está dizendo é: vamos incluir outras coisas, ler outras coisas. A sua visão de mundo pode ser ótima e interessante, mas ela precisa compor um mosaico, não pode ser única. Algumas pessoas lidam com isso muito bem enquanto outras se sentem realmente ofendidas, como se estivessem sendo desprezadas. A questão é que se precisamos pensar em uma literatura brasileira, uma literatura que fale de nós, vivendo neste país, neste momento, precisamos pensá-la como um mosaico. Composta por várias perceptivas, vista de ângulos diferentes. Só isso pode enriquecer a nossa produção e dar conta, minimamente, da complexidade da vida contemporânea. Há uma ideia de literatura com “L” maiúsculo, que no final das contas não passa de uma literatura masculina e branca, já que toda a produção que não passa por esse lugar se torna adjetivada: feminina, negra, periférica, marginal. Insisto que temos que pensar em termos de literaturas, sem L maiúsculo, e acabar com essa ideia de literatura “universal” para pensar num conjunto muito mais vivo e pulsante.
O autor brasileiro retratado na pesquisa não quer ou não se sente “autorizado” a escrever ficção sob determinadas perspectivas sociais e de gênero?
As duas coisas. A minha impressão é que as pessoas acabam escrevendo apenas sobre o que conhecem. Então é claro que os homens se sentem mais à vontade para escrever protagonistas masculinos com personagens femininas um pouco mais estereotipadas. E se a gente for parar para pensar, uma vez que existe muito mais literatura sobre homens, talvez até as mulheres quando escrevem tenham mais facilidade para construir protagonistas homens mais consistentes do que os homens para escrever mulheres. A pesquisa mostra que quando a obra é escrita por mulheres, temos quase 50% de personagens homens. Mas talvez, neste contexto de escrever sobre o que se conhece, falte um pouco mais de pesquisa por parte dos autores, e um pouco mais de atenção das editoras à produção do Amazonas, do extremo sul do país, do interior do Nordeste.
A construção dessa literatura como “mosaico” está bastante ligada à questão da autoria, como mostra a pesquisa. Corre-se o risco de confinar mulheres e autoras e autores negros, por exemplo, a certos eixos temáticos?
Sem dúvida. É algo bastante complexo. A inclusão de outros nomes, de outras perspectivas, não implica a produção de um texto superior, autêntico. Eles podem inclusive repetir estereótipos. E me parece importante reforçar sempre que mulheres negras não deveriam ser obrigadas a escrever só sobre mulheres negras, da mesma forma que moradores do Nordeste não são obrigados a escrever sempre sobre essa região. A ideia é que as pessoas não falem só sobre a sua experiência, mas também tragam a sua perspectiva social sobre a experiência do outro. Por que uma mulher negra não poderia escrever um romance sobre mulheres e homens brancos de elite? O problema, hoje, é que aparentemente só homens brancos, de elite, de São Paulo e do Rio de Janeiro podem escrever sobre tudo, e isso é problemático.
A disseminação da agenda feminista e dos movimentos negros, na academia e fora dela, vem alterando o perfil de publicação e de consumo de literatura?
Acho que vem acontecendo. Talvez porque muitas coisas hoje não passem só pelas grandes editoras e por grandes jornais. Também tem a ver com a última década de investimento nas universidades públicas, com a política de cotas. Houve um avanço, há muitos alunos negros no mestrado, no doutorado, na graduação, algo que não existia há vinte anos. Eu entrava na sala de aula do curso de Letras da UnB e só tinha branco. Vemos mais mulheres, negros e pessoas vindas das periferias próximas deste universo de construção do discurso. E isso muda o perfil do interesse na literatura.
(Publicado originalmente no site da revista Cult)
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