pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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domingo, 10 de junho de 2018

Crônica:As 365 crônicas de Jampa.

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Eis que recebo, num sábado, um telefonema do jornalista Arnaldo Viana para uma festança que os moradores de Jacumã estão organizando no Altiplano. Infelizmente, não poderei comparecer. Seria uma ótima oportunidade para reencontrar o maior cronista paraibano e o comendador da Confraria da Serramalte, que se reúne periodicamente no Mercado Municipal, ali no bairro de Tambaú. Convite do Arnaldo é como uma intimação da justiça, não se pode negligenciar. Ainda não sei como vou arranjar uma desculpa com a turma, quem sabe algum compromisso inadiável, uma viagem inesperada, alguma coisa que, de fato, justifique a ausência. Talvez uma visita surpresa à sua fazenda, na zona rural de Triunfo,  ou à sua casa de Jacumã, ali no Conde, algo que ele não se sinta ofendido com nossa ausência na festa do Altiplano. Naturalmente, muito bem acompanhado, com uma boa cachaça, um pernil de porco defumado, um queijo de cabra do brejo paraibano... conheço bem as suas fraquezas. Alguma coisa que o faça, depois de algum tempo, recordar os tempos de putaria no baixo Roger. Grande anfitriã, corre-se um sério risco de Dona Zélia esconder tudo num freezer e servir as suas guloseimas e iguarias inimagináveis, reservadas para as visitas especiais. 

Formado em direito, mas jornalista de batente - e dos grandes - Arnaldo foi capaz de uma proeza, quando era colunista de um conhecido jornal paraibano: escreveu 365 crônicas durante um ano, uma para cada dia do ano, sobre os mais diversos assuntos,dos costumes, da picardia à política. As crônicas políticas lhes renderam alguns processos, os quais ele vem gerenciando até hoje. Um dia esses processos chegam nas mãos de Gilmar, brinca. Essa gente não gosta de ser criticada. Nesses tempos bicudos que vivemos, não estranha nenhum pouco a existência de projetos que se prestam a censurar os jornalistas e blogueiros, impedindo seu exercício de livre expressão, o que depõe contra a Carta Magna, hoje tão vilipendiada. Lê religiosamente nossos editoriais - enviando com regularidade as suas considerações - o que muito nos honra. Quando escreve sobre costumes, suas tiradas são impagáveis. Seu texto é conciso, direto ao ponto, sem arrodeios. "Corrosivo"  como o diabo verde em certos momentos. Melhor seria dizer nos momentos certos, pois Arnaldo sabe exatamente quando atacar e quando se defender. Conhece os bastidores da política paraibana como nenhum outro jornalista. É o nosso correspondente naquelas bandas.

Nossas farras em Jacumã já entraram para o folclore local. O Bar de Dona Irene é terminantemente fechado para atender à turma, sempre que nos reunimos por lá. O cardápio é variado, mas inclui, entre outras iguarias, ostras, patolas de caranguejos, caldinhos diversos, camarões, ciobas, degustadas por uma legião de admiradores do maior jornalista da Paraíba. Certa vez fiz uma lista com as dez melhores coisas para se fazer em Jacumã. Recebi uma reprimenda do Arnaldo por não incluir essas farras na listagem. E ele tinha razão. A farra de Jacumã só não é maior do que os famosos churrascos organizados em sua fazenda, onde rola de tudo, até altas horas da madrugada. Na manhã seguinte, logo cedinho, o cabra já está a postos para tirar leite das vacas, preparar pessoalmente seu doce de leite fresco, inspecionar o rebanho, pescar traíras num rio que passa na propriedade.
 
Arnaldo é uma pessoa afável e divertida. Nessas ocasiões, estão presentes as lembranças de uma João Pessoa onde se comia gente nas matas da Bica; suas andanças pelas zonas de baixo meretrício do bairro do Roger e da ração que era servida nas casas de pensão da cidade, onde ficava hospedado para estudar na universidade local. Cuscuz com ovo de segunda a sábado. No domingo, um cardápio especial: carne de lata. Apenas aqueles mancebos que se propunham a aceitar os caprichos das senhoras donas das pensões é que recebiam algum tratamento diferenciado. Um leitinho com Nescau, uma cocada de coco para adoçar aqueles dias amargos e, porque não, amendoins e chás de catuaba, que fazem um bem danado ao "coração".   
 

Desprezo à democracia é cicatriz que não se esconde

                                          

    Além da lei 

Desprezo à democracia é cicatriz que não se esconde

FacebookTwitterEmailPinterestAddthisO desprezo pela democracia gera cicatrizes que não são fáceis de esconder (Foto Agência Brasil / José Cruz)

Poucos dias depois que o resultado da eleição presidencial havia sido anunciado pelo TSE, centenas de pessoas cobriam a avenida Paulista com pedidos de impeachment ou, se não, o de uma enigmática e até então incompreensível intervenção militar. Os líderes derrotados foram um pouco mais prudentes, mas nem tanto. Insinuaram fraude e pela primeira vez na história de nossas tão bem-sucedidas urnas eletrônicas subscreveram um quase estudantil pedido de recontagem. Em uma semana já era possível compreender bem as dificuldades que Dilma Rousseff teria para iniciar seu segundo mandato. As eleições de 2014 simplesmente não haviam acabado.
A desconfiança imputada ao processo eleitoral – seletiva, pois para outros cargos a urna teria funcionado a contento – não era mesmo mais do que uma demonstração simbólica de irresignação. Mas foi se recheando com toda sorte de fake news, o combustível adulterado do amplo processo de deslegitimação da democracia – esta epidemia que se alastraria pelo país.
A ânsia de interromper um governo que nem havia começado, por fatos que orbitavam entre os deslizes do passado ou os temores do futuro, impediam que o presente se iniciasse. Ao final, os interesses imediatos se colocaram à frente das instituições: era preferível chegar mais cedo ao poder do que preservar a regra do jogo em busca de uma alternância que os sucessivos fracassos eleitorais vinham impedindo.
Nesse frenesi, houve de tudo um pouco. Liberais que reclamavam da excessiva presença do Estado deram as mãos àqueles que pretendiam pura e simplesmente o retorno aos anos de chumbo, onde até o pensar podia ser objeto de uma, digamos, intervenção militar. Houve pareceres por encomenda, deputados com preços e jornalistas imbuídos de uma missão.
O mercado apostou todos os seus cifrões na queda do governo – ainda que Dilma tivesse, no desespero, recrutado, também de forma incompreensível, um dos mais confiáveis porta-estandartes do sistema financeiro. Não era suficiente. A janela de oportunidades que estava prestes a se abrir não tinha termo de comparação. Um saco de maldades que só um presidente não-eleito teria condições de proporcionar, o programa prêt-à-porter para um governo de patrões: privatizações, internacionalizações, desmontagem da legislação trabalhista. E uma forma de precificar os derivados de petróleo da qual iríamos nos arrepender em pouco tempo.
Os perigos de uma economia mal gerida; a corrupção em escala ou a perda de sustentação política. Um anticomunismo redivivo, uma mistura explosiva de ódio e ressentimento, um quê não desprezível de machismo. Tudo, enfim, se juntou para justificar a inusitada aliança que reuniu a fina flor do mercado, o bizarro grupo de jovens mais fascistas que liberais, a república messiânica e midiática dos bacharéis e os políticos até então poupados pela mídia camarada. Tudo envolto em argumentações jurídicas de baixa densidade, mas que foram mais do que suficientes para um Supremo que se mostrava pouco disposto a exercer sua função contramajoritária e zelar pela Constituição.
Abriu-se a temível porta da desinstitucionalização. E quem diz que é fácil fechá-la?
O pânico moral de que se revestiu a chamada luta contra a corrupção encontra seu limite quando as denúncias batem às portas daqueles que tão fortemente a empunharam, levando a uma encruzilhada que estanca a persecução ou, ao menos, diminui sua rapidez e intensidade. Nem todos os processos correm; nem todos os réus vão presos. O paradoxo se instaura: ou a lei não é para todos ou é para todos e não sobra ninguém.
A economia continua com seus percalços e perspectivas sombrias, ainda que a imprensa tenha começado a elogiar docilmente a metade cheia de um copo sobre o qual cansou de avisar o quanto estava vazio.
O desemprego em altas proporções é sempre um condimento perigoso para movimentos de massa. Mas o pior nem está no posto sem gasolina ou no mercado desabastecido: está na desilusão para com a democracia e nas portas laterais que os interesses poderosos ensinaram a forçar.
A desesperança cultivada segue florescendo vivamente. Dois anos depois, voltamos bem mais do que vinte, para aquela época dos livros em que não tínhamos sequer a certeza da próxima eleição. Mas se a tivermos, quem garante que dessa vez ela termina?
Outubro vai marcar também o trigésimo aniversário de uma Constituição ameaçada de extinção ou apenas prestes a se recolher à sua própria insignificância. Normas que tutelam direitos fundamentais vem sendo desprezadas a olho nu; o arcabouço social de que se revestiu a Carta cidadã foi suspenso por uma lei que dura vinte anos; o populismo tomou conta do espírito daqueles que juraram defender os seus princípios.
A democracia está longe de ser um objeto descartável. Seu desprezo gera cicatrizes que não são fáceis de esconder.
Mas o pior dessa bagunça toda é o fato de que aqueles que tanto se esforçaram para tirar as coisas do lugar são justamente os primeiros que se apresentam com credenciais para arrumar a casa.

MARCELO SEMER é juiz de Direito e escritor. Mestre em Direito Penal pela USP, é também membro e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Editorial: Que domingo, leitores!


 
 
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Salva este domingo, leitor, talvez um passeio com as crianças ao parque, torcendo para não ser vítima de algum ato de violência. No campo da política, apenas notícias ruins, com nossa democracia caindo pelo despenhadeiro. Esvaindo-se as chances de soerguê-la, porque as forças do retrocesso expõem, cada vez mais, o poder de sua musculatura e contam, pasmem, com o concurso de estratégias equivocadas pelo lado das forças do campo popular e progressista. Nosso maior capital eleitoral encontra-se encarcerado, com mínimas chances de viabilizar-se como candidato, conforme já afirmamos por aqui. Na província pernambucana, a informação de que a Executiva Nacional do PT lançou uma resolução que se constitui mais uma ducha fria na construção de uma candidatura própria, soberana, independente, que pudesse, de fato, permitir que os eleitores do Estado tivessem uma opção republicana de voto, para além de uma briga intestina entre velhas e atrasadas oligarquias que infernizam nosso cenário político há décadas.  

Em artigo publicado no Le Monde, durante a semana, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva reafirma seu desejo de disputar as eleições presidenciais de 2018. Só não entra no páreo por alguma fatalidade. Setores do partido até esboçam a possibilidade de construir outras alternativas a Lula, mas não passam de esboços, como é o caso das pré-candidaturas do ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, e do ex-ministro Patrus Ananias. A convicção de que Lula será o candidato é tanta que o nome do vice da chapa já estaria em negociação com comunistas e socialistas, seja lá o que isto significa hoje. Com Lula encarcerado, é curioso observar que, quando esses nomes começam a ser trabalhados, logo o outro lado - o lado da engrenagem golpista - inicia as manobras com o propósito de fustigá-los. Patrus nem tanto, mas Haddad já sente os efeitos das práticas assediativas, com o objetivo de desgastá-lo. Seria muito ingênuo imaginar que os golpistas iriam soltar Lula para ele vencer as eleições presidenciais de outubro próximo, como sugerem alguns idealistas petistas. A engrenagem autoritária ainda mói, há algumas etapas pela frente, e, num arremedo de democracia como o nosso, eles certamente não devolveriam o poder às forças do campo progressista assim tão facilmente.
 
Talvez arremedo seja um termo que não dá conta do momento atual enfrentado por nossas combalidas instituições democráticas. A engrenagem autoritária  nos atiraram num pântano, com água à altura do pescoço, cercado de serpentes veneosas e bem distante da terra firme. Um presidente acossado, profundamente desgastado, impopular, com índices altíssimos de desaprovação e encrencado com a justiça; Soberania e riquezas nacionais ameaçadas e entregues ao capital estrangeiro; perspectivas sombrias de recrudescimento do golpe parlamentar de 2016; O Estado completamente a serviço dos interesses do capital e uma população que vive precariamente, sem o respeito aos seus direitos e garantias individuais ou coletivas, amargando índices estratosféricos de desemprego. Neste cenário, não surpreende que, com Lula fora do páreo, haja uma ascensão dos oportunistas de turno, com plataformas  esdrúxulas e exóticas, capazes de nos conduzir precipício abaixo. Não recordo de ter vivido uma crise dessas dimensões. Poucas coisas, como disse, se salvam neste domingo, leitor.

sábado, 9 de junho de 2018

Crônica: J. Borges, as palavras andantes.

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José Luiz Gomes

A legitimação de alguns atores, numa sociedade profundamente desigual como a nossa, onde o capital simbólico e econômico são tão seletivamente distribuídos, não se traduz num processo muito simples, Pierre Bourdieu. J. Borges acredita que o reconhecimento de sua arte pelo escritor Ariano Suassuna tenha sido, talvez, o fator mais determinante para deslanchar sua carreira de gravador popular. Ariano conheceu seus trabalhos através de dois artistas que haviam encomendados a Borges, xilogravuras um pouco maiores do que as tradicionais, do tamanho de um livreto de cordel. Logo se interessou pelo trabalho do artista, abrindo caminho para exposições, palestras aqui e em outros países. Seus trabalhos hoje encontram-se expostos em museus no México, na Europa e nos Estados Unidos.
 
Durante os anos em que Ariano ainda estava neste plano, ambos mantiveram uma profícua amizade, que oportunizou a Borges frequentar também o circuito acadêmico, sempre conduzido pelas mãos de Ariano, que era professor da Universidade Federal de Pernambuco. Borges se recorda com muito carinho dessa relação. O reconhecimento de Ariano, creio, o envaidece bastante. Borges escreveu e ilustrou algo em torno de 350 livretos de cordel, que, nos tempos das vacas magras, eram comercializados em feiras livres pelo Nordeste. Entre as xilogravuras que produziu, a sua preferida é A chegada da prostituta no céu. Borges já recebeu várias homenagens, de instituições como a Fundação Joaquim Nabuco, Unesco. Seus trabalhos ilustram várias campanhas institucionais, realizadas em todo o mundo. É considerado o maior xilogravurista da América Latina.  
 
De origem humilde, Borges trabalhou na agricultura, com o seu pai, desde os 08 anos de idade, de onde se conclui que também encontrou dificuldades em sua formação. Sua avó proibia-o de ir à escola, pois acreditava na lenda do papafigo que comia criancinhas nas ruas de Bezerros. Depois de escrever seus primeiros cordéis, não encontrou quem os ilustrasse. Fez algumas tentativas com a talha e, depois de alguns erros iniciais, acertou a mão. J. Borges ensinou o ofício aos filhos e parentes, que hoje se dedicam à confecção de matrizes e reprodução de xilogravuras, comercializadas entre artistas e apreciadores da arte. Seu universo temático é bem expressivo, mas destaca-se, sobretudo, os fazeres e imaginário dos homens e mulheres nordestinas - se há erro de concordância, é de propósito, para não ser indelicado com as mulheres. Apesar dos inúmeros reconhecimentos, a relação deste patrimônio cultural vivo com o poder público não é das melhores.
 
 
Em visita ao Estado do Rio de Janeiro, o escritor Uruguaio, Eduardo Galeano, interessou-se pelo seu trabalho, expostos numa galeria local. Começava ali uma maratona de contatos, pois Galeano havia decidido que o seu próximo livro, as palavras andantes seria ilustrado pelo gravurista pernambucano. Galeano veio a Pernambuco e foi até Bezerros, conhece-lo pessoalmente. Neste nosso último encontro, através de uma visitação patrocinada pelo Museu do Homem do Nordeste, Borges nos relatou um fato curioso: Uma de suas filhas se preparava para casar - precisava de dinheiro para organizar a festança e ele não se fez de rogado: Pediu a Galeano que enviasse algum. Certo dia, o gerente do Banco do Brasil liga para ele para informa-lo que nunca tinha visto tanto dinheiro: Galeano havia feito um bom adiantamento. As Veias Abertas da América Latina era um espécie de bíblia para jovens que queriam transformar o mundo, em décadas passadas. Além dessas leituras, outra lembrança que guardo de Galeano foi um texto seu, em inglês, num processo seletivo. Numa referência ao desmonte da experiência do socialismo real, ele observava que tal experiência era uma criança, diante dos séculos de existência do capitalismo. Como tal, não deveríamos jogar a criança fora da banheira com a água suja.  
 
Um professor que nos ensinou tudo sobre Pierre Bourdieu nos relata uma odisseia curiosa, no contexto de sua batalha pessoal para tornar-se orientando do sociólogo francês. Viajou à França, acordou bem cedinho para acompanhar uma de suas concorridas aulas no Collége de France. Bourdieu não apenas escrevia, mas falava também muito difícil. Depois da palestra do sociólogo francês mais citado nos compêndios científicos do mundo inteiro durante décadas, este professor tomou coragem para pedir a ele um esclarecimento acerca de um dos seus conceitos, exposto durante a aula. Uma ousadia. Era a respeito do reconhecimento de uma obra de arte, um livro, coisas assim. Bourdieu tomou este último exemplo para tentar explicar o conceito: imagine que você escreve um livro. Seria natural que sua esposa o elogiasse, seu filho igualmente. Mas suponha que alguém que você não conhece, nunca viu elogiasse o seu trabalho. Qual o reconhecimento que emprestaria maior relevância? Naturalmente, o elogio daquele desconhecido. Tanto quanto mais distante, maior a importância do reconhecimento. Isso se aplica a J.Borges, Nascido na cidade dos papangus, ele alcançou projeção mundial.  

Como a política identitária dividiu a esquerda: uma entrevista com Asad Haider


Rashmee Kumar


A política identitária atende a todos os gostos, mas não no bom sentido. Em sua campanha eleitoral de 2016, Hillary Clinton invocou a “interseccionalidade” e o “privilégio branco” como um aceno vazio aos jovens eleitores liberais. Richard Spencer e membros da “alt-right” (“alternative right”, um movimento de extrema-direita nos EUA) se autodenominam “identitários” para mascarar o fato de que são, na verdade, supremacistas brancos. E, para algumas pessoas “conscientes”, usar uma camiseta onde se lê “feminista” e criticar celebridades por serem vagamente “problemáticas” é a máxima extensão de sua participação política.
O que pretendia ser uma estratégia revolucionária para derrubar opressões entrecruzadas tornou-se uma palavra de ordem nebulosa e carregada, que foi cooptada pelos diferentes polos do espectro político. Um novo livro, “Mistaken Identity: Race and Class in the Age of Trump” (“Identidade Trocada: Raça e Classe na Era Trump”, ainda sem tradução no Brasil), empreende uma análise rigorosa das políticas raciais e da história racial nos Estados Unidos para debater a mutável relação entre identidade pessoal e ação política.
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Foto: Cortesia de Verso
Em “Mistaken Identity”, Asad Haider defende que a política identitária contemporânea é uma “neutralização dos movimentos contra a opressão racial”, e não uma progressão em relação à luta de base contra o racismo. Haider, doutorando da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, coloca o trabalho dos acadêmicos e ativistas negros radicais em diálogo com suas experiências pessoais de racismo e organização política. Ele mapeia o processo por meio do qual as visões revolucionárias do movimento de libertação negra – que viam o racismo e o capitalismo como dois lados da mesma moeda – foram substituídas por um conceito restrito e limitado de identidade.
Ele argumenta que a identidade foi abstraída das nossas relações materiais com o Estado e a sociedade, que a tornam relevante para as nossas vidas. Assim, quando a identidade serve de base para as crenças políticas de alguém, ela se manifesta em divisionismo e atitudes moralizantes, em vez de estimular a solidariedade.
“O enquadramento da identidade reduz a política ao que você é como indivíduo e enquanto ganha reconhecimento como indivíduo, e não à sua participação em uma coletividade e na luta coletiva contra uma estrutura social opressora”, escreve Haider. “O resultado é que a política identitária paradoxalmente acaba reforçando as mesmas normas que se dispõe a criticar.”
O conceito de política identitária foi originalmente criado em 1977 pelo Coletivo Combahee River, um grupo de feministas socialistas lésbicas negras que reconheciam a necessidade de uma política autônoma própria, uma vez que se confrontavam com o racismo no movimento das mulheres, o sexismo no movimento de libertação negra, e o reducionismo de classe. Foi fundamental para sua política emancipatória trazer para o centro a forma como as opressões econômica, racial e de gênero se materializavam simultaneamente em suas vidas. Seu trabalho político, porém, não parou aí. As mulheres de Combaheem defendiam a construção de alianças em solidariedade a outros grupos progressistas para erradicar todas as formas de opressão, ao mesmo tempo em que traziam a que elas próprias sofriam para o primeiro plano.
Ao fundamentar sua crítica em histórias específicas e relações materiais, Haider adota uma abordagem de múltiplas vertentes para explorar em que intensidade a política identitária se afastou de suas origens radicais.
Por meio de seu envolvimento na organização contra o aumento das anuidades escolares e a privatização, Haider descreve as falhas dos movimentos que criam uma falsa separação das questões econômicas e raciais por critérios baseados em identidade: questões “de brancos” e questões “de não brancos”. Sua análise do “privilégio branco” reflete sobre o desenvolvimento da raça branca, codificada no estado colonial da Virgínia no século XVII pela classe dominante para justificar a exploração econômica dos africanos como escravos e evitar as alianças entre trabalhadores africanos e europeus na sequência da Revolta de Bacon.
No seu capítulo sobre “passabilidade”, Haider tenta compreender o caso de Rachel Dolezal como um exemplo das “consequências de reduzir a política à performance identitária”. Ele analisa o trabalho do novelista Philip Roth, bem como a transformação política do poeta Amiri Baraka, que abraçou o nacionalismo negro nos anos 1970 e depois o renegou em prol do universalismo marxista. Por fim, Haider explica como a eleição de Donald Trump estava delineada na ascensão do neoliberalismo na política eleitoral décadas atrás. Usando o trabalho do teórico cultural britânico Stuart Hall, ele traça cuidadosas comparações com a gestão da crise econômica e do pânico moral pelo Partido Trabalhista do Reino Unido na década de 70, que preparou o caminho para a chegada de Margaret Thatcher ao poder.
O curto livro de Haider se encerra com o paradoxo dos direitos como o objetivo final dos movimentos de massa. Ele convoca, em vez disso, a uma retomada do “universalismo insurgente”, onde os grupos oprimidos se posicionam como atores políticos, não como vítimas passivas. Ao mesmo tempo fascinante e provocativo, “Mistaken Identity” se afasta das brigas no Twitter e dos artigos de opinião para contextualizar os debates sobre política identitária e reconfigurar como a ideia de raça conforma os movimentos de esquerda. A entrevista de The Intercept com Haider foi resumida e editada por razões de clareza.
Você pode fazer um apanhado de como a política identitária se converteu de prática política revolucionária a ideologia liberal individualista?
1977 foi historicamente um divisor de águas. Em primeiro lugar, veio a crise dos movimentos de massa, que remonta ao movimento dos direitos civis – a Nova Esquerda da década de 60 e o nacionalismo negro que se seguiu a ela. Essas mobilizações e organizações de massa enfrentaram seus próprios limites estratégicos, confrontadas com a repressão estatal, e assim seu dinamismo entrou em declínio. Ao mesmo tempo, houve o que Stuart Hall chamou de “crise de hegemonia”, onde as coordenadas da política americana estavam sendo completamente reorganizadas. O mesmo processo estava acontecendo na Europa, onde as crises econômicas dos anos 1970 tinham levado a uma completa reordenação dos locais de trabalho, os sindicatos estavam na defensiva, e os movimentos de massa estavam se dissolvendo. Assim, parte do que aconteceu naquele período é que a linguagem da identidade e da luta contra o racismo se tornou individualizada e unida ao progresso individual de uma classe política negra ascendente e de elites econômicas que haviam sido excluídas do centro da sociedade americana pelo racismo, mas passaram a ter uma via de entrada.
Penso que nos falta, no momento atual, uma linguagem política que possa promover o deslocamento da divisão para a solidariedade, que foi uma questão importante para os movimentos antirracistas desde a década de 50 até a de 70, e é sobre isso que o Coletivo Combahee River estava escrevendo. Não temos uma linguagem para as lutas coletivas que inclua as questões do racismo e possa incorporar movimentos interraciais. Acho então que parte do motivo para que esse tipo de política identitária individualista apareça tanto na esquerda entre ativistas que realmente querem estruturar movimentos que desafiem a estrutura social é que nós perdemos a linguagem que acompanhava os movimentos de massa, e que nos permitia pensar em formas de construir essa solidariedade.
Você escreve que “a ideologia de raça é produzida pelo racismo, não o contrário”. O que isso significa?
Nesse livro, eu não falo sobre “raça” em geral porque é possível pensar em muitos contextos históricos diferentes em que são introduzidas divisões entre grupos que se tornam hierárquicas, e algumas delas podem estar relacionadas à cor da pele. Mas existem exemplos desse tipo de diferenciação de grupo que não estão relacionados a isso, como o caso do colonialismo irlandês e inglês na Irlanda, no século XIII, a que faço referência no livro. Se olharmos para os diferentes exemplos de escravidão no sistema de plantation do Caribe, precisaremos explicar [raça] de outra forma, porque não havia apenas escravos africanos, mas também “coolies” [termo pejorativo usado para se referir aos trabalhadores braçais vindos da Ásia] da Índia e da China.
Falo de uma história muito específica do conceito de raça que emergiu dos trabalhos forçados no estado da Virgínia no período colonial do século XVII. (…) Meu argumento é que a primeira categoria racial que se produz é a da raça branca, de forma a excluir os trabalhadores africanos da categoria em que se incluíam os europeus, para os quais havia uma previsão de término para o período de servidão, [em oposição à] categoria dos escravos, que não tinham prazo. A raça branca foi inventada, como diz Theodore Allen, na forma como as leis mudaram em relação aos trabalhos forçados, e esse foi o começo da divisão das pessoas em categorias raciais na história dos EUA. O que o racismo fez nesse caso foi estabelecer uma diferença entre os tipos de exploração econômica, ao ponto de se tornar uma forma de controle social, que dividiu os explorados ao introduzir entre eles hierarquias e privilégios para alguns, impedindo que [os trabalhadores forçados migrantes europeus e africanos] percebessem seus interesses comuns e o antagonismo comum contra aqueles que os exploravam.
Seus encontros pessoais com o racismo e suas observações sobre o ativismo universitário estão entremeados ao livro. Como a sua própria identidade e as suas experiências influenciaram a sua compreensão de raça?
Asad Haider, cofundador e editor da Viewpoint Magazine e autor do livro "Mistaken Identity".

Asad Haider, cofundador e editor da Viewpoint Magazine e autor do livro “Mistaken Identity”.

Foto: Cortesia de Asad Haider
Eu sempre me refiro a uma citação de Stuart Hall, que disse que a identidade não é um retorno às suas raízes, mas um acerto de contas com as suas rotas. Nesse sentido, identidade não é a sua essência, ou o que está dentro de você na sua fundação, mas diz respeito ao movimento que levou até onde você se encontra. Consigo rastrear minha identidade no tempo até a migração dos meus ancestrais do Irã para a Índia, e então, depois da Partição [a divisão do território da Índia Britânica pós-independência, que culminou na criação da Índia e do Paquistão], da Índia para o Paquistão; de lá, meus pais foram para o interior da Pensilvânia. É a história de um movimento pelo mundo, e, a cada passo, uma mistura que transformava o que estava se movendo. Essa percepção sempre me deixou muito cético quanto ao salto entre uma identidade e um tipo específico de política, porque a identidade não pode ser reduzida a uma coisa fixa. Quando você tem uma política que faz exatamente isso, é um desserviço para as pessoas e para todas as nossas histórias de misturas e dinamismo.
Quanto ao ativismo universitário, minha experiência foi como pessoa não branca que se radicalizou principalmente ao aprender sobre o movimento Black Power e sobre o marxismo, por meio do Black Power. Por isso, nunca imaginei que as pessoas pudessem enxergar incompatibilidade entre eles, especialmente porque o marxismo era a força poderosa que existia no século XX, e ia sendo levada e adaptada ao mundo fora do Ocidente. E isso atualmente foi esquecido ou suprimido. Então, como pessoa não branca que se envolvia em movimentos sociais, eu ficava realmente desanimado quando via que a questão racial frequentemente se tornava um catalisador de polarização, fragmentação e derrota, em vez de se incorporar a um programa de emancipação geral. Foi essa frustração que me levou a refletir e a escrever sobre os temas que compuseram o livro.
A esquerda é frequentemente acusada de ser “branca demais” ou “masculina demais”. Como a esquerda pode começar a abordar sua dinâmica racial interna?
Se você tem uma organização ou um movimento que é dominado por homens brancos, isso é um problema político e estratégico. Se ele for tratado como um problema moral, não haverá como resolvê-lo, e eu considero que o importante é conseguir mudar a situação. Qualquer pessoa que já tenha participado de ativismo sabe que, em uma reunião, alguém pode ser chamado ou intimado a “medir seus privilégios”. Jo Freeman escreveu um texto interessante, oriundo do movimento feminista, intitulado “Trashing” [“Escracho”]: o equivalente contemporâneo de “escrachar” é “expor”. O curioso do escracho é que ele não funciona, porque centraliza toda a atenção no homem branco que praticou a transgressão que esteja sendo moralmente condenada. Ele também cria uma atmosfera tal de tensão e paranoia que mesmo pessoas que não são homens brancos ficam nervosas ao falar porque podem dizer a coisa errada – e ser escrachadas. Assim, é uma questão que as pessoas envolvidas na organização precisam levar a sério, e que os homens brancos precisam levar a sério.
Havia um princípio que o comunista negro Harry Haywood dizia ser fundamental para a organização durante as lutas antirracistas dos anos 1930. Ele dizia que todos precisam acertar as contas com sua própria posição nacional. Assim, os camaradas brancos precisam se opor ao chauvinismo branco, e assumir um papel preponderante nessa oposição. E ele dizia que os camaradas negros precisavam ter um papel preponderante na oposição ao nacionalismo reacionário, que na época era representado pelo Garveyismo [de Marcus Garvey, um dos principais ativistas do nacionalismo negro] e seus equivalentes. Para ele, com essa divisão de trabalho, que era parte efetiva dos movimentos de massa, era possível começar a superar esses problemas. Mas ele disse mais tarde, quando o partido abandonou suas campanhas contra o racismo, que começaram a policiar a linguagem que cada um usava, e a divisão de trabalho acabou, e o problema não foi resolvido. E isso permanece. Homens brancos dentro dos movimentos precisam tomar a frente das tentativas de superação dessas hierarquias que se manifestam nas interações sociais, mas as pessoas não brancas também precisam dar um passo adiante e dizer: “não aceitamos essa divisão entre questões econômicas e raciais, entre classe e raça, e se alguém vier tentar dizer que essas questões são ‘brancas’ ou que este é um ‘movimento branco’, isso não é verdade, porque estamos aqui e desempenhamos um papel, e acreditamos que todas essas questões estejam conectadas e que possamos trabalhar nelas juntos”.
Você pode falar um pouco sobre as ideias por trás do nacionalismo negro dos anos 1970 e suas limitações? Como o nacionalismo negro tem resistido na política contemporânea dos EUA?
Depois de 1965, depois que o movimento dos direitos civis já havia conquistado importantes mudanças nas políticas, não estava claro para onde ele deveria se voltar. Mesmo as lideranças do movimento pensavam que, uma vez que a segregação legal já havia sido formalmente enfraquecida, ainda era preciso lidar com o fato de que a maior parte da população negra vivia na pobreza, e que existiam estruturas fáticas de exclusão. Martin Luther King, por exemplo, começou a se interessar pela “Campanha dos Pobres”, em que atuou no final de sua vida. Mas nesse momento havia também uma outra abordagem, que algumas pessoas chamavam de “tumultos” e outras chamavam de “rebeliões urbanas”, nas cidades do norte do país, numa revolta contra o controle econômico dos proprietários de imóveis e empresários brancos, e questões afins. Na região norte, num contexto urbano, o nacionalismo negro entendido como projeto político dizia respeito à construção de instituições alternativas, em vez de pleitear a integração à sociedade branca.
Havia, então, duas coisas acontecendo simultaneamente. De um lado, nacionalistas negros construindo instituições paralelas, e de outro, a superação da segregação legal e a ascensão de uma nova classe política e uma nova elite econômica negras, que sempre tinham existido em alguma medida, mas não em qualquer escala comparável. Assim, as organizações nacionalistas negras estavam por trás de boa parte das campanhas pela eleição de um prefeito negro em uma cidade de maioria negra. No caso de Amiri Baraka, foi Kenneth Gibson. Uma das razões pelas quais Baraka deixou o nacionalismo negro e aderiu ao marxismo foi a percepção de que, uma vez que Gibson estava no comando de Newark, a política continuou a de sempre. Eu considero que o nacionalismo negro teve um papel revolucionário na sua época – foi um desenvolvimento estratégico e político muito importante – mas ao longo da década de 70, com a ascensão da classe política negra e das elites econômicas negras, ele entrou em contradição.
O nacionalismo negro se tornou atrelado às elites negras políticas e econômicas porque tinha uma ideologia de união racial, e quando as pessoas estavam completamente excluídas da governança e do controle sobre suas vidas, fazia sentido que houvesse uma espécie de aliança entre essas figuras elitizadas e os estratos econômicos mais baixos, porque ambos estavam enfrentando estruturas raciais de exclusão. Porém, à medida que teve continuidade o processo de incorporação das elites negras às estruturas políticas e econômicas já existentes, aqueles interesses já não estavam alinhados, especialmente nos anos 1970, quando os políticos em todos os níveis começaram a impor medidas de austeridade à população, cortando programas sociais e afins. Passaram a ser os políticos negros fazendo isso, e então as contradições entre a elite negra e a maioria da população negra das cidades começaram a se tornar muito claras. O que eu acho que ainda permanece é a divisão entre as elites e a massa trabalhadora, e um resíduo ideológico de união racial que muitas vezes é usado para encobrir a divisão de classe. Esse era bem o caso de Barack Obama.
Como a política identitária pode ser levada de volta a suas origens radicais dentro de um discurso político e uma forma de organização contemporâneos?
Considero que precisamos estar abertos à compreensão de que nossas identidades não formam a base de nada; elas são instáveis e multifacetadas, e isso pode ser incômodo. Precisamos, porém, aprender a aceitar esses aspectos, e parte do que podemos fazer a esse respeito é criar novas formas de nos relacionarmos, que podem surgir por meio dos movimentos de massa. Poderemos superar a fragmentação a que a identidade parece conduzir atualmente ao reconhecer o que o Coletivo Combahee River propunha: que conseguíssemos afirmar uma autonomia política, mas também estar unidos. Acho isso muito prático. Essa solução não virá das discussões intermináveis no Twitter; é algo que precisa surgir da atividade política. É trabalhando em projetos práticos e concretos, aliados a outras pessoas. Esse, por si só, é um processo que enfraquece o racismo, e brancos que trabalham em conjunto com não brancos podem aprender a questionar suas próprias presunções e superar seus impulsos racistas.
Eu me inspiro muito pelo rápido crescimento de organizações socialistas na atualidade, mas algumas vezes me preocupa que o socialismo seja considerado uma espécie de projeto de redistribuição econômica que permanece inalterado desde o século XIX. Os socialistas sempre estiveram envolvidos na construção de alianças: sempre houve um princípio de internacionalismo, nunca houve um conceito fixo sobre que tipos de demanda um movimento socialista deve impulsionar. Algumas vezes uma demanda que parece não estar diretamente relacionada à redistribuição da riqueza pode ser parte da construção de alianças e da mobilização das pessoas. Se uma organização socialista está à frente de um movimento contra o racismo (e esse era o objetivo de vários membros negros do Partido Comunista na década de 30), as pessoas vão olhar ao redor e dizer: “Quem está do nosso lado? São essas pessoas. Quando estávamos lidando com a violência policial, ali estavam essas pessoas, foi essa organização que interferiu para ajudar. E essa organização é multirracial, e eles acham que essas questões que vivemos no cotidiano são importantes, exatamente na mesma medida de qualquer outra questão econômica.” Por isso as organizações socialistas também precisam estar abertas à experimentação e à flexibilidade, para poderem se antecipar à identidade como fonte de divisão e, no lugar disso, fomentar antecipadamente a solidariedade.
Você pode nos explicar sua visão de uma estrutura política universalista?
Precisamos deixar de lado o universalismo do tipo que soluciona divisões e dificuldades dizendo por antecedência que temos algum tipo de fundamento universal, como a natureza humana, ou um materialismo tratado como questão física, que não tem nenhuma relação com o materialismo de que Marx falava. Não é esse universalismo que eu defendo, porque, historicamente, ele tem sido alcançado pela exclusão e pela dominação – como o que foi trazido pelo Iluminismo, pela Revolução Francesa e pela Revolução Americana, que se mantinha associado à escravidão, ao colonialismo e a várias formas de violência. (…) Minha ideia de universalismo é que as pessoas e os grupos que estão excluídos [dessa definição] do universal se levantem e reivindiquem sua autonomia para produzir um novo tipo de universalidade. Não é algo que possa preexistir; é uma ruptura com o estado existente das coisas. O exemplo clássico é a Revolução Haitiana, que veio depois da Revolução Francesa e mostrou que a França ainda mantinha colônias onde persistia a escravidão, a despeito do que se passava na metrópole.
Conseguiríamos enxergar um novo universalismo se fossem superadas em um movimento real e pragmático as divisões rígidas entre as chamadas categorias identitárias, como raça e gênero, e a categoria de classe. Se pudéssemos ver emergir organizações que promovessem mudanças reais e concretas para aproximar esse fosso – nas quais se tornasse impossível dizer “esta é uma organização branca” ou “esta é uma organização dominada por homens”. Esse fenômeno necessariamente exigiria o questionamento da igualdade econômica e da estrutura de classes da sociedade norte-americana. Pois o surgimento de um movimento que se volte contra as estruturas fundamentais de desigualdade, dominação e exploração da sociedade americana de forma que a identidade não possa existir como força de divisão – esse seria um verdadeiro momento universal.
Foto em destaque: Isaiah Moore, à direita, discute com outros manifestantes sobre relações raciais durante uma manifestação em Coolidge Park em 17 de agosto de 2017, em Chattanooga, Tennessee.
Tradução: Deborah Leão

(Publicado originalmente no site do Intercept Brasil)

Charge! Nani

Charge! Renato Machado via Folha de São Paulo

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sexta-feira, 8 de junho de 2018

Crônica: República Dominicana


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José Luiz Gomes
E aquela viagem dos sonhos? Quem sabe Paris? Mesmo enfrentando as filas e os "engarrafamentos" para ver a Monalisa de Leonardo Da Vinci, no Louvre. Conseguiu ingresso para a visitar a Torre Eiffel? E se pintar um nevoeiro, embaçando a tua visão? São os ônus dos pacotes mais baratos, oferecidos em certas épocas do ano, para conhecer a cidade luz.  Depois, uma caminhada pela Saint Elysee e terminar o dia ( ou começar?) no bairro boêmio de Montemartre. Se chove, Paris é ainda mais bonita num dia de chuva, Woody Allen. Ou, quem sabe, o Central Parque num outono de Nova York, para esbanjar aos amigos que pisou no palco onde Simon and Garfunkel se apresentaram em 1981, reunindo 500 mil pessoas, cuja renda foi revertida para as obras do próprio parque. Ainda guardo aquele vinil, que escuto de vez em quando, num toca-discos que optei por não jogar fora. Mania de fã. Londres? talvez não fosse aconselhado porque os pombinhos da família real ainda estão em lua-de-mel, o Big Ben está passando por reformas e andam atropelando muita gente em suas pontes. Modestamente, prefiro a República Dominicana. Bem que poderia ser pelas praias de Punta Cana, mas não é este o motivo. Já explico a vocês.   
Faz pouco tempo, acompanhei alguns programas de gastronomia pela TV fechada. Quando o apresentador  desembarcou na República Dominicana, leitores, foi uma verdadeira farra. Existe um prato naquele país que se assemelha muito à nossa feijoada, feito em grandes panelas, com ingredientes específicos, servido em pratos fundos, no fundo de quintal, acompanhado pelos ritmos locais e uma cachaça de rolha. Não sei se em razão da influência espanhola - São Domingos, foi a primeira capital do império espanhol   na América - o fato é que a culinária dominicana é fora de série. Somente a influência espanhola não daria conta de tantos sabores. O que mais nos impressionou, num entanto, foi um desses restaurantes de beira de estrada. Não apenas pela comida - pedaços de porcos, que são assados inteiros no local - mas em razão de sua localização, bem em frente a um monumento erguido em homenagem à morte do ditador Rafael Trujillo, que infernizou a vida dos habitantes daquele país durante décadas. Precisas três décadas, de 30 a 61.Coisa de idealistas. A lista é grande...ainda inclui as trilhas da Sierra Maestra, La Higuera...
Agora, por ocasião da divulgação dos memorandos da Agência de Inteligência Americana sobre torturas e assassinatos no país, escrevi um longo texto sobre o assunto, mas preferi não publicá-lo, numa espécie de auto-censura, Laércio, em razão dos tempos bicudos que atravessamos. Há uma grande polêmica em torno dessas revelações da CIA, justamento no momento em que se observa um recrudescimento do golpe institucional de 2016, no Brasil. Li até algumas ingenuidades sugerindo que a CIA estaria apreensiva com os rumos políticos do país, quiçá preocupada com uma nova escalada autoritária no continente americano, como já ocorrera em décadas passadas. A CIA nunca esteve preocupada com isso, gente? O importante para aquele órgão é salvaguardar os interesses norte-americanos na região, seja nos parâmetros de regimes de democracia precária, seja através de ditaduras veladas, como ocorreu, por exemplo, durante o regime do ditador Rafael Trujillo. 
Seu chefe de polícia, uma expressão eufemística para designar, na realidade, o homem que chefiava as torturas, andava com uma agenda indefectível. Normalmente, se anda com uma agenda para se anotar os compromissos e coisas assim. Quando elas não são preenchidas, servem como caderninhos de anotações em reuniões. Esta, no entanto, tinha uma peculiaridade macabra: ali eram listados, por ordem alfabética e por países, todas as práticas de torturas existentes, aplicadas sem piedade, aos opositores do ditador. Sua ascensão na cúpula de segurança do regime foi meteórica. Se prestava perfeitamente aos serviços sujos, às práticas dos estertores do regime. Mesmo em regimes fechados, ditatoriais, os membros da Igreja Católica gozam de uma certa blindagem. Na República Dominicana, ocorreu a morte de duas freiras, o que causou uma manifestação de repúdio da comunidade internacional contra o ato bárbaro. Acionado, o então secretário de Estado Norte-Americano, Cordell Hull, teria deixado escapar uma expressão lapidar para se entender o que, de fato, conta quando se está em jogo os interesses norte-americanos na região: Ele pode ser um filho da puta, mas é o nosso filho da puta. Que filho da puta...

Governo corta bolsas de estudo de indígenas e quilombolas

Política possibilitou acesso de quase 18 mil estudantes indígenas e quilombolas às universidades

Brasil de Fato | São Paulo (SP)
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Indígenas apontam desmontes e retrocessos nas políticas públicas / Foto: Flickr
Criado em 2013 pelo governo da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), o Programa de Bolsa Permanência (PBP) está ameaçado desde o início de 2018. As bolsas concedidas pelo programa visam garantir condições estruturais para que indígenas e quilombolas frequentem a universidade.
Desde sua criação, o programa garantiu o acesso à educação para mais de 18 mil estudantes de aldeias e quilombos, por meio de auxílio no valor de R$ 900 para custear moradia e transporte.
Agora, com os cortes já sendo realizados pelo governo federal, lideranças indígenas calculam que entre 2.500 e 5.000 estudantes que já cursam universidades federais poderão ser prejudicados. Além disso, o Ministério da Educação informou ao jornal Folha de S.Paulo que pretende disponibilizar apenas 800 novas bolsas para todo o Brasil.
Cleber Buzatto, secretário executivo do Conselho Indígena Missionário (Cimi), contou que o governo pediu que os próprios indígenas e quilombolas definissem quem seriam os beneficiários das bolsas. Os grupos se negaram a fazer essa escolha, já que a demanda é bem maior.
"Pelos levantamentos feitos pelos povos, a demanda seria entre 4 e 5 mil bolsas", diz. Estudantes e entidades quilombolas e indígenas estão se articulando para pressionar o governo. "Com esse corte haverá uma desistência drástica, porque esses estudantes não têm condição de permanecer nas universidades sem esse devido apoio", completa Buzatto.
Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), enxerga os cortes como mais um gesto do governo federal que causa o enfraquecimento do povo indígena e desmontes em outras áreas como saúde, moradia e acesso à terra. "Essa política de corte perpassa não só as questões orçamentárias, mas também a política genocida que o estado brasileiro vem adotando nos últimos anos", lamenta.
Uma grande mobilização está sendo articulada em Brasília/DF entre os dias 18 e 22 de junho para cobrar a permanência das bolsas de estudo. Além disso, segundo Dinamam, os movimentos vão procurar medidas jurídicas para pressionar o governo.
Edição: Diego Sartorato
 
(Publicado originalmente no site Brasil de Fato)

quinta-feira, 7 de junho de 2018

Crônica: Tardes em Tambaú...com Geraldo Vandré


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José Luiz Gomes



Na realidade, Tambaú é um bairro para ser curtido todas as horas, desde os primeiros raios de sol, que, ali, ponto mais oriental das Américas, nasce bem antes dos outros. Numa barraca de praia, banhando-se em suas águas,  curtindo a brisa suave que brota dos coqueirais, como diria o poeta Vinicius de Moraes , saudando o seu torrão, não menos aprazível, de  Itapuã. Suas praias são de águas calmas, tranquilas e quase sempre mornas. Um convite ao mergulho, de corpo e de alma, daqueles que afastam as mazelas para bem longe, de dezembro a janeiro. Restingas preservadas completam o cenário de uma praia urbana com encantos singulares de vila de pescadores, em alguns momentos. Nos momentos em que contornamos o Hotel Tambaú e nos deparamos com barcos de pesca e uma peixaria com peixes frescos recém-chegados do mar, trazidos pelos pescadores da colônia de pescadores local. Tempo houve, dizem os mais antigos moradores, que o ambiente, como um todo, era bem mais rústico, antes das intervenções urbanas. Para mim, os resíduos dessas lembranças são impagáveis. É ali que costumo tomar uma água de coco e trocar um dedo de prosa com os trabalhadores do mar.  

Com poucas exceções, Tambaú é um dos poucos bairros onde as edificações próxima à orla respeitam o limite de quatro andares, permitindo que o direito à paisagem, Clóvis Cavalcanti, seja preservado. Há apenas dois prédios que fogem a esse padrão, construídos antes da aprovação da lei que regulamenta as construções na orla. No passado, para alguns gestores pouco criativos, a peixaria também se constituía num problema, cuja solução foi encontrada pelo então prefeito, Luciano Agra, que requalificou o local, tornando-o um espaço apreciado por turistas, que não resistem aos camarões vila franca, às ciobas e pescadas amarelas comercializadas no local. Se tem criança no recinto, corra para não perder os passeios de catamarãs até às piscinas naturais de Picãozinho, que dependem da tábua de marés. Fica a meia hora da orla e os catamarãs oferecem petiscos, bebidas e máscaras de mergulhos para os guris apreciarem o espetáculos dos peixinhos coloridos nas águas transparentes. As pedras representam o único inconveniente até se chegar às piscinas. Vale o sacrifício, no entanto. Nessas ocasiões, as crianças são os melhores juízes... 

Ainda pela manhã, ali pelas dez horas, a melhor pedida é o centenário Mercado Municipal, também conhecido como Mercado das Frutas, onde é possível comprar as frutas de época ainda fresquinhas. Com sorte  - e boa programação - você chega na época dos sapotis, dos jambos, das mangas rosas, das jabuticabas, dos famosos abacaxis de Sapé. Os mais suculentos. O Mercado de Artesanato, logo ali pertinho, é coisa para se ver à tarde, depois do almoço regional no Mangai. A feirinha de artesanato é outra opção para quem deseja levar umas lembrancinhas para os familiares e amigos. Tambaú é um bairro completo, não sei se disse isso antes...Ao cair da tarde, um passeio na orla, depois de saborear os melhores sorvetes do mundo, os da Sorveteria Friberg. Aceita uma sugestão? Não deixe de experimentar o tradicional de coco e o de chocolate africano! Hummm!Existem umas três sorveterias bem próximas. A Friberg é a mais acanhada, mas faz o melhor sorvete.  

Foi num desses momentos que este cronista encontrou o compositor Geraldo Vandré perambulando - com seu violão - por aquelas bandas, completamente absorto, sozinho, de chinelos de couro. Geraldo é um dos grandes nomes da musica popular brasileira. Bom letrista, participou de grandes festivais e tornou-se um ícone da luta pela redemocratização do país, cujas manifestações eram embaladas sempre por sua composição: Caminhando ou Para não Dizer que não Falei das Flores. Filho ilustre da Paraíba, Geraldo hoje integra um projeto mantido pela Prefeitura de João Pessoa, apresentando-se em locais públicos. Uma das provas de que este país entrou numa esquizofrenia coletiva é que tal composição foi entoada na última greve dos caminhoneiros, mas com o propósito de pedir uma intervenção militar. Exilado durante o regime militar, Vandré voltou ao país com a redemocratização, evitando entrar em polêmicas. Escreveu Fabiana, que, ao contrário de Caminhando, tornou-se um hino da Aeronáutica. Sempre muito evasivo quando questionado sobre uma possível mudança radical de comportamento, responde apenas que Caminhando, apesar dos refrões inspiradíssimos, não se propunha a estabelecer uma crítica sobre aqueles dias conturbados que o país atravessa(ops!) atravessava, digamos assim. Duas biografias não autorizadas pelo compositor comentam o episódio, insinuando uma possível perturbação mental do autor de Caminhando.

Ao cair da noite? que tal então uma tapioca gigante na pracinha de alimentação, ou, quem sabe, uns petiscos acompanhado de uma Serra Malte bem geladinha, dessas cervajas feitas com água destilada, malte e cevada? O milho não faz bem ao juízo e muito menos ao estômago. Um aviso aos navegantes e apreciadores de cervejas: há uma confraria da Serra Malte no Mercado Municipal. Esses mercadões, hoje, se constituem grandes atrações turísticas - verdadeiros points de todas as tribos e idades - como ocorre com A Ver o Peso, no Pará, o do Rio Vermelho, em Salvador, O Mercado Central, em Belo Horizonte e, o Municipal, em Tambaú. Por que não?Um passeio por sua orla muito bem cuidada, te faculta conhecer alguns pacotes para as diversões noturnas, oferecidas por casas especializados ou restaurantes com voz e violão. Se és da balada, portanto, a tua noite também está garantida. Este é Tambaú, para ser curtido todinho, até o último gole, sem remorsos, sozinho, com familiares, com parceiros ou parceiras, nesses tempos de politicamente correto.  

Charge! Benett via Folha de São Paulo

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quarta-feira, 6 de junho de 2018

Jessé: a radiografia do Golpe


Crônica: Orson Welles no Recife


José Luiz Gomes


Orson Welles esteve no Recife. De passagem, mas esteve. E que passagem, caros leitores. Aqui ele hospedou-se no antigo Grande Hotel, tomou um porre homérico, batizou-se nas águas do Rio Capibaribe e ainda encontrou tempo para conhecer as zonas boêmias de prostituição do Recife, ciceroneado pelo escritor Liêdo Maranhão, que conhecia muito bem o terreno e suas manhas. Vocês não podem imaginar o que eles aprontaram. E ainda dizem que a decadência do cineasta americano ocorreu em terras brasileiras. Não é a primeira vez que relatamos a presença de Orson Welles no Brasil. Escrevemos uma longa crônica sobre o assunto, descrevendo a famosa odisseia dos pescadores cearenses, transformada em filme pelo diretor de Cidadão Kane.  
Outro dia, ao abrir os e-mails, lá estava um longo texto escrito por um cineasta americano elogiando a crônica que escrevi. Deve ter concordado comigo, ao concluir que Orson viveu seus melhores momentos nas praias de Fortaleza, papeando com os pescadores de Iracema, degustando agulhinhas brancas com cervejas geladas e, não tenham dúvidas disso, namorando aquelas cearenses de cores avermelhadas. Já observaram que as mulheres cearenses, queimadas pelo sol, guardam um tom de vermelho na pele? Intrigado, fui procurar saber de quem se tratava. Descobri que o e-mail havia sido encaminhado por um conhecido roteirista do circuito hollywoodiano. Coisa de fã. O prestígio de Orson Welles nunca esteve em discussão por aquelas bandas. 
Os bairros boêmios do Recife sempre foram locais de perdição para a juventude. Muita gente boa não resistiu aos seus encantos, suas mulheres, suas comidas. Um verdadeiro pavor para as famílias tradicionais, cristães e conservadoras da região, que não desejavam que seus filhos seguissem aqueles maus exemplos. José Lins do Rego tirava um simplesmente na Faculdade de Direito e um louvor nas noitadas recifenses. A família de Gilberto Freyre não gostava de sua amizade com o jornalista Carlos Dias Fernandes. O jovem possuía a má fama de levar uma vida boêmia. Foi Carlos Dias quem organizou a primeira conferência pública do então jovem escritor no Brasil, num teatro em João Pessoa, com grande repercussão. Chegou a ser publicada no jornal O Norte, assim como o Diário de Pernambuco, então dos diários associados de Assis Chateaubriand.
Orson viveu no Brasil uma ponte entre os Estados do Rio de Janeiro e o Ceará, preocupado com as filmagens de It's all true. Manobras do Estado Novo getulista e o Departamento de Estado Americano, como se sabe, deixaram o cineasta à míngua, sem recursos para as filmagens, conduzidas apenas com o seu talento. Negros, pobres e favelas em suas tomadas, ainda no Rio, criaram um grande embaraço diplomático entre os dois países. O que foi concebido como uma política de boa vizinhança da diplomacia americana - despretensiosos, esses americanos - transformou-se num grande impasse. Sua passagem pelo Recife, ocorreu, portanto, em meio a essas turbulências.
Mas, se bem conheço Liêdo Maranhão, cada minuto de sua passagem pelo Recife foi muito bem aproveitado. Entre os incidentes, dar-se conta de uma possível queda no Rio Capibaribe, ali no cais que fica bem diante do antigo hotel onde hospedou-se. O porto seguro de Liêdo era o Mercado de São José, de arquitetura francesa, localizado no bairro do mesmo nome. Em suas reflexões sobre uma museologia tropical ou morena, o museólogo Aécio de Oliveira tratava o local como o melhor museu do Recife. A feira assumiria um status bastante relevante em suas concepções expositivas, daí se entender porque ele admirava tanto aquele espaço. Liêdo foi um escritor e grande pesquisador da cultura popular. Ali pesquisava as raízes, os livretos, os ditos e não ditos, também o comportamento dos seus homens e mulheres, como os camelôs, em sua lida diária pela sobrevivência. 
Afinal, o que comeu Orson Welles no Recife...depois das noitadas na Rua da Guia, do Porto do Recife, com aquelas raparigas de latifúndios dorsais, numa expressão feliz atribuída aos sociólogo Gilberto Freyre? Certamente foi ao Mercado de São José com Liêdo, experimentar alguma receita popular para curar ressaca, reconstituir as energias com um chambaril, um sururu, um arrumadinho, uma galinha à cabidela, um sarapatel, uma rabada entre outras tantas. Liêdo não revela as iguarias pernambucanas com as quais o cineasta americano se lambuzou, sem se importar com aquela salmoura que insiste em escorrer pelos lábios. E as tapiocas do Alto da Sé? E ainda dizem que o cineasta viveu sua decadência em terras nordestinas...  

Le Monde Diplomatique: Os impasses de nossas elites

Frente às eleições deste ano, qual o programa que vai ser defendido pela direita, pelas elites, na campanha eleitoral que se inicia? Quais serão suas propostas para enfrentar o desemprego e o subemprego de 26 milhões de brasileiros; para combater a pobreza que aumenta com as políticas de austeridade; a perda de nossa soberania? 
A democracia é o sistema político que tem nas eleições a forma de legitimar os governantes. Hoje, depois de muitas lutas, da conquista do direito de voto para as mulheres (1932), da conquista do voto para os analfabetos (1985), da extensão do voto facultativo para maiores de 16 anos (1988), o voto é universal. Todos os cidadãos e cidadãs brasileiras têm o direito a votar e escolher seus representantes e o programa de governo que defendem.
Assim, a disputa pelo controle da máquina publica, pela destinação dos recursos públicos, por programas de governo, pelo modelo de desenvolvimento, passa a ser feita de maneira pública, principalmente através dos meios de comunicação, buscando formar maiorias em defesa deste ou daquele programa, em defesa deste ou daquele projeto de desenvolvimento.
A transição da ditadura para a democracia no Brasil, entretanto, criou mecanismos de continuidade para garantir o controle das elites, mesmo em um cenário democrático. Vem daí o presidencialismo de coalizão, as políticas de coalizão no Congresso para garantir a maioria que permita ao Executivo governar. Pelo poder do dinheiro, pelo controle das mídias, buscava-se convencer as maiorias a sufragar os representantes das classes dominantes, e assim continuar a garantir o controle das elites sobre os governos eleitos.
Esse sistema politico, entretanto, não foi capaz de assegurar a continuidade conservadora nas eleições de 2002 e nas três eleições seguintes, quando se elegem candidatos do PT, com amplo suporte popular.
Com o amparo da Constituição de 1988 e politicas de conciliação de classes, os governos do PT conseguiram reduzir o desemprego, aumentar os salários, dinamizar o mercado interno, implantar politicas sociais redistributivas, reduzir significativamente a pobreza extrema, sem incomodar as classes dominantes, as que mais se beneficiaram do período do boom das commodities. O 2º governo Lula termina com 80% de aprovação do governo e 87% de aprovação do presidente. Com esse capital politico o PT elege Dilma Rousseff em 2010.
Já em 2012, no governo Dilma, em razão de medidas que contrariam seus interesses, como aponta André Singer, as classes dominantes desencadeiam uma campanha de difamação de seu governo e investem fortemente para modificar o cenário político nas eleições de 2014.
Os seis principais grupos econômicos investem mais de R$ 5 bilhões para eleger 70% dos novos parlamentares e controlar o Congresso, investem também fortemente na candidatura de Aécio Neves, do PSDB, que obtém mais de 51 milhões de votos. Mas perdem as eleições para Dilma, que arrebanha 54,5 milhões de votos e dá inicio ao seu segundo mandato. Uma diferença estreita, mas que lhe dá a vitória e permite um horizonte de continuidade com a perspectiva de Lula a suceder novamente.
Neste novo cenário, mesmo depois que a presidente Dilma dá uma guinada em sua política e encampa a agenda neoliberal, as classes dominantes se afastam das regras democráticas, criam as pautas-bomba no Congresso para impedi-la de governar, armam o impeachment se utilizando de seu controle do Congresso Nacional. E finalmente depõem a presidente eleita em 2016 e assumem o governo.
A partir daí o novo governo, presidido por Temer, pratica uma politica que jamais seria sufragada pelas urnas porque é contrária aos interesses das maiorias. Tendo à frente a FIESP e a CNI, as classes dominantes aplicam as politicas de austeridade, congelando os gastos públicos por vinte anos, promovendo corte de direitos, o desemprego, a precarização das relações de trabalho, a redução da cobertura da previdência, cortes no orçamento da educação, da saúde, das politicas sociais como um todo, beneficiando especialmente o pagamento do serviço da divida pública, o capital financeiro e o rentismo.
A insatisfação popular é crescente, as periferias das cidades vivem em um estado de sitio informal, com perseguições e uma politica repressiva que tem licença para matar jovens negros pobres. Nunca é demais lembrar que serão eles a definir a próxima eleição, já que 86% dos brasileiros vivem em cidades e 68% das famílias brasileiras vivem com uma renda mensal de até três salários mínimos.
Alardeando a criminalidade e a violência, e atemorizando continuamente a população, a TV busca implantar um sentimento de medo que encontra espaço na falta de uma narrativa que se oponha a esta manipulação, e busca convencer a população que são dois os problemas a serem enfrentados: a corrupção e a criminalidade, ambos pela via da repressão. Não se fala no substancial, a desigualdade crescente, a pobreza, a destruição dos recursos naturais, pois esses elementos são constitutivos do capitalismo.
Agora, frente às eleições deste ano, qual o programa que vai ser defendido pela direita, pelas elites, na campanha eleitoral que se inicia? Quais serão suas propostas para enfrentar o desemprego e o subemprego de 26 milhões de brasileiros; para combater a pobreza que aumenta com as políticas de austeridade; para enfrentar a precarização das politicas públicas, especialmente a saúde e a educação; as questões da vida nas cidades, como saneamento básico, transporte púbico, moradia, acesso a serviços públicos que deveriam ser bens comuns; a degradação ambiental e o sequestro de nossos recursos naturais pelo agronegócio, pelas mineradoras e petrolíferas multinacionais, pelo grande capital; a perda de nossa soberania?
Este governo das elites, que só voltaram ao poder pela via do golpe parlamentar, não tem propostas para apresentar para as maiorias. E mesmo com toda campanha pela mídia, seus candidatos não decolam nas pesquisas. Neste momento as classes dominantes ainda buscam um candidato conservador, mas com diálogo com outros setores da sociedade.
Se não tiverem sucesso, a única alternativa para eles ou é apoiar Bolsonaro e aprofundar um cenário de mobilizações fascistas, perseguições e violência, sem qualquer projeto para o Brasil, mas com risco de perder as eleições; ou desistir das eleições e aprofundar o golpe de Estado.

*Silvio Caccia Bava é editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil

Quem é a mulher negra no Brasil? Colorismo e o mito da democracia racial

                                           

    Bianca Santana 

Quem é mulher negra no Brasil? Colorismo e o mito da democracia racial

FacebookTwitterEmailPinterestAddthisCabelo crespo, formato do nariz, da boca, podem determinar como as pessoas negras são lidas socialmente (Arte Andreia Freire)

Minha pele não é retinta. Tenho a cor da miscigenação brasileira, que tantas vezes foi utilizada para reafirmar o mito da democracia social. “Você precisa escrever sobre isso. Precisa falar sobre colorismo”, declarou Sueli Carneiro da última vez que nos encontramos. E se Sueli declara, a gente obedece.
Colorismo significa, de maneira simplificada, que as discriminações dependem também do tom da pele, da pigmentação de uma pessoa. Mesmo entre pessoas negras ou afrodescendentes, há diferenças no tratamento, vivências e oportunidades, a depender do quão escura é sua pele. Cabelo crespo, formato do nariz, da boca e outras características fenotípicas também podem determinar como as pessoas negras são lidas socialmente. Pessoas mais claras, de cabelo mais liso, traços mais finos podem passar mais facilmente por pessoas brancas e isso as tornaria mais toleradas em determinados ambientes ou situações.
É isso. Mas não é só isso. Poder ser vista como branca, ou melhor, como não negra, me permitiu oportunidades que provavelmente eu não teria se tivesse a pele mais escura, como ocupar um cargo de coordenação em um colégio europeu, de elite, onde um dia precisei argumentar fervorosamente que era uma mulher negra e que essa era uma afirmação importante. Mas não se pode perder de vista que na cidade onde vivo, São Paulo, empregos subalternos, o trabalho doméstico, os presídios têm a minha cor de pele.
Tarefa difícil essa de escrever sobre colorismo, que certamente não se esgota neste texto. “Como determinar a cor se, aqui, não se fica para sempre negro e/ou se ‘embranquece’ por dinheiro ou se ‘empretece’ por queda social?”, perguntou certa vez a antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz. Para falar sobre colorismo precisamos considerar classe, escolarização e outros marcadores sociais da diferença. E uma breve genealogia do termo pardo pode ser útil. Nos memes de redes sociais, pardo é papel, não gente. Mas o termo se refere a pessoas desde o Brasil colonial, com múltiplos usos e significados.
No século 17, era utilizado em São Paulo para designar indígenas escravizados ilegalmente. Já no Nordeste açucareiro do mesmo período, onde africanos eram a maior parte da população, tendia a ser sinônimo de mestiçagem, ou do fruto da união entre europeus, africanos e indígenas. Mais tarde, no Sudeste, o termo aparece não só como referência à mestiçagem, mas também como sinônimo de pessoa livre, independentemente da cor de pele. O termo pardo no Brasil Colônia, portanto, indicava, além da cor de pele, o status social de pessoas não brancas livres, em um universo escravista. Segundo Hebe Mattos, o termo era uma possibilidade de diferenciação social, variável conforme o caso. “Assim, todo escravo descendente de homem livre (branco) tornava-se pardo, bem como todo homem nascido livre que trouxesse a marca de sua ascendência africana – fosse mestiço ou não”, escreveu a historiadora.
Da mesma forma, os termos preto e negro também apresentavam diferenças semânticas no período escravocrata: negro era o escravo insubmisso, e preto, o cativo fiel. Mas é possível perceber variações de significados em diferentes períodos: até a primeira metade do século 19, crioulo era exclusivo de escravos e forros nascidos no Brasil, preto designava africanos.
Os censos evidenciam, no quesito cor, como essa semântica é negociada no Brasil de forma complexa, muitas vezes intencionalmente confusa. O primeiro e o segundo censos do país, em 1872 e 1890, registraram a população preta, branca e mestiça; no de 1872 acrescida à informação da condição de escravo ou livre. Nos censos de 1900, 1920 e 1970, o item cor foi retirado. Diante da constatação de que o Brasil era um país mestiço e negro, o terceiro e quarto censo simplesmente deixaram de registrar a informação sobre a população, assim como o primeiro censo do regime militar, quando se reforçava a ideia de homogeneizar o país. No censo de 1950, a população foi distribuída entre brancos, pretos, amarelos e pardos. Indígenas não possuíam uma categoria classificatória. Em 1960, indígenas deveriam ser declarados como pardos. Em 1980, havia uma explicação para pardos: “mulatos, mestiços, índios, caboclos, mamelucos, cafuzos etc.”.
Em 1976, o IBGE fez a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio em que deixou a categoria cor como uma pergunta aberta. Cento e trinta e seis cores diferentes foram registradas, que iam da acastanhada à vermelha.
Esse uso flexível e maleável na cor que se observa no Brasil desde o período da escravidão, tão explicitado na pesquisa de 1976, está relacionado à imagem negativa da mestiçagem propagada explicitamente até a década de 1930, seguida pela extensa propaganda oficial do mito da democracia racial. Desde o século 19, teóricos das raças enalteciam “tipos puros” e colocavam a miscigenação como sinônimo de degeneração racial e social. O termo eugenia, criado em 1883, propagava a visão de que as capacidades humanas estavam exclusivamente ligadas à hereditariedade. A criminalidade, por exemplo, era vista como fenômeno físico e hereditário. Raça se tornou, nesse período, um conceito para discriminar e hierarquizar povos. Na metade do século 20, geneticistas e biólogos moleculares afirmaram que as raças puras não existem cientificamente. Mas pouco antes disso, na década de 1930, ganhou relevância no Brasil uma interpretação social, e não biológica, das relações raciais brasileiras. Gilberto Freyre afirma que a miscigenação teria acomodado conflitos raciais no Brasil, corrigindo a distância social entre a casa-grande e a senzala.
Lélia Gonzalez é das vozes que desconstrói o mito da democracia racial denunciando que o sistema escravista-patriarcal brasileiro não se constitui sobre bases harmônicas, mas na violência racial e sexual que se reproduz desde a colonização na sociedade brasileira. Uma década depois, Sueli Carneiro cunha o “estupro colonial” da mulher negra pelo homem branco como as bases para a fundação do mito da cordialidade e da democracia racial brasileira.
O movimento negro vem buscando conscientizar quem sofre discriminações por sua aparência física e origem racial – seja quem se declara preto ou pardo ao IBGE – em torno de uma mesma identidade racial de negro. “Trata-se, sem dúvida, de uma definição política embasada na divisão birracial ou bipolar norte-americana, e não biológica. Essa divisão é uma tentativa que (…) remonta à fundação do Movimento Negro Unificado, que tem uma proposta política clara de construir a solidariedade e a identidade dos excluídos pelo racismo à brasileira”, explicou o antropólogo Kabengele Munanga. Da mesma forma, o movimento de mulheres negras, que nasce dentro do movimento negro, busca conscientizar mulheres, desde a década de 1980, de sua identidade de mulher negra.
Como já escreveu tantas vezes Sueli Carneiro, o projeto em curso no Brasil ainda é o de uma hegemonia branca. Ele opera pela exclusão e a violência contra pessoas não brancas, especialmente as negras e indígenas. No imaginário social, este projeto também aparece em uma leitura de passado que omite a violência e a resistência à escravidão; encoberta as estratégias de branqueamento e do silenciamento de vozes e memórias da população negra. O mito da democracia racial branqueava negras e negros miscigenados. É importante, ao falarmos sobre colorismo, não cometermos o mesmo erro. Afinal, a quem isso poderia interessar? Como escreveu Lélia “(…) a gente nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha etc. Mas tornar-se mulher negra é uma conquista”.