pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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segunda-feira, 8 de outubro de 2018

"A personalidade autoritária" hoje: Por que o fascismo volta a fascinar?

                                           
Douglas Garcia Alves Júnior
                                                                                

‘A personalidade autoritária’ hoje: por que o fascismo volta a fascinar?
Theodor Adorno, Frankfurt, 1963

O fascismo está em alta no Brasil e no mundo. Em Chemnitz, na Alemanha, neonazistas mostram abertamente nas ruas o seu ódio contra os imigrantes. Em Charlottesville, nos Estados Unidos, supremacistas brancos desfilam sua ira contra os negros. No Brasil, mostram-se sem maiores pudores louvores à tortura, à execução sumária de “bandidos” e o elogio do “cidadão de bem”, que estaria prestes a eleger aquele que “daria um jeito” à “corja” unicamente responsável por todos os males do país: em primeiro lugar, os LGBTs, mas também os “comunistas”, as mulheres que não se conformam com o papel a elas atribuído pela dominação patriarcal, os negros (sobretudo os quilombolas, por uma estranha lógica fetichista que os transforma em alvo especial de ódio), os índios (vistos como “vagabundos” e alvos de contestação quanto à demarcação de suas terras)… a lista está pronta para ser ampliada indefinidamente, sempre segundo a lógica do “nós”, “de bem”, “trabalhadores” contra “eles”, “vagabundos” e “imorais”.
Corte temporal: anos 1930 do século passado, ascensão do nazismo na Alemanha. Um grupo de intelectuais se inquieta com o apoio popular às plataformas políticas – diríamos hoje, a “agenda” – de Adolf Hitler. Essa agenda parece fazer sentido para muita gente, em diversos setores da sociedade: trabalhadores na indústria e comércio, estudantes, médicos, professores universitários. O que diz essa agenda? Para a Alemanha voltar a ser grande, é preciso dar cabo dos “parasitas”, dos que não trabalham e só “sugam os recursos” do país: sobretudo os judeus, mas também os comunistas, os homossexuais, os ciganos e quem mais se pusesse no caminho da suposta unidade racial da nação. Era preciso botar essa gente no seu “devido lugar”, e destacar o “bom alemão”, trabalhador, honesto, limpo e saudável. É essa figura imaginária que vai ser criada e estimulada a gritar o seu “nós somos diferentes deles”, “este país é nosso”. Toda essa situação social e cultural parecia instaurar quase da noite para o dia um pesadelo no meio da realidade, na visão desses intelectuais alemães. Quem são eles?
Antes, um parêntese terminológico. O que se quer dizer quando se usa o termo “fascismo”? Aqui é preciso fazer distinções. O uso mais corrente do termo remete àqueles que expressam em palavras e ações uma atitude de recusa de direitos, de desvalorização política e social e de negação de valor individual a pessoas vindas de determinados grupos tidos como minoritários, seja pelo seu número reduzido em relação ao todo da população (os moradores estrangeiros em um país, por exemplo), seja pela sua posição subalterna em relação a um grupo humano tido como padrão normativo (as mulheres, em relação aos homens, por exemplo). Ao lado dessa acepção, seria oportuno indicar um uso do termo ligado à ciência política, que registra o seu lastro histórico, e tem sua referência maior no fascismo italiano e no nazismo alemão, da primeira metade do século passado. Segundo essa acepção, o fascismo é uma forma política caracterizada por uma série de elementos que se apoiam mutuamente: o culto a um líder carismático, dotado de propriedades quase sobre-humanas; nacionalismo expansionista; etnocentrismo (o “nós” da comunidade nacional, definida racialmente, de modo excludente); valorização da violência como elemento criativo e regenerador do corpo político; eliminação de partidos políticos dissidentes; terror policial organizado estatalmente contra todos aqueles vistos como inimigos do regime; projeção imaginária de uma ideia de identidade nacional sem fissuras; mobilização permanente da sociedade civil em torno da projetada unidade mística da nação.
Voltemos ao contexto histórico do fascismo alemão. Quando o fascismo se instala na Alemanha, sob a designação de nacional-socialismo (nome do partido nazista), a pesquisa científica autônoma, a imprensa livre e a liberdade de opinião e de publicação passam a não existir mais. Livros são queimados num ritual sinistro que, volta e meia, tem os seus adeptos no Brasil. O nazismo se choca frontalmente com o trabalho de um grupo de intelectuais alemães, a maioria deles de origem judaica, que escrevem e pesquisam junto ao Instituto de Pesquisa Social, da Universidade de Frankfurt, inaugurado em 1923. Dedicado inicialmente à pesquisa do movimento operário alemão, o Instituto tomará uma orientação muito singular de pesquisa, que será chamada mais tarde de Teoria Crítica da sociedade. O nazismo, como fenômeno social e político alemão, não poderia ser deixado de fora do trabalho intelectual do Instituto. As múltiplas facetas do fenômeno nazista, simultaneamente econômicas, políticas, culturais e psíquicas, exigem um enorme esforço de elaboração reflexiva daqueles que querem entender a singular imbricação de irracionalidade e sistematicidade racional que o nazismo representa. As características básicas dessa empreitada intelectual já estavam sendo constituídas no início dos anos 1930 pelo Instituto. Aqui ganha destaque a figura do filósofo Max Horkheimer (1895-1973) e seu projeto de um materialismo interdisciplinar como ideia-guia.
Será preciso citar um trecho do texto seminal (de 1931, dois anos antes de Hitler ascender ao poder) de Horkeimer, A presente situação da filosofia social e as tarefas de um Instituto de Pesquisa Social: “pouco a pouco as discussões sobre a sociedade se cristalizaram sempre mais claramente em torno de uma questão: o problema da conexão que existe entre a vida econômica da sociedade, o desenvolvimento psíquico dos indivíduos e as transformações que tem lugar nas esferas culturais em sentido estrito – às quais pertencem não somente os assim chamados conteúdos espirituais da ciência, da arte e da religião, mas também o direito, os costumes, a moda, a opinião pública, o esporte, as formas de divertimento, o estilo de vida etc.” Aqui cabe ressaltar três aspectos do que desde então foi chamado de materialismo interdisciplinar da Teoria Crítica: 1) economia, cultura e subjetividade são postas como realidades dialeticamente interdependentes, sem postular a primazia de qualquer uma sobre a outra; 2) realidades eminentemente culturais como a moda e o divertimento são assumidas como possuindo um conteúdo substancial, no sentido de poder de gerar efeitos consideráveis na realidade, uma vez que a elas é atribuído um estatuto sociológico comparável ao da religião e da ciência; 3) a vida psíquica dos indivíduos é pensada como realidade eminentemente dialética, em estreita conexão de sentido com as formas econômicas e culturais. Isso significa que ela é pensada não como a fonte primeira das demais, mas também não como uma esfera a reboque das outras – ela tem uma densidade própria que convém investigar.
É no espírito do materialismo interdisciplinar que a A personalidade autoritária (1950) é pensada como um amplo conjunto de trabalhos de investigação psicossocial sobre preconceito e autoritarismo. Trata-se de uma pesquisa inteiramente feita nos Estados Unidos, para onde o Instituto e a maioria de seus membros haviam emigrado, após o início do regime nazista. Ela faz parte dos “Estudos sobre o preconceito”, uma série de pesquisas levadas a cabo pelo Instituto nos anos 1940, sob os auspícios do American Jewish Comitee. Os co-autores da pesquisa envolvida em A personalidade autoritária eram psicólogos e cientistas sociais da Universidade da Califórnia em Berkeley – e, portanto, pesquisadores “externos” ao Instituto –, cujos nomes devem ser justificadamente indicados: Else Frenkel-Brunswick, Daniel J. Levinson e R. Nevitt Sanford. Trata-se de uma investigação cujo objetivo é mapear tendências subjetivas básicas, configurações psicodinâmicas relacionadas a atitudes de expressão de preconceito antissemita, etnocentrismo, conservadorismo político e econômico e, finalmente, potencial fascista. O trabalho empírico nessa pesquisa foi maior do que em qualquer outra do Instituto, mobilizando um processo que durou vários anos de confecção, teste e aperfeiçoamento de questionários, escalas, entrevistas clínicas individuais e interpretação interdisciplinar dos resultados.
É preciso ressaltar que a confecção das escalas de aferição de preconceito em A personalidade autoritária respondeu aos protocolos mais rigorosos da psicologia acadêmica americana da época, de modo que não se pode minimizar seu processo de gênese. Essa reconstituição não poderia ser feita aqui, de modo que gostaria de remeter o leitor aos trabalhos de Iray Carone, que são de uma clareza notável a esse respeito. Interessavam aos autores da pesquisa o estudo de correlações empiricamente observáveis (e clinicamente investigáveis) entre a expressão de atitudes em diferentes dimensões da relação com o outro e a autoridade social. Em termos muito sucintos, o estudo mostrou correlações significativas nos resultados obtidos nas escalas de medida de preconceito contra os judeus (AS, de antissemitismo) e etnocentrismo (E), bem como entre ambas e a escala F, de potencial fascista. A correlação entre as duas primeiras e a escala de conservadorismo político e econômico (PEC) mostrou-se significativa apenas para alguns sujeitos da amostra, mas não para todos, razão pela qual essa diferença precisou ser investigada por entrevistas clínicas, e levou à proposição de uma distinção entre o “pseudoconservador” (com alta pontuação na escala PEC e nas escalas de preconceito) e o “conservador genuíno” (com alta pontuação na escala PEC, mas com baixa pontuação nas escalas de preconceito). E quanto a escala F, de potencial fascista?
A escala F é o principal achado metodológico de A personalidade autoritária. Trata-se de testar a ideia segundo a qual predisposições políticas vinculadas a ideologias autoritárias, antidemocráticas (fascistas, no limite) apresentam um correlato no nível das tendências psíquicas mais profundas, pouco conscientes ou inconscientes. A escala F propunha aos sujeitos um questionário formado por uma série de itens que seriam indicadores dessas tendências psíquicas, sem confrontá-los diretamente a agendas políticas, econômicas ou sociais (na acepção da atitude de preconceito contra grupos específicos). Com a devida ressalva de que esses itens não podem ser entendidos fora da história (e não devem ser, portanto, transportados imediatamente para o Brasil atual, uma vez que resultaram de pesquisa empírica com sujeitos de uma condição social e cultural específica) seria útil apresentar três exemplos de itens que constavam da escala F: 1) “as pessoas só aprendem algo realmente importante por meio do sofrimento”, 2) “as pessoas podem ser divididas em duas classes: os fracos e os fortes”; 3) “hoje em dia, quando tantos tipos diferentes de pessoas circulam e entram em contato umas com as outras, cada um tem de se proteger cuidadosamente para não pegar uma doença”.
Antes de tudo, cabe uma observação: não é a resposta isolada a um item que configura um tipo de disposição psíquica autoritária. Uma análise complexa da inter-relação entre os itens é pressuposto da interpretação do resultado de cada sujeito na escala F. Se, de acordo com o primeiro item anteriormente citado, “as pessoas só aprendem algo realmente importante por meio do sofrimento”, a interpretação levada a cabo em A personalidade autoritária vai situar a resposta afirmativa a esse item como indicador de “submissão autoritária”, isto é, de “atitude submissa e acrítica em relação às autoridades morais idealizadas do grupo”. A concordância com a formulação do segundo item, de que “as pessoas podem ser divididas em duas classes: os fracos e os fortes” indicaria, na formulação dos pesquisadores, não só uma tendência no sentido da “superstição e estereotipia”, a saber, “crença em determinantes místicos do destino individual; disposição a pensar em categorias rígidas”, mas também uma inclinação para “poder e ‘dureza’”, isto é, “preocupação com as dimensões dominação-submissão, forte-fraco, líder-seguidor; identificação com figuras de poder; ênfase exagerada em atributos convencionais do ego; afirmação exagerada de força e dureza”. Finalmente, a concordância com a terceira asserção, “hoje em dia, quando tantos tipos diferentes de pessoas circulam e entram em contato umas com as outras, cada um tem de se proteger cuidadosamente para não pegar uma doença”, seria indicativa de “projetividade”, entendida como “disposição a acreditar que acontecem coisas selvagens e perigosas no mundo; projeção no exterior de impulsos emocionais inconscientes”.
Qual seria o significado psíquico da concordância com os itens da escala F? A pontuação alta significaria que o sujeito “é” uma “personalidade autoritária”? Em outros termos: existe mesmo uma personalidade autoritária? E, não menos importante: estariam os autores da pesquisa assumindo que a causa última da adesão ao autoritarismo é psicológica? A resposta a essas questões é mais complexa do que pode parecer à primeira vista. Em primeiro lugar: uma pontuação alta na escala F, segundo os autores do estudo, apresenta correlações significativas de pontuação alta nas escalas de antissemitismo e de etnocentrismo, sendo, assim, um indicador confiável do que os autores chamaram não de “personalidade autoritária” (como no título do estudo), mas de “síndrome fascista”. Trata-se de uma dinâmica psíquica que os autores buscaram configurar em termos de “tipos psicológicos”. Assim, o sujeito com pontuação alta na escala F teria uma grande chance de apresentar uma dinâmica psíquica marcada pela rigidez, pela pouca plasticidade da consciência e pela rejeição da assimilação de vivências de alteridade – retrato sucinto do que os autores chamaram de “tipo autoritário”.
Dito de outro modo, esse sujeito não “é” uma personalidade autoritária, ele apresenta (no momento do teste) uma dinâmica psíquica marcada por traços libidinais e ideacionais que se associam a atitudes de preconceito e autoritarismo. Por fim, isso não significa dotar a esfera psíquica do poder causal último na configuração de atitudes políticas anti-democráticas e preconceituosas. Uma discussão mais ampla dessa questão levaria às críticas de Adorno à psicologia do Ego (e mesmo ao conceito de “personalidade”!), desde Minima moralia até trabalhos dos anos cinquenta e sessenta – algo que não pode ser feito aqui. Contudo, é necessário assinalar que Adorno e os pesquisadores de Berkeley, sem “psicologizar” fenômenos ideológicos e políticos complexos, abriram caminhos importantes para a consideração da mediação subjetiva de atitudes extremas como o preconceito e o entusiasmo por regimes de força.
Como Susan Sontag notou certa vez, é preciso reconhecer que há para muitas pessoas um fascínio peculiar e sombrio no fascismo. O legado de A personalidade autoritária reside em apontar para os riscos de situações em que a propensão ao autoritarismo e ao preconceito é estimulada pela dinâmica social dominante e pelas formas culturais com maior poder de disseminação. Em outros termos, em dadas situações, certas pessoas não terão de fazer um grande esforço subjetivo para aderir a pautas discriminatórias e antidemocráticas, uma vez que elas já estarão instaladas nos seus modos subjetivos de reação ao mundo. Seria o caso de se perguntar, hoje, se as tendências subjetivas estruturantes que a pesquisa de Berkeley encontrou estariam sendo estimuladas hoje pela sociedade e pela cultura: convencionalismo, agressividade, oposição a tudo que é intelectual e subjetivo, submissão autoritária, ênfase em estruturas rígidas de poder e dureza, tendência ao pensamento estereotipado, tendência a uma desconfiança geral de tudo que é “outro”. Este seria um trabalho a ser feito, não exatamente repetindo os itens e as escalas da pesquisa, mas recuperando as suas intuições originais e a sua abordagem interdisciplinar.
Nossa opção hoje em dia é entre esclarecimento ou barbárie. Ou lutamos para nos tornarmos conscientes de tudo que apela à agressão e ao preconceito em nós mesmos e nos outros, ou abraçamos o fascinante fascismo daqueles que tiram sua sobrevivência psíquica da vã satisfação de odiar.

Douglas Garcia Alves Júnior é doutor em filosofia pela UFMG, professor associado do departamento de filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), autor Dialética da vertigem: Adorno e a filosofia moral (Escuta), entre outros.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Michel Zaidan Filho: Um olhar sobre as eleições


 
Obtivemos, no dia de ontem, um resultado surpreendente nas eleições presidenciais do Brasil. Os maiores colégios eleitorais do país, onde se concentram as elites mais estudadas, ricas e mais poderosas em termos de influência e poder de persuasão (Sul, Sudeste, Centro-Oeste) votaram em peso num candidato que representa a negação do que chamamos “civilização”: direitos humanos, reconhecimento das identidades, políticas redistributivas, respeito às leis e a Constituição, respeito à vida humana, ao meio-ambiente, a diversidade cultural e religiosa, às liberdades democráticas etc. E o Nordeste, região sempre identificada com o atraso, a pobreza, a dependência econômica e social, o fanatismo e a ignorância, foi quem optou pela democracia e os direitos. Região sempre preterida pelas políticas públicas de desenvolvimento regional, fonte da perpetuação das oligarquias familiares, revelou-se um bastião da resistência à barbárie a galope, comandada por ex-capitão do Exército que faz da tortura e do extermínio o bordão de sua propaganda eleitoral.

Podemos até perder a eleição, mas chegar ao 2º Turno foi uma vitória inestimável diante dos enormes obstáculos enfrentados pelo candidato da civilização. Muitas dificuldades se contrapuseram a esta candidatura laica, republicana e socialista. Primeiro o seu deslanchar tardio, quando os demais candidatos já estavam em campanha e com farta exposição pública de seus portfólios político-partidários. Segundo, a corajosa e desassombrada aproximação com a imagem e o legado do ex-presidente LULA. Terceiro, a ofensiva da mídia eletrônica e impressa, francamente anti-petista. Quarto, a política de terra arrasada praticada pela Operação Lava-Jato contra o Partido dos Trabalhadores e seus candidatos. Quinto, o posicionamento das Igrejas neopentecostais e pentecostais, representadas em seu apoio a Bolsonaro pelos seus bispos e pastores. Seis, a falta de responsabilidade política dos partidos de centro, em destruírem o capital político do PT, ajudando com isso ao candidato da extrema-direita. Isso sem mencionar os poderosos grupos que estão alavancando essa perigosa candidatura: as bancadas da bala, do boi e da Bíblia.

Não fosse o trabalho de sapa contra as instituições, com a complacência ou cumplicidade dos tribunais superiores, a figura desse candidato lúgubre, desengonçado e falastrão não passaria de uma personagem folclórica, de mau gosto, mas risível, ridícula. Infelizmente, o diabo não se apresenta como tal, quando aparece. Teria que vir com um uniforme militar, segurando uma metralhadora e apontando para seus adversários políticos. Na imagem desse anticristo, os democratas, defensores dos direitos humanos, ambientalistas, feministas ou militantes das causas LGTBI, são bandidos, criminosos, terroristas, inimigos da família, da Igreja e da propriedade privada. A criminalização recorrente do “outro”, da “alteridade” é um recurso conhecido dos políticos fascistas, da extrema-direita. Não se admite o respeito à diferença, de quem pensa diferente ou é diferente. Estaríamos diante de uma grave ameaça à secularidade e laicidade do Estado brasileiro e rumando para uma modalidade de fundamentalismo apoiado pela espada e a religião. O pior casamento possível. Personagem tosco, primário, mas perigosíssimo. Porque instrumento da ignorância de uns, do ressentimento de outros e da ganância de uma minoria, que sabe exatamente o que está fazendo.

Bem-vindo o segundo turno. Vamos esclarecer a sociedade sobre aquilo que está em jogo neste momento. Obrigar a besta a mostrar sua cara, dizer o que pretende sem papas na língua. Quem quiser acompanha-la rumo à barbárie, que o faça, mas conscientemente do que está ajudando a fazer. Nada de Brasil, Deus, Jesus Cristo. Barbárie, pura e simplesmente a serviço de interesses que não ousam dizer o nome. Viva o Nordeste e os nordestinos!

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE






segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Vocação à brasileira


 
     Entre os anos de 1898 e 1914, foi o período do ápice da oligarquia no Brasil. É bem verdade, que desde o período da era colonial brasileira, já havia lampejos significativos por parte da elite agrária. Entretanto, tornou-se incontrolável durante o período da lavoura cafeeira.

     Naquele período, as oligarquias exerciam o poder de maneira direta. Mas a crise do café ocorreu justamente no período em que a oligarquia cafeeira estava controlando de maneira plena o país. Visando preservar o seu poder, a oligarquia do café não mediu esforços para utilizar os proventos do Estado.

     Amparados na Carta Política de 1891, o “regime” oligárquico exercia o controle federal, estadual e municipal.

     No que tange a esfera federal, era exercido pelo presidente da República, objetivando controlar a presidência e defender os interesses privados da política do café-com-leite. Com relação ao estadual, era chamada de “política dos estados”. Basicamente consistia um acordo envolvendo o presidente da República e os governadores. Tratando da esfera municipal, a prática da República Velha sustentava-se na fraude, até porque o exercício do sufrágio não era secreto. Assim o coronelismo se sustentava na prática do clientelismo, fazendo com que a população carente, vivesse da influência do coronel sem patente.

     Embora o período do governo de Hermes da Fonseca seja considerado o início do declínio das oligarquias, ela sobrevive atualmente com outra roupagem. Basta observar a quantidade de famílias que se perpetuam no poder pelo Brasil a fora. Existem famílias que nunca precisaram usar desodorante, pois não suam. Vivem do poder público, e se apresentam como se fossem o novo. É bem verdade que na idade sim, mas a forma de fazer política se assemelha a dos coronéis. Representam os interesses de suas famílias, mas discursam como se fossem representantes do povo. A vocação deles é viver do poder público, entendendo mais da casa grande do que da senzala.

 

Hely Ferreira é cientista político.

domingo, 30 de setembro de 2018

Os discípulos de Judas e de Pedro


 
        Há dois relatos bíblicos conhecidos que narram os últimos momentos da vida de Jesus, que envolve diretamente dois dos seus discípulos. O primeiro deles é Judas Iscariotes. Sua atitude em trair o mestre, lhe rendeu a alcunha de filho da perdição. Por outro lado, existe a figura de Pedro, cujo temperamento era de alguém estabanado. Diante de qualquer fato, estava sempre a frente dos demais, onde não rara às vezes era repreendido pelo Mestre por não medir as palavras. Chegou a afirmar que ainda que os outros abandonassem Jesus, ele jamais abandonaria. Mas bastou o Mestre ser preso pelo Império Romano, para que aquele que se dizia tão leal, o abandonasse. Infelizmente, o dia a dia da vida é assim e na política não é diferente. Existem aqueles que se comportam como Judas Iscariotes se aproximam do mestre, beijam o mestre, mas na primeira oportunidade, vendem o que não tem, para permanecer no poder. Da mesma forma, existem aqueles que se assemelham a Pedro, abandonam o líder, justamente quando o mesmo cai em desgraça na vida pública. Procura de imediato outra árvore em busca de sombra. Percebendo que o velho mestre ainda pode lhe ser útil, não mede esforços para voltar aos seus braços, até quando lhe for necessário.  Certamente, o Cardeal Richelieu tem razão quando disse que traição em política é uma questão de tempo.

     Os asseclas de Judas, assim como os de Pedro, não possuem compromisso com o povo, mas exclusivamente com o poder. Encaram o eleitor apenas como instrumento para realização do seu objetivo. Assim, beijam o eleitorado e ao mesmo tempo o abandonam, retornando apenas em ano eleitoral.    

Hely Ferreira é cientista político.

terça-feira, 25 de setembro de 2018

Charge! Alexandra Moraes via Folha de São Paulo

Michel Zaidan Filho: A falsa contradição entre dois extremismos


        



A opinião pública brasileira está sendo empurrada para uma falsa e artificial contradição ente dois fundamentalismos: um de direita e um de esquerda. Esta leitura é conveniente para aqueles a quem beneficia tal quadro reducionista e equivocado da política do país. De um lado, nos acostumamos a interpretar esse discurso raivoso e do ódio dos eleitores do deputado Jair Bolsonaro como uma modalidade de fundamentalismo de direita, ultraconservador, apoiado por algumas igrejas. De outro, um discurso antipetista e antilulista que considera a candidatura de Fernando Haddad (PT) uma mera ventriloquia de LULA e do Partido dos Trabalhadores. Discurso aparentemente sedutor que mais esconde do que revela uma outra modalidade de fundamentalismo, que não é tão evidente para a sociedade. O fundamentalismo neoliberal, que está por trás do debate dessas eleições, mas não aparece nem nos debates nem na propaganda eleitoral. Ora, a destruição de direitos, a venda do patrimônio público, o ataque frontal às liberdades civis e a liberdade de expressão e do livre pensamento interessa, sobretudo, ao mercado, às empresas, a banca e a burguesia cosmopolita do país. Neste sentido, o que ameaça mesmo a democracia não é tanto a pantomima de um candidato descontrolado que profere sandices e idéias contrasensuais. O maior perigo para a democracia e as liberdades públicas é o que vem atrás, instrumentalizando o discurso da raiva e da frustração política.

Aprendemos que os grandes interesses econômicos não têm pátria nem compromisso com os ideais democráticos, tanto podendo apoiar um general (ou um capital de Exército), como um líder popular, desde que isso não coloque em risco a sua agenda de negócios. O grande capital nunca fêz profissão de fé democrática ou coisa que o valha. Depende da oportunidade de maximização de seus interesses. Na presente conjuntura de crise de legitimidade do regime democrático, onde candidatos fazem abertamente propaganda pelo golpe e o descumprimento da Constituição, imagina-se que o portador desses interesses econômicos pode ser, sim, um candidato que represente hoje a negação de todas as conquistas sociais e democráticas de 1988. O momento é propício ao desmonte da institucionalidade democrática e seus avanços políticos. Numa a democracia se apresentou tão frágil e deslegitimada como agora.

Investimos, com razão, contra o fundamentalismo religioso e de direita que parece crescer em nosso país. De fato, ele representa um enorme obstáculos à realização das promessas democráticas da Constituição de 1988.Mas não podemos perder de vista que tanto ele, como o fundamentalismo laico da direita xenófoba, misoginica e homofóbica pode estar a serviço do fundamentalismo do mercado. Nunca a nossa democracia esteve tão ameaçada como hoje. Poderia dizer, por todos os lados. A frase célebre de Sérgio Buarque de Holanda que diz ter sido sempre a democracia um profundo mal-entendido no Brasil poderia ser completada pelo estranho e assustador ressentimento que se avoluma contra ela, entre nós.

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia.

sábado, 22 de setembro de 2018

Um tango à beira do abismo

                                           
Wilson Gomes

Um tango à beira do abismo
(Divulgação/Raúl Lázaro)

Os brasileiros são de paz e preferem cenários construtivos, mesmo na política. Os brasileiros não são dados a extremismos e radicalismos. Os brasileiros odeiam polarização e gostam de acordos e negociações que evitem impasses improdutivos e sobretudo um nível destrutivo de conflito. E estamos todos cansados do nível a que chegou a passionalidade política, o radicalismo e o ódio aos adversários na esfera pública brasileira. Estamos cansados de guerra, quase exaustos da histeria política em que todos gritam e ninguém mais escuta ou quer compreender.
Isto é o que frequentemente dizemos de nós mesmo e o que gostamos de acreditar. Na prática o que vemos é outra coisa. Vejam as intenções de voto depois de três semanas de propaganda na televisão e a apenas duas semanas do primeiro turno das eleições presidenciais. Há 13 candidatos, mas os preferidos para a disputa na arena final são o campeão do antipetismo e o campeão do lulismo. Os números indicam que há grande probabilidade de que serão eles a se bater em um duelo no segundo turno.
Para quem está nos polos, parece um cenário animador a chance de derrotar finalmente o inimigo, de enfiar-lhe goela abaixo a própria arrogância e os desaforos ditos nos últimos tempos, e de mostrar a todos que afinal nós somos os melhores. Os torcedores políticos tratam uma eleição presidencial como um jogo, que termina com o apito final, tendo o vencedor tem o direito de festejar e proclamar-se melhor que os seus adversários. Quem vence tem razão e pronto, pelo menos até o próximo campeonato.
Mas para quem não acha que uma eleição é um vídeo game de combate, que a eleição se reduza, no final das contas, a um duelo entre o bolsonarismo e o lulismo, pode ser um cenário de pesadelo. O bolsonarismo não desaparecerá uma vez que Haddad ganhe a eleição. Hoje ele é a escolha de pelo menos 30% dos eleitores registrados no Brasil. Como escreveu recentemente o professor Juremir Machado (PUC-RS), Bolsonaro é menos um candidato e mais “um imaginário, uma mentalidade”. Jair Bolsonaro é uma plataforma onde essa mentalidade está estacionada neste momento. E é a mais nova força política nacional, gostemos disso ou não, nas ruas, nos ambientes digitais ou nos parlamentos. Sim, ganhando ou não a eleição presidencial, o bolsonarismo dá mostras de ter força eleitoral suficiente para eleger a maior Bancada da Bala e da Bíblia de que já se teve notícias. Fujam para as montanhas.
Além disso, o bolsonarismo representa a extrema-direita brasileira, mas a direita que armou a conspiração para tomar o mandato de Dilma Rousseff depois de ter perdido a última eleição pode estar fracassando eleitoralmente na disputa presidencial, mas não está morto nem desaparecerá. Claro que as assim chamadas “forças do golpe” prepararam esta eleição para si e estão chocadas por terem perdido o controle eleitoral dos revoltados e indignados que as apoiaram para que o impeachment se tornasse possível. E que se radicalizaram no bolsonarismo. Alckmin está atônito, perdido mesmo, e tudo o que consegue fazer é anunciar de forma insistente, arcaica e hiperbólica, como a Kombi que vende pamonhas ou ovos nos bairros residenciais das grandes cidades, que ele tem antipetismo para vender, que o seu antipetismo é o melhor, o maior e o mais quentinho. Mas ninguém compra o que ele tem para vender. Meirelles, por sua vez, trocou R$ 45 milhões por menos de 3% de intenções de voto e ainda não decodificou por que ninguém deseja chamá-lo. Mas certamente já entendeu que fez um mal negócio. Mesmo que não nenhum representante dos conspiradores de 2015-2016 vá ao segundo turno, entretanto, isso não significa que não tenham força e articulação política para impor tremendas dificuldades a quem sair vencedor das urnas.  Aliás, força eleitoral nas disputas presidenciais não tem sido exatamente o forte deles, mas nada disso lhes impediu de fazer os arranjos políticos necessários para tomar o mandato popular da última presidente eleita.
O lulismo tampouco vai ser morto se Bolsonaro for eleito. O lulismo veio para ficar e não irá desaparecer por causa da Lava Jato, de uma derrota presidencial ou até mesmo de uma eventual morte de Lula. Ao contrário, a Moro, ao TRF4 e à percepção geral de que no Brasil há uma Justiça “ad hoc” para Lula e outra, normal, para os outros políticos, deve-se o renascimento do petismo na forma do lulismo. Quem, em sã consciência, depois de ver os resultados do PT nas eleições de 2016, imaginaria que o partido poderia se tornar tão competitivo este ano, a ponto de Lula chegar a reunir 40% das intenções de voto? O lulismo, creio, permanecerá na cena política, mutatis mutandis, como uma espécie de peronismo à brasileira. E se não sabíamos o seu tamanho eleitoral, logo o saberemos quando os votos deste segmento estacionarem em Haddad, o Lula putativo de 2018. Pelo visto, outro terço dos eleitores brasileiros, pelo menos, resolveu fazer do lulismo a sua aposta política.
Não há como não imaginar que, após as eleições, os três segmentos continuarão as escaramuças, a espiral de radicalização e o ciclo interminável de massacres, retaliações e de demandas de reparação. Em um governo Bolsonaro não me surpreenderia o ressurgimento, por exemplo, de Comandos de Caça aos Comunistas, dada o estado de fúria e alienação mental dos bolsonaristas mais radicais. E temo que mesmo Haddad, reconhecidamente mais moderado e muito mais inteligente que o seu competidor, será empurrado pela fúria retaliadora lulista para alguma forma de ajuste contas. E pelo que se depreende do comportamento dos lulistas online, há muita fúria e há tanta sede de desagravo e desforra.
E assim, apagando fogo com gasolina e apostando eleitoralmente nos dois polos que estocaram raivas e ressentimentos suficientes para algumas gerações, o cordial e pacífico brasileiro dança um tango, às cegas, à beira do precipício.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Charge! Duke via O Tempo

Bicentenário de Marx

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sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Penalidades entre os índios brasileiros


 
 

     Entre os índios brasileiros existia uma lista de crimes cuja punição era algo bastante severo, estando no mesmo patamar o homicídio, furto, adultério por parte da mulher, o rapto, lesões corporais e a deserção.

     No que diz respeito a virgindade feminina, geralmente não era respeitada. É bem verdade, que haviam tribos em que se defendia a preservação, em outras não, onde nem mesmo o direito consuetudinário se preocupava, fazendo com que nesses grupos, raramente a mulher se casava virgem. Sendo outra modalidade de crime, o rapto, quando acontecia entre as tribos, era visto como algo de extrema gravidade, produzindo guerras sangrentas entre, pois entendiam que o fato era uma ofensa não contra a família da vítima, mas a tribo. Quando o rapto era praticado por algum membro da própria tribo, o agente era punido com a pena capital.

     Outro crime considerado gravíssimo, era o adultério. Quando praticado pela mulher, podia ser morta pelo próprio marido. Porém, na tribo dos tupinambás, o adultério fazia com que o esposo espancasse sua esposa. Havia também tribos em que o adultério não provocava “grande punição”.

     “O direito penal indígena”, protegia de maneira tenaz o índio contra o homicídio e as lesões corporais. Quem praticasse homicídio, recebia o mesmo tipo de punição, quando o autor e vítima fossem da mesma tribo. Entretanto, se pertencessem a tribo diversas, geralmente era o estopim para início de guerra. As lesões, eram praticadas por familiares do ofendido, proporcionalmente ao dano causado, atingindo a mesma parte do corpo do agente.

     Entre os índios, a prática do aborto era algo realizado de maneira tranquila. O infanticídio não fazia parte do “direito penal indígena”. Sendo a criança fruto de adultério, ao nascer era imediatamente enterrada, já que era considerada alguém que foi gerada de maneira mestiça. Possuidora de duas sementes. Da mesma forma quando se tratava de gêmeos, era considerado infidelidade da esposa, sendo impossível gerar duas crianças com o mesmo marido.

Hely Ferreira é cientista político.

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Exclusivo: Professor Sivaldo Souza fala sobre o fluxo migratório venezuelano em Roraima

 

Prof. Sivaldo Souza
Sivaldo Souza Silva é Doutorando em Engenharia e Saúde Ocupacional pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto/Portugal, Mestre em Tecnologia Ambiental pela Associação Instituto Tecnológico do Estado de Pernambuco (ITEP), Especialista em Comércio Exterior pela Universidade Federal Rural de Pernambuco e Graduado em Licenciatura Plena em Matemática pela Universidade Federal de Roraima. Vice-líder do grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Saúde, Engenharia e Matemática (GPISEM) em cadastramento no CNPQ; tem experiência nas áreas de Matemática, Estatística, Ambiental, Saúde Ocupacional e Elaboração de Projetos de viabilidade econômico-financeiro.

Sivaldo Souza é candidato a deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores (PT-RR) e fala, com exclusividade, ao ContextoLivre sobre a situação do fluxo migratório venezuelano no estado de Roraima e sobre as implicações que esse fenômeno político-social e econômico representa para a sociedade roraimense.

ContextoLivre – Estima-se que Roraima abriga cerca de 70 mil venezuelanos, o que corresponde a 20% da população do estado. O estado tem estrutura para comportar tantos imigrantes?

Prof. Sivaldo Souza – Infelizmente, o estado de Roraima não está estruturado para receber, num curto espaço de tempo, tantos imigrantes venezuelanos – diga-se, de passagem, que também recebemos imigrantes da Guiana ainda que em menor escala. Na verdade, pelo porte, pela infraestrutura na área de saúde, na área de educação, esse percentual corresponde a, mais ou menos, 15% da população. Esse número significa um acréscimo muito grande num lapso muito pequeno de tempo. A solução, para desafogar a estrutura de suporte à saúde, à educação, à moradia, e de infraestrutura como um todo, deve ser, realmente, uma política de transferência e redistribuição desse universo populacional de imigrantes venezuelanos para outros entes da federação, porque o estado não tem estrutura para comportar esse fluxo migratório vindo do país vizinho.

Roraima tem um plano de desenvolvimento para lidar com esse fluxo?

– Roraima não tem um plano de desenvolvimento para um evento desse porte. Na verdade, poderia até dizer que, se existisse um plano, esse fluxo migratório seria até benéfico porque incorporar na economia mão de obra com muita qualificação profissional – há venezuelanos muito qualificados – que não custou nada para o estado. Roraima é um estado cujo tamanho em termos de área territorial é enorme. Então, do ponto de vista geográfico, o estado comporta um acréscimo na população. Mas, para isso, é necessário ter um plano de desenvolvimento e, nesse plano de desenvolvimento, deveríamos olhar para a Venezuela como um momento de oportunidade e não como um problema, já que o PIB da Venezuela é muito maior do que o do estado de Roraima. Então, se se incorpora mão de obra qualificada e se tem um plano de desenvolvimento que leve em consideração os arranjos produtivos locais, teríamos um momento de oportunidade extraordinário. É necessário, dessa forma, repensar essa política de análise de imigração. Entretanto, para isso, o estado teria de possuir um plano de desenvolvimento que contemplasse não apenas a capacidade de exportar e importar para a Venezuela, mas também levar em conta que há outro país que faz fronteira com o Roraima, que é a Guiana. Tanto a Venezuela quanto a Guiana poderiam ser duas bases de exportação e, para isso, é fundamental resolver outra questão do estado que é a segurança energética. Esse problema energético possui várias soluções, mas o Brasil optou pela confrontação e não pela cooperação. A questão energética de Roraima, por ser o único estado do Brasil que não está interligado ao sistema elétrico nacional – Sistema Interligado Nacional (SIN) – é muito grave, pois dependemos da energia produzida na Venezuela e, nesse momento, a central elétrica de Guri está com problema em sua manutenção e a crise venezuelana está se agravando. Uma política inteligente seria basicamente o que foi feito com o Paraguai: participamos da construção de Itaipu e colaboramos para desenvolver o Paraguai. Esse país faz fronteira com o Brasil, tem fluxo migratório, porém, como há desenvolvimento dos dois lados, não são vistos problemas como os que se veem hoje na relação Roraima-Venezuela. Deveríamos trabalhar para recuperar a economia venezuelana, fazendo uma interação com a nossa economia e, aí, eu incluiria também a Guiana. Com esse país, teríamos a opção de um porto de águas profundas que serviria de ponto de exportação para nossos produtos agropecuários. Quer dizer, esse momento poderia ser visto como um momento de oportunidade, mas o estado não tem um planejamento, e o Brasil, também, nos últimos dois anos, acabou com o que tinha de plano crescente de desenvolvimento.

Como o estado pode se beneficiar desse fluxo e quais seriam os caminhos para isso?

– Sim. O estado pode e deveria se beneficiar desse fluxo migratório. Como eu já coloquei, a Venezuela tem um PIB enorme, tem uma natureza belíssima, é um país dotado de um potencial turístico enorme, possui um setor hoteleiro muito grande, e nós temos, no estado de Roraima, uma população de apenas 500 mil habitantes. O estado precisa aumentar sua população, porque o desenvolvimento necessita também de mais mercado consumidor. Um estado cujo tamanho corresponde, por exemplo, ao Reino Unido, é um estado que precisa ser mais povoado. E a forma de se beneficiar desse fluxo migratório é levar em conta a grande quantidade de mão de obra qualificada, analisar os arranjos produtivos locais, ver que nós temos uma grande potencialidade no setor agropecuário, no setor da agroindústria e temos um grande potencial turístico. Podemos ser, também, um polo de desenvolvimento de produtos de alta tecnologia para exportação, porque estamos a uma pequena distância do maior mercado consumidor mundial, que é os Estados Unidos. Por outro lado, temos, também, todo o Caribe aqui perto do estado de Roraima. Agora, o estado não tem população nem mão de obra qualificada suficiente, ao passo que a Venezuela possui uma parte dessa população, que já está em Roraima, com muita qualificação, buscando qualquer forma de sobreviver por conta da crise. Seria necessário, na verdade, repensar essa questão do fluxo migratório, essa política de imigração, mas, para isso, teria que ter um plano de desenvolvimento para o estado. Infelizmente, o que se vinha construindo de política de desenvolvimento para a região, quando o Michel Temer assumiu o poder, ele foi para uma outra linha de ação que foi basicamente de confrontação, de subserviência aos Estados Unidos, ideologizou algo que deveria estar no plano econômico. E aí a situação do estado se agravou. Quanto à questão energética de que já falei, teríamos de interligar Roraima ao sistema elétrico nacional ou então investir na manutenção da central elétrica de Guri, que abastece 10 dos 15 municípios de Roraima, incluindo Boa Vista; trabalhar a questão de energias alternativas por conta das grandes distâncias que se têm em relação às áreas mais afastadas, mais rurais. Deveríamos nos aproveitar desse fluxo migratório de outra forma. Estamos perdendo um momento importante para o desenvolvimento do estado de Roraima.

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Há grande insatisfação da população roraimense com a presença de venezuelanos. No mês passado, moradores do município fronteiriço de Pacaraima atacaram e expulsaram alguns imigrantes. Considera esse um ato xenófobo (crime previsto no artigo 20 da Lei Federal 7.716/89)?

Hoje, há uma insatisfação da população com o grande fluxo migratório de venezuelanos. Mas eu não consigo enxergar o estado, o seu povo em sua maioria, como tendo características xenófobas. Na verdade, Roraima é uma grande mistura de povos. Temos gente de todos os estados da federação e até pouco tempo atrás esse convívio, entre roraimenses e venezuelanos, era natural. Venezuelanos moravam em Roraima, roraimenses moram na Venezuela. Agora, o Brasil passa por um momento político muito especial que permite que uma pequena parte da população se porte como xenófobo, com um comportamento mais hostil contra os imigrantes. Esse percentual é xenófobo mesmo, intolerante. Relativamente ao caso de Pacaraima, considero que vários fatores contribuíram. A cidade tem em torno de 10 mil habitantes com 1.200 imigrantes vivendo na rua ou em abrigos, alguns mais ou menos estruturados, outros improvisados. O acréscimo é muito grande para uma cidade que não tem o suporte para dar atenção a essa população. O fato concreto é que não há entendimento entre o governo federal e o estado, além de interesses políticos em acirrar os ânimos. Alguns agentes políticos, que dominam a política do estado, querem, de alguma forma, uma confrontação. Essa confrontação tem a ver com a busca de votos e aí se jogam os habitantes uns contra os outros. Como não há um controle no fluxo migratório, pessoas de diversas índoles estão entrando no país, entre esses imigrantes, evidente, há aqueles que não têm um comportamento decente enquanto cidadão. E, em Pacaraima, o acréscimo de crimes diversos – furtos, roubos, latrocínios – recai sobre os venezuelanos. Isso vai se agravando e aí você pega algumas pessoas que usam essa situação para incendiar a população e aconteceu o que se divulgou em rede nacional. Mas, reafirmo, não considero que a maioria da população seja xenófoba. Há uma insatisfação porque o estado não suporta o fluxo migratório e não se planejou. O governo federal deveria dar suporte para o estado, porque Roraima não teria condições financeiras de comportar um acréscimo tão grande na população. Mas tudo vira um jogo político e não uma política social, uma política humanitária, uma política de desenvolvimento.

O poder público estadual é responsável por tratar do problema do fluxo migratório venezuelano ou essa é uma questão que diz respeito, exclusivamente, à esfera do governo federal?

– O fluxo migratório, neste caso, é uma política entre países. Mas como acontece pela fronteira de Roraima, o estado também participa, embora todo o controle na fronteira deva ser feito por instituições federais (Polícia Federal, Receita Federal e a Guarda Nacional quando for destinada para esse fim). Agora, a partir do momento que entra no Brasil, passa a ser, também, um problema do estado de Roraima. Essa ação deveria ser uma ação conjunta envolvendo as nações (Brasil, Venezuela), o ente federativo (Roraima) e a própria ONU. O grande desafio é que, em termos nacionais, o Brasil optou por não buscar soluções negociadas para minimizar essa questão. O Brasil optou por buscar a confrontação. O governo estadual, por outro lado, tem um problema de gerenciamento, um problema próprio do estado que é não ter se preparado para essa situação. Esse fluxo já vem acontecendo há algum tempo, só chegamos a um volume considerável agora, mas não é recente. Então, você tem a ausência de agentes políticos, tanto do estado como do governo federal, e aí deixam o problema se avolumar esperando que as coisas se acomodem. Entretanto não se tem um mercado consumidor que consiga acomodar esse contingente de imigrantes sem uma política de investimento na infraestrutura, na capacidade de atendimento nas áreas de saúde, de educação, de moradia, enfim, um planejamento de desenvolvimento capaz de incorporar essa mão de obra migratória. Dessa forma, vejo como um jogo de “perde-perde”. O estado de Roraima e a União são dois agentes que não estão correspondendo ao momento histórico, não estão à altura do problema, não dialogando de forma construtiva. Então, é um problema que ainda vai demandar um tempo para ser resolvido.

A mídia corporativa brasileira tem dado destaque à Venezuela como sendo uma ditadura levada a ferro e a fogo por Nicolás Maduro. O senhor concorda com a veiculação dessas informações?

– Não concordo que a Venezuela seja uma ditadura. Na realidade, se observamos a história da Venezuela, constataremos que o país costuma respeitar às regras democráticas. Agora, a mídia brasileira registra os fatos, deturpando-os inúmeras vezes, conforme sua conveniência ideológica e de conluio com certa política de alinhamento com os interesses dos EUA e de certo segmento político brasileiro. Para grande parte da mídia corporativa brasileira, alguns são aliados, e outros não, ao sabor da conveniência discursiva e de benefícios financeiros que o apoio das pouquíssimas famílias que controlam o setor midiático brasileiro pode auferir. Os interesses são abjetos, são escusos. Portanto, a discussão não se circunscreve ao fato de a Venezuela ser ou não ser ditadura. Jamais se ouviu falar que alguns países muçulmanos ou africanos são uma ditadura pela mídia brasileira, porque para ela é conveniente não noticiar isso. A Venezuela tem um presidente democraticamente eleito. O processo democrático seguiu seu rito. Alguns países questionam, porém, quando se faz uma análise mais profunda, perceberemos que essa veiculação de que a Venezuela é uma ditadura está plantada em interesses econômicos maiores num um xadrez geopolítico que tem como protagonista os EUA. Garanto que, se a Venezuela não tivesse tanto petróleo, eu diria que essa discussão seria relegada à margem de fatos noticiosos sem nenhuma importância para as grandes nações que necessitam desses recursos naturais, principalmente os EUA. A mídia falseia a verdade. Em função desse panorama de pressão externa e com as sucessivas tentativas de golpe contra Nicolás Maduro patrocinadas pelos EUA, a democracia, sem dúvida, começa a se enfraquecer. O fato é que não há na Venezuela lideranças que façam o contraponto ao atual presidente. Podem-se questionar os problemas advindos da gestão de governo, da condução de política econômica, mas jamais dizer que na Venezuela existe uma ditadura, como a mídia insistentemente tem propagado de maneira falseadora e criminosa do ponto de vista de um jornalismo sério e imparcial que se espera.
 
(Publicado originalmente no site Contexto Livre)

Michel Zaidan Filho: A eleição do contra

 
 
 
Dois fatos novos parecem determinar a dinâmica das eleições presidenciais, daqui para frente. O impacto da agressão sofrida pelo deputado Jair Bolsonaro (PSL) sobre o eleitorado e o registro da candidatura de Fernando Haddad (PT) a Presidente da República. Faltando pouco mais de 15 dias para as eleições de primeiro turno, havia uma expectativa da parte dos bolsonaristas de que o incidente poderia alavancar a intenção de voto, ao provocar uma comoção popular, no candidato do PSL. Não foi o que aconteceu. Houve uma alteração de 2 pontos para cima, no rank eleitoral.É preciso atentar para o fato de que Bolsonaro é o campeão de rejeição segundo as pesquisas eleitorais e que na simulação do segundo turno, não ganha para nenhum dos outros candidatos. Como se especulava, antes do evento criminoso (ainda não de todo esclarecido), é como se o teto eleitoral do candidato já tivesse sido alcançado, mesmo com a ajuda da mídia "desinteressada".
 
O deputado pode ir para o segundo turno, mas perderá o seu favoritismo, sobretudo em razão das alianças que serão feitas contra si. O outro fato relevante é a candidatura de Fernando Haddad. Aqui é preciso reconhecer que houve um apreciável atraso no lançamento dessa candidatura. Um tempo precioso foi perdido, enquanto se discutia se havia ou não plano B para as eleições presidenciais por parte do Partidos dos Trabalhadores. Há que se distinguir duas importantes questões:a liberdade de LULA: a outra, a campanha eleitoral deste ano. Atrelar as duas foi um cálculo que pode dificultar o crescimento eleitoral de Haddad, nesse meio tempo de propaganda que ainda resta. A favor do candidato petista, pesa a pequena rejeição e o patrocínio de LULA, com o seu imenso prestígio popular. De toda maneira, o próprio LULA vem recomendando que se faça campanha nas redes sociais, em razão do cerco que os meios de comunicação vêm fazendo em relação a exposição pública do ex-prefeito de São Paulo.

Questão relevante é o início da discussão sobre as possíveis alianças para aqueles que poderão estar no segundo turno das eleições presidenciais. Há uma pergunta que não quer calar: para onde vai o PSDB, se seu candidato não chegar lá, como parece. É razoável supor que o PDT, a REDE, os Partidos Comunistas, o PSOL, o PSB caminhem juntos contra Bolsonaro. Mas há um extenso eleitorado de direita e centro-direita disponível para ser disputado pelos partidos que chegarem ao fim do pleito eleitoral. As agremiações partidárias e seus candidatos já deviam estar se preparando para esse debate. Não há mais tempo a perder nessas eleições, caracterizadas pelo chamado"Fake News". É preciso recuperar o tempo perdido junto aos eleitores e rediscutir a estratégia eleitoral a ser seguida depois do dia 7 de outubro. Se o fato do candidato favorito se encontrar fora - ocasionalmente - da propaganda e possuir uma grande rejeição (o que em tese trava seu potencial de crescimento) não for devidamente aproveitado pelos demais, há o risco dele ganhar as eleições pela incompetência e a inércia de seus adversários em buscar, desde já, de um acordo que permita ao seu competidor, no segundo turno, derrotá-lo.

Os partidos e seus candidatos precisam pensar estrategicamente o processo eleitoral, e não se fixar num planejamento de curto prazo. As eleições em dois turnos são praticamente duas eleições, com alianças e estratégias de campanha diferentes. A 15 dias do fim da campanha, é necessário olhar para diante e se preparar para o que vier acontecer. Outro ponto que mereceria uma análise mais detida é a composição do Congresso Nacional. Quem ganhar, será indispensável contar com o apoio de uma maioria estável para evitar as crises de governabilidade que colocam em risco o processo democrático.

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE

 

Durval Muniz: Cristãos fascistas, como entender?

 

Um dos aspectos mais intrigantes e esdrúxulos do momento da sociedade brasileira é a adesão de setores religiosos, que se proclamam cristãos, à candidatura de extrema-direita de Jair Bolsonaro. Ainda recentemente, cerca de cem pastores se reuniram em Brasília e se definiram pelo apoio à candidatura do capitão. Havendo outros candidatos conservadores na disputa, inclusive que se dizem cristãos evangélicos, como Marina Silva, esses pastores resolveram orientar seus fiéis a votarem na candidatura mais extremista e que parece bastante distante dos valores pregados por Cristo. Enquanto Cristo pregou o amor ao próximo, amar o outro como a si mesmo, o capitão e seus seguidores tudo o que fazem é pregar o ódio, a intolerância, o desrespeito ao outro que pensa ou vive de modo diferente daquele que julgam ser o correto. Enquanto Cristo abominou tanto a violência a ponto de aconselhar que alguém uma vez agredido na face, deveria oferecer a outra a seu algoz, o candidato que se diz cristão incentiva a violência, a agressão, sugere que se deve matar seus adversários, tendo espalhado tanta raiva que ela acabou se voltando contra si. Afinal, Cristo também disse que colhemos aqui na terra o que plantamos.
Enquanto Cristo defendeu do apedrejamento a prostituta, desafiando que aquele que não tivesse pecado atirasse a primeira pedra, os cristãos bolsonaristas adoram atirar pedra sobre aqueles que vivem estilos de vida e têm comportamentos com os quais não concordam. O capitão é uma figura misógina e machista que trata as mulheres com desprezo, naturalizando a pretensa inferioridade delas. Diversas vezes fez apologia do estupro, e considerou uma derrapada ou uma fraqueza ter posto no mundo uma filha. Enquanto Cristo, ainda na cruz, perdoou o ladrão que estava a seu lado, o candidato da direita defende simplesmente a eliminação física, o assassinato de bandidos e malfeitores, o uso da violência, das armas e da matança para se resolver problemas sociais complexos. Enquanto Cristo pregou o perdão e a solidariedade, o capitão prega a vingança e a intolerância. Enquanto Cristo expulsou os vendilhões do templo, Bolsonaro, embora em adesivos seja considerado o último patriota, é o candidato do mercado porque tem um assessor para economia, Paulo Guedes, que se rege pela cartilha neoliberal e está disposto a vender o país para os interesses internacionais. Enquanto Cristo foi socorrido e teve sua sede aplacada por uma samaritana, uma mulher palestina que, já naquele tempo, era considerada pertencente a uma raça inferior aos judeus, o candidato de parcela dos militantes cristãos é explicitamente racista (embora os ministros do Supremo Tribunal Federal, possivelmente seus eleitores, não conseguiram ver racismo no capitão ter dito em alto e bom som que os moradores de quilombo nem para procriar prestavam), define os índios como vagabundos e como um entrave para o desenvolvimento do país, faz piadas de péssimo gosto com os grupos étnicos minoritários. Enquanto Cristo beijou leprosos e acolheu pessoas com toda sorte de enfermidades, que atendeu todos aqueles considerados párias da sociedade, o capitão faz da diferença um estigma, açulando os preconceitos sociais mais básicos contra os mais vulneráveis, açulando o ódio e a intolerância em relação a gays, lésbicas, travestis, transexuais, restituindo a ideia ultrapassada de que sejam doenças. Inúmeras vezes disse preferir que um filho nascesse morto a ser homossexual. A sua crueldade contra os mais vulneráveis é profundamente anticristão.
O mais chocante, no entanto, é ver pessoas que se dizem seguidoras e fiéis de um homem que foi vítima de tortura, que foi seviciado pelos seus inimigos e levado à morte infamante numa cruz, se colocar ao lado de um defensor da tortura, ter como candidato à vice-presidente um general que defende publicamente o assassinato de pessoas. Não sabemos qual a maior barbárie, se é daquele que defende tais ideias, ou se é daquele que segue e vota em uma pessoa como essa. Se é inegável que o pensamento cristão foi fundamental para o desenvolvimento do que chamamos de civilização ocidental, isso se deve pelo caráter humanista e generoso de muitas de suas formulações, independente do que os homens tenham feito ou façam com elas. Como seguidores de Cristo, um homem que foi flagelado a chicote, que teve sua fronte varada por espinhos de uma pretensa coroa, que teve que arrastar a pesada cruz de madeira onde iria ser morto por um longo trajeto em subida, que caiu algumas vezes, ferindo os joelhos, que teve pregos cravados nas mãos e nos pés, que padeceu fome e sede, que ao pedir água recebeu uma esponja embebida em vinagre, que teve seu flanco perpassado por uma lança e, mesmo assim, perdoou a todos, se colocam ao lado de um político que publicamente, num dos momentos mais tristes para a democracia brasileira, ofereceu o seu voto ao torturador da presidente da República, num gesto abjeto em que se reuniu machismo, misoginia e crueldade sádica.
Ainda hoje recebi em meu celular um print de uma conversa no Facebook em que uma mulher, o que causa mais pasmo, dizia que Bolsonaro iria dar vida e educação a seus filhos, quando ele nem sequer educação pessoal tem que dirá dar educação a alguém. Seus comportamentos e falas deseducam, são uma ameaça para nossas futuras gerações. Como alguém que só prega a violência e a morte pode dar vida a alguém? Cristo veio ao mundo para dar nova vida e foi morto pelas elites judaicas, pelos fariseus, os privilegiados da época, porque viram nele uma ameaça à ordem, um transgressor, um perigo para seus privilégios. Sua mensagem, pregando que os ricos teriam enorme dificuldade em entrar no reino da glória desagradou as elites econômicas, políticas e religiosas de seu tempo. Se existisse o termo, possivelmente ele teria sido considerado um comunista. No entanto, as ditas lideranças cristãs de hoje estão pouco dispostas a fazer o que Cristo aconselhou ao jovem rico que lhe procurou perguntando o que fazer para se salvar, ou seja, vender tudo o que tivesse e se juntar a ele. Ao contrário, muitos do que usam o seu nome, muitos dos que se juntam a Ele hoje é para enriquecer à suas custas, é para acumular fortunas em seu nome, construindo templos nababescos para alguém que passou sua vida a pregar em desertos, praias e montanhas, que dormiu ao relento com seus apóstolos e que no Sermão da Montanha ensinou a viver uma vida simples. Muitos desses que se dizem cristãos e apoiam Bolsonaro, como ele próprio, levam uma vida muito distinta daquela por ele ensinada. Enquanto ele amou os pobres, esses que bem poderiam ser nomeados de sepulcros caiados, como ele chamou aos hipócritas que também pululavam em seu tempo, se aproveitam das carências e da ingenuidade dos mais pobres, oferecendo milagres e graças em troca do pouco que possuem.
Cristo escolheu seus apóstolos entre os homens mais simples de seu tempo, entre os trabalhadores. Ele confiou seu legado e sua mensagem a um pescador. Enquanto hoje, aqueles que se reúnem em torno da candidatura de Bolsonaro o fazem para evitar que possamos ter um governo que volte a cuidar minimamente dos mais pobres, que reconheça os direitos dos trabalhadores, surrupiados pelo governo dos golpistas. Há no apoio a Bolsonaro uma clara recusa a um retorno a um governo preocupado mais com o trabalho do que com o capital, com o lucro, com a banca. Aquele candidato que pretensamente defende as famílias, porque se deixa levar por preconceitos moralistas em relação aos avanços civilizacionais realizados nas relações de gênero e nas próprias relações familiares, promete continuar realizando uma política econômica e desmontando as políticas sociais sem as quais não é possível sequer a existência de vida familiar. Políticas que jogam milhões de lares na miséria, no desespero, na falta de esperança, na violência, na criminalidade, podem ser tudo, menos favoráveis as famílias.
Mas, alguns elementos podem ser arrolados para que compreendamos de onde advém essa adesão de uma parcela expressiva dos cristãos e, mais particularmente, dos evangélicos à candidatura de Bolsonaro. Além do fato de que ele hipocritamente tenha ido se banhar no rio Jordão, se batizar e se dizer um evangélico, embora tudo que fale e muito do que faz seja uma negação desse cristianismo, ele atende a certos traços que, ao longo do tempo, marcou a produção de corpos e mentes entre os evangélicos que, durante muito tempo se constituíram em uma minoria religiosa, muitas vezes perseguida e estigmatizada no Brasil. A maioria das comunidades evangélicas surgiu a partir da atuação de missionários estrangeiros, que possuíam formas culturais diferentes e recusavam a se integrar a cultura brasileira, majoritariamente católica, considerada depravada e imoral, quando não diabólica. As comunidades evangélicas cresceram enfatizando suas diferenças em relação à sociedade inclusiva. O rigor das regras morais e de comportamento impostas visavam diferenciar essas comunidades dos católicos e, notadamente dos seguidores de religiões de matriz africana, contra os quais se tinha o maior preconceito. Esse isolamento e essa enfâse na diferença na construção da identidade evangélica, fez surgir entre os evangélicos uma ideia de pureza e superioridade em relação aos demais. Os convertidos a alguma religião evangélica, costumavam e costumam dizer que abandonaram o mundo, que se retiraram da vida mundana, passando a viver, pretensamente, uma vida sacralizada fruto da graça e da bênção. Esse pretensa aristocracia moral é um passo para a intolerância em relação a quem leva uma vida diferente ou tem valores e comportamentos distintos. O fechamento das comunidades evangélicas, agravado pelo preconceito que sofriam por parte dos católicos, se tornava e se torna um caldo de cultura para o desenvolvimento de uma subjetividade de grupelho, um investimento coletivo de desejo reativo a sociedade inclusiva e a quem a representa.
Diante da crescente fragilização dos vínculos sociais trazidos pela velocidade das mudanças em amplos aspectos da existência, diante da fragilização dos vínculos domésticos trazidos pela sociedade do capital, diante da destruição dos laços comunitários, com o crescimento da solidão e do isolamento, as denominações evangélicas, por não serem, em sua maioria, igrejas de massa como a Igreja Católica, podiam e podem oferecer um simulacro de vida comunitária e até de vida familiar alternativa. Pessoas sozinhas e perdidas encontram nas igrejas seus novos irmãos, constituindo subjetividades coletivas de fusão, marcadas por laços muito mais afetivos, passionais, do que racionais. Os outros, os diferentes, o mundo lá fora se torna aqueles que devem ser convertidos nesse dentro comunitário do qual não se considera mais possível sair ou viver sem ele. As comunidades evangélicas rapidamente se tornaram lugares em que um rebanho se forma em torno de um pastor que se intromete e dirige todos os momentos da vida do fiel. Isso foi um passo na direção de tornar as igrejas currais eleitorais dos pastores, com irmão votando em irmão, inclusive com o uso de recursos arrecadados entre os fieis para financiar campanhas. Uma instituição disciplinar e totalitária na qual só há obediência ou exclusão, expulsão. A busca por padronização das condutas, a vigilância constante que um passa a exercer sobre o outro, o medo do pecado, do demônio, das coisas do tinhoso, faz muitas pessoas se tornarem fóbicas sociais, com dificuldade de conviver com o estranho, com o distinto, disso é um passo para o ataque e agressão aquele que parece ameaçar de contaminação a pureza duramente conquistada, a custas de muita asceses e sacrifício de seus desejos. Os maiores inimigos se tornam aqueles que não se proíbem, que desfrutam de prazeres e alegrias que pretensamente comprometem uma vida verdadeiramente cristã. Esquecendo que Cristo fez questão de marcar a diferença de seu ministério ao iniciá-lo numa festa e realizando como primeiro milagre a transformação de água em vinho. Como muitos ao se tornar evangélicos transformam a água de sua vida em vinagre, só tem amargor e fel para distribuir para todos. Só pessoas muito infelizes e amargas podem pensar que um admirador de torturadores, um despreparado emocional e intelectualmente, pode vir a ser alguém que trará vida a nação.
Muitos evangélicos e cristãos se acham no direito de atirar pedra em quem não pensa como eles, como aconteceu com uma menina no Rio de Janeiro, apedrejada por evangélicos ao sair de um terreiro de candomblé. O calvinismo, uma das doutrinas que deu origem ao puritanismo, pregava a existência de pessoas predestinadas à salvação pelo próprio Senhor. Muitos entre os evangélicos se tornam pessoas pretensamente puras, predestinadas, uma espécie de casta privilegiada pelo divino, que se julgam no direito de discriminar, quando não de perseguir como sendo gente diabólica, os crentes de outras religiões, os homossexuais, os travestis, os transexuais, as feministas, os comunistas, etc. Essas subjetividades autoritárias e intolerantes se encontram e se veem no sujeito intolerante e autoritário que é Bolsonaro. Não há demonstração maior de autoritarismo do que o militante evangélico a querer converter a todos em qualquer lugar e hora, impondo sua fala a quem não o quer ouvir, impondo sua música a que não quer escutar, se achando no direito de ocupar o espaço do outro sem sequer pedir licença. Eles se pretendem possuidores de uma única Verdade, a verdade que leem, muitas vezes de forma equivocada e precária em partes da Bíblia, um livro que é uma reunião de textos de épocas, tradições e autores diferentes, cheio de contradições, do qual se escolhe a passagem que se quer e que permite embasar a atitude preconceituosa e intolerante daquele que se diz portador da Verdade. O capitão, até na forma de falar, também parece possuir a Verdade, ele é o dono da verdade, até porque foi o próprio Deus que a revelou. Muitas vezes ficamos perplexos vendo dois cristãos conversando e relatando as vontades de Deus, de forma a pensarmos que deve ter tido uma conversa íntima com Ele. Não há possibilidade de vida democrática e republicana sem o debate e confronto de ideias e, para isso é preciso que a verdade seja algo que não pertença a ninguém mas que se construa nas discussões. Aquele que se julga com a Verdade, também se julga no direito de julgar o outro, desqualificar suas ideias e suas falas. Daí porque Bolsonaro e seus seguidores serem uma ameaça à democracia e à República. O fascismo se alimenta desses desejos de pureza, de superioridade, de distinção, de segregação, de conversão do outro, se necessário à força, de eliminação do outro, de verdade absoluta. Podemos entender porque setores ditos cristão tenham aderido ao fascismo, isso já ocorreu no passado, tanto na Itália, quanto na Alemanha. Essa busca por um governo de escolhidos, de semelhantes, de irmãos na fé e na crença, moralmente superior e puro, um governo que garanta a ordem, a segurança das famílias, é um passo para a adesão ao fascismo que, como podemos ver na atual campanha, com a peixeirada que vitimou o próprio candidato da intolerância, é um passo também para um regime de força, para um regime antidemocrático e assassino.

Durval Muniz de Albuquerque é historiador e professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

(Artigo publicado originalmente no site Saiba Mais, Agência de Reportagem, aqui reproduzido com autorização do autor)

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sábado, 15 de setembro de 2018

Crônica: Crônica de Jampa


 
José Luiz Gomes
 
Num desses encontros com o comendador Arnaldo, decidimos, em conjunto, escrever um guia histórico, turístico e sentimental da cidade de João Pessoa. O projeto caminha muito bem, porque, como já disse por aqui, Arnaldo, um jornalista com mais de 40 anos de batente, conhece cada palmo de Jampa, onde veio estudar ainda na condição de um adolescente. Aqui estudou, aqui se formou, aqui trabalhou, passando pelos principais jornais do Estado, pelo rádio e pela televisão. Pessoense convicto, curtiu bastante a cidade. Não apenas como profissional de imprensa, mas como um apaixonado pela cidade, suas ruas, suas pontes, seus becos e vielas, suas pensões, suas praças, seus recantos, seus redutos boêmios, seus botecos, suas casas de prazeres da carne. Como disse em outro momento, para se conhecer bem uma cidade é preciso senti-la, passeá-la, tocá-la, comê-la. Quem pode dizer que conhece o Recife sem ter comido uma rabada no Mercado de São José? ou conhece Belo Horizonte sem ter degustado um jiló com fígado no Mercado Central? Hoje esses points estão se constituindo em verdadeiras “sínteses” dessas cidades.
Olinda, por exemplo, sem um conceito muito bem definido para o mercado Eufrásio Barbosa, tornou-se uma cidade sem gosto, sem tempero, salvo apenas pelas tapioqueiras do Alto da Sé. É uma cidade turística onde os visitantes entram, visitam e vão embora sem dar uma passadinha pelo seu mercado central. Há bons restaurantes, não resta a menor dúvida, mas nada que se compare ao aconchego de um Mercado Central  e o Eufrásio Barbosa bem que poderia cumprir esse papel. Essa questão é tão séria que o conceito introduzido no Mercado do Rio Vermelho, em Salvador, está superando o tradicional Mercado Central, na cidade baixa. Assombração não há por ali, mas o fedor é perceptível, quando você sobe a escadaria para o pavimento superior. João Pessoa tem uns tantos deles. Além do central, ali no bairro da Torre, você poderá encontrar o do bairro de Mangabeira, de Tambaú, também conhecido como mercado das frutas. Pequeno, mas um pequeno que satisfaz, com sua variedade de frutas, carnes, frios e artesantos típicos da região.
 
Prometo aos leitores que voltaremos a tratar desses mercados com mais atenção. No momento, vamos começar pelo começo da cidade, quando ela ainda se chamava de Cidade Real de Nossa Senhoras das Neves, fundada pelos idos de 1585. Jampa é a 3ª cidade mais antiga do Brasil. Já nasceu cidade, sem passar pela condição de vila ou aldeia. Foi fundada pela Cúpula da Fazenda Real, uma Capitania da Coroa, desmembrada da Capital de Itamaracá, que então controlava uma grande extensão de terra da Paraíba. João Pessoa é uma cidade que expandiu-se para o litoral apenas a partir de 1940, como um projeto de intervenção na Lagoa dos Irerês, hoje Parque Solon de Lucena. A partir dessa intervenção urbanística, avenidas foram abertas em direção à orla, mais precisamente no sentido leste , em direção ao bairro de Tambaú. O historiador Gilvan de Brito assegura que a decisão de formar um núcleo populacional às margem do Rio Sanhauá, em sua margem direita, atendeu a um objetido militar dos mais notáveis, tornando João Pessoa uma fortaleza inexpugnável sob domínio da Coroa Portuguesa. Inexpugnável assim nem tanto, pois a capital da Paraíba esteve sob domínio holandês durante um determinado período de sua História. Mas isso eu conto para vocês nas próximas crônicas.  

Charge! Renato Aroeira

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Charge! Machado via Folha de São Paulo

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sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Crônica: Rio Sanhauá





José Luiz Gomes 

O projeto de escrever um guia histórico, turístico e sentimental de João Pessoa, necessariamente, nos contingenciam a realizar visitas frequentes àquela cidade, o que não se constitui, naturalmente, num problema, mas algo que fazemos com grande entusiasmo. Ainda no domingo, estivemos na Praça João Pessoa, e o comendador Arnaldo, com aquele humor cáustico que o caracteriza, já sentencia. -Luiz, eu não sei se o puteiro aqui é maior durante o dia ou durante à noite. A analogia logo fica clara. Ali, nas suas imediações, ficam as sedes do Executivo e do Legislativo Estadual. À noite, a praça vira um reduto de prostitutas e travestis. Numa crônica recente, sobre o Recife, observo a necessidade de se conhecer uma cidade em seus distintos momentos. Durante o dia, à noite, madrugada a dentro. Não raro, são necessários alguns flagrantes, assim inusitados, onde se pode obter informações mais relevantes, dessas que escapam às primeiras impressões. Eis aqui uma lição que aprendi com o comendador Arnaldo, um profundo admirador da “bagaceira”, dos botecos, das ladeiras, das esquinas, dos escondidinhos da cidade.

A convite do “Mago”, até frequenta um Gulliver ou um Mangai, mas apenas de vez em quando, quando a necessidade obriga. Prefere mesmo é a comida do Mercado Municipal do bairro da Torre, acompanhada de uma caninha do Brejo e a prosa dos colegas da confraria. Na semana passada, a partir do sítio histórico, contemplamos uma vista magnífica do Rio Sanhauá, um afluente do Rio Paraíba, que banha a capital pessoense e a cidade vizinha, de Bayeux. Hoje bastante poluído pelos esgotos e dejetos jogados em seu leito pela população ribeirinha, cujas casas não possuem saneamento básico. Mesmo nessas condições degradadas, fornece o alimento para a sobrevivência dos pescadores que se dedicam à pesca artesanal. Alguns tipos de peixes, goiamuns, caranguejos e crustáceos ainda são possíveis de ser capturados em seus manguezais vistosos. Embora hoje desativado, dizem que o antigo lixão do bairro do Roger ainda  despeja o chorume no seu leito, contribuindo para agravar ainda mais o problema da poluição. 
Como disse antes, o Rio Sanhauá é um dos afluentes do Rio Paraíba, dos romances do escritor José Lins do Rego. Diante da crise hídrica que atravessamos, outro dia, aproveitamos a oportunidade para visitar a cidade de Pilar, por onde ele passa, bem pertinho do Engenho Corredor, onde o escritor viveu sua infância, batizando-se naquelas águas; apavorado com suas enchentes de outrora; e, nas estripulias típica de um menino de engenho, observando o molejo dos latifúndios dorsais das negras escravas que lavavam roupas no seu leito, como sugeria o amigo Gilberto Freyre. o Rio Sanhauá é uma referência histórica para a capital do Estado. João Pessoa nasceu ali, na sua vizinhança. Apenas depois - muito depois, aliás - é que o abandonou pelos encantos litorâneos de Tambau.