Li, com muito interesse e acuidade, o artigo de Magali
Nascimento Cunha sobre “a hegemonia neopentecostal” no Brasil. As cifras
apresentadas por ela são impressionantes e sua influência social, cultural e
política considerável. Pergunta ela: o que têm em comum o pastor Waldomiro, o
bispo Edir Macedo, seu cunhado R.R. Soares, Silas Malafaia e o casal Hernandez?
Naturalmente, a crença em comum numa espécie de teologia
fundamentalista e fundada numa religião da prosperidade que faz os incautos,
crédulos e desesperados a se agarrar a uma pregação religiosa de natureza
retributiva (ganhas na medida em que tu dás) ena Lei de Talião (do Velho Testamento). Sem esses componentes, estes
ramos populares do Cristianismo reformado não teriam prosperado no Brasil,
depois do recuo das pastorais e comunidades eclesiais de base da Igreja
católica. Perdeu-se uma Igreja dos oprimidos, dos pobres e humildes, nas
periferias miseráveis das grandes cidades. A imensa vala aberta pelas políticas
neoliberais em nosso país só deixou como alternativa a pregação desses pastores
fundamentalistas e individualistas, inspirados no modelo americano do American Dream”.
Neste ponto, o livro do bispo da
Igreja metodista “Educação Religiosa e Petismo”,Geoval Jacinto da Silvaparece ser muito esclarecedor sobre o sentido
da recepção abastardada e conservadora dopentecostalismo trazida por missionários norte-americanos ,entre nós.
Tal recepção deixou para trás os conteúdos dogmáticos originais e tornou-se um
mero canal de “self-made man”, através de uma ética puritana, abstemia e
diligente, que coloca toda a responsabilidade das desigualdades sociais nas
costas do “crente”, rejeitando a pobreza, a solidariedade e qualquer tipo de
crítica social. A cultura ética e individualista desse ramo pentecostal e
neopentecostal faz recair sobre os ombros de cada indivíduo a culpa pela sua
desgraça, como uma nova espécie de pegado original, e o sentido do apelo religioso
é para que trabalhe, trabalhe e acumule bens, sem se preocupar com os outros ou
o Estado.Ser virtuoso é ser rico,
próspero e bem sucedido na vida. Ser pecaminoso é ser pobre ou miserável.
Não foi à-toa que os milhões de votos que deram a vitória a
Jair Bolsonaro saíram desses círculos cristãos, avessos a qualquer discurso
socializante ou mesmo protetivo em relação aos mais pobres. Esta teologia da
prosperidade casou à perfeição com a ideologia neoliberalismo desse governo dos
ricos, demonizando os partidos de esquerda e toda ética da solidariedade.
Imagine-se o uso instrumental pelo governo de um discurso
religioso como esse? Que junta fundamentalismo e individualismo e se aproxima
perigosamente do darwinismo social.
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia.
Frame do vídeo “Vi todas as
coisas, e maravilhei-me de tudo, mas tudo sobrou ou foi pouco – não sei
qual – e eu sofri”, Roberta Goldfarb, 2014 (Foto: Reprodução)
Bispo Edir Macedo, missionário R. R.
Soares, apóstolo Estevam Hernandes, pastor Silas Malafaia, bispo
Valdemiro Santiago, pastora Damares Alves,
apóstolo Rina, pastor Marco Feliciano, apóstola Valnice Milhomens,
pastora Cassiane. O que essas lideranças religiosas, destacadas por
mídias brasileiras, têm em comum? São pentecostais, o segmento religioso
cristão que mais se expandiu, numérica e geograficamente, no Brasil nas
últimas décadas. Hoje, compreender o pentecostalismo é imprescindível
para quem se interessa pelas dinâmicas socioculturais e políticas que
envolvem o país. O pentecostalismo é uma das ramificações evangélicas formada por uma variedade de grupos,
desde grandes igrejas, como a Assembleia de Deus (que também tem suas
divisões), até pequenas denominações de uma única congregação, como a
Igreja Evangélica Pentecostal Maná do Céu, em São Vicente (SP), e tantas
outras vistas Brasil afora. Evangélicos pentecostais e neopentecostais O segmento evangélico é bastante
diverso. Tem origem na Reforma Protestante do século 16 que abriu
caminho para o surgimento de luteranos, congregacionais, presbiterianos,
batistas, metodistas, anglicanos. No século 20, surgiram os
pentecostais, expressão de um movimento de protesto contra o racismo e o
classismo nas Igrejas, e de afirmação da população negra, migrante,
feminina e pobre nos Estados Unidos. Os primeiros evangélicos chegaram ao Brasil por meio de missionários estadunidenses,
na primeira metade do século 19. A identidade “protestante” nunca foi
bem afirmada por boa parte deles, que sempre optaram por se denominar
“evangélicos”, reforçando disputas religiosas com o histórico
catolicismo romano ao colocarem-se como detentores “do verdadeiro
Evangelho”. Atualmente, o grupo mais
significativo desse mosaico religioso são os pentecostais. Representam a
maior fatia numérica (são cerca de 60% dos evangélicos, segundo o Censo
de 2010), com presença geográfica importante, ocupação de espaço nas
mídias tradicionais (rádio e TV) e intensa atuação na política
partidária. O que diferencia evangélicos
pentecostais dos históricos é a crença no segundo batismo, uma
experiência mística atribuída à ação do Espírito Santo, que leva os
fiéis a falarem línguas estranhas como sinal de sua presença. Essa ação
do Espírito Santo também atribui dons especiais, como profecia e cura
pela oração. Missionários trouxeram o
pentecostalismo ao Brasil na primeira década do século 20 e se
estabeleceram no Pará (suecos, Assembleia de Deus) e em São Paulo
(estadunidenses, Congregação Cristã do Brasil e Evangelho Quadrangular).
A partir dos anos 1950, com os intensos movimentos migratórios do campo
para as cidades e o processo de industrialização do país, surgiram as
Igrejas pentecostais fundadas por brasileiros, como a Casa da Bênção, a
Brasil para Cristo, a Deus é Amor, entre outras. Várias delas tiveram em
programas de rádio um importante apoio para disseminar sua fé. A ação pentecostal no país é
historicamente marcada por presença mais voltada à população empobrecida
e às periferias das cidades. Essa prática tornou possível maior
enraizamento nas culturas populares, com lugar garantido para a emoção e
expressões corporal e musical, ainda que marcada por um puritanismo de
restrições morais e culturais. Isso deu aos grupos pentecostais
condições de consolidação nos espaços religiosos e crescimento numérico
mais expressivo. Mas o boom
pentecostal, de fato, ocorreu a partir da década de 1980 e transformou
significativamente o perfil do segmento evangélico brasileiro. Essa
expansão tão marcante tem alicerces nas transformações do mundo naquele
período. Foi o momento dos processos de derrocada do socialismo,
simbolizado pela queda do Muro de Berlim, e a consolidação do
capitalismo globalizado e da cultura do mercado, baseados na lógica da
plena realização do ser humano pela posse de produtos e serviços e pelo
acesso à tecnologia da informática. Grupos cristãos estadunidenses
adequaram seu discurso à nova ordem mundial e criaram a Teologia da
Prosperidade. Ela foi abraçada por uma parcela de pentecostais
brasileiros que passou a pregar que as bênçãos de Deus, na forma de
prosperidade material (posse de finanças, saúde e felicidade na
família), são concedidas aos fiéis que se empenham nas práticas de
devoção aliadas às ofertas em dinheiro às igrejas. A elas também é
destinada a prosperidade, por meio de amplo número de fiéis, ocupação
geográfica, aquisição de patrimônio e influência no espaço público. Os
estudiosos da religião dizem que se trata de uma relação de troca com
Deus, bem própria do clima social estabelecido pelo mercado neoliberal. Como essa noção de prosperidade
também tem a dimensão da saúde plena, as propostas de cura se
amplificaram, bem como se intensificaram as práticas de exorcismo contra
os males (demônios) que impedem a felicidade. Isso representou um
reprocessamento de elementos da matriz religiosa brasileira com a farta
(re)utilização de símbolos e representações do catolicismo e de
religiões de terreiros. Cura, exorcismo e prosperidade
tornaram-se marcas de uma nova forma de pentecostalismo, que deixava de
enfatizar a necessidade de restrições de cunho moral e cultural para que
se alcançasse a bênção divina. Esse pentecostalismo se expandiu no
Brasil pelos anos 1990 e 2000, com a formação de um sem-número de
igrejas. Estudiosos da religião denominam essa expressão religiosa de
neopentecostalismo, ao qual estão vinculadas as Igrejas Universal do
Reino de Deus, Internacional da Graça de Deus, Renascer em Cristo,
Mundial do Poder de Deus, Sara Nossa Terra, Bola de Neve, entre as
maiores, somadas a inúmeras igrejas autônomas. O crescimento pentecostal passou a
exercer influência decisiva sobre o modo de ser das demais Igrejas
cristãs. A influência se concretizou de maneira especial no reforço aos
grupos chamados “avivalistas” ou “de renovação carismática”, que têm
similaridade de propostas e posturas com o pentecostalismo e que, em
busca de crescimento numérico, passaram a conquistar espaços importantes
na prática religiosa das Igrejas chamadas históricas, incluindo a
Católica. Mídias, política e mercado O neopentecostalismo não significa a
superação do pentecostalismo clássico do início do século 20. Pelo
contrário, a Assembleia de Deus consolidou-se como a maior denominação
pentecostal, e é também a maior Igreja Evangélica do Brasil, em termos
numéricos e geográficos, com suas grandes e pequenas divisões em
“ministérios”. A Congregação Cristã do Brasil, a Evangelho Quadrangular,
a Deus é Amor e a Brasil para Cristo continuam a ter presença
significativa em todas as regiões do país. Entretanto, os grupos neopentecostais
ganharam intensa visibilidade por conta da ocupação das mídias
tradicionais, como rádio e TV, e dos projetos de participação política. Na virada para o século 21, pastores e
líderes neopentecostais tornaram-se empresários de mídia e detentores
do que se poderia chamar “verdadeiros impérios” no campo da comunicação,
buscando competir até mesmo com empresas não religiosas historicamente
consolidadas (caso das Universal do Reino de Deus, Renascer em Cristo e
Internacional da Graça de Deus). Chegou ao ponto de alguns desses grupos
religiosos já nascerem midiáticos, isto é, a interação com as mídias
passaram a fazer parte de sua própria razão de ser. Ao mesmo tempo, as grandes mídias
(seculares) assimilam essa atmosfera e passam a produzir programas, ou
parcelas deles, para disputar a audiência evangélica: espaço para a
música cristã contemporânea (“gospel”) e seus artistas; patrocínio de
festivais e megaeventos de rua; veiculação de programas de
entretenimento com temática religiosa (inclusive com a concepção de
personagens para telenovelas e criação das próprias telenovelas
bíblicas). A tudo isso se conecta o crescimento
de um mercado da religião. Os cristãos tornam-se um segmento de mercado
com produtos e serviços especialmente desenhados para atender às suas
necessidades religiosas, sejam de consumo de bens, sejam de lazer e
entretenimento. Passou a ser possível encontrar produtos os mais
variados, como roupas, cosméticos, doces, viagens, filmes e jogos com
marcas formadas por slogans de apelo religioso, versículos bíblicos ou,
simplesmente, o nome de Jesus. A Igreja Católica passou a seguir a mesma
trilha. A maior presença dos evangélicos no
campo da política partidária é parte desse contexto. Desde o Congresso
Constituinte de 1986 e a formação da primeira bancada evangélica e seus
desdobramentos, a máxima “crente não se mete em política” foi sepultada.
A máxima passou a ser “irmão vota em irmão”. A atuação daquela primeira bancada no
Congresso Constituinte (1986-1989) foi marcada por fisiologismo e pela
histórica farta distribuição de estações de rádio e canais de TV aos
deputados evangélicos (determinante para a ampliação da presença de
pentecostais nas mídias). Depois de altos e baixos numéricos,
decorrentes de casos de corrupção e fisiologismo nas legislaturas
pós-Congresso Constituinte, a bancada evangélica consolidou-se como
força a partir dos anos 2000, chegando a alcançar 92 parlamentares (88
deputados e 4 senadores) em 2014, e nas eleições de 2018, 94 (85
deputados e 9 senadores), sendo os pentecostais uma força hegemônica. Frame
do vídeo “Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo, mas tudo sobrou
ou foi pouco – não sei qual – e eu sofri”, Roberta Goldfarb, 2014 (Foto:
Reprodução)Essa potência solidificou-se na
última década e meia, muito especialmente por conta da força de duas
Igrejas Evangélicas que concretizaram, desde 1986, projetos de ocupação
da política institucional do país: as Assembleias de Deus (AD) e a
Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Ambas passaram a ocupar,
depois de 2003, espaços plenos de poder em partidos (respectivamente o
Partido Social Cristão, PSC, e o Partido Republicano Brasileiro, PRB),
maior quantidade de deputados e senadores no Congresso, conquistas de
cargos públicos, como as nomeações de ministros de Estado de Dilma Rousseff
(dois da IURD) e de Michel Temer (dois da IURD), e lançaram dois
candidatos à Presidência da República (Marina Silva e pastor Everaldo,
ambos da AD). A IURD conseguiu ainda eleger o bispo, ex-senador e
ex-ministro Marcelo Crivella como prefeito da cidade do Rio de Janeiro
(2016). Além disso, dois fatos impulsionaram o
poder pentecostal na política. Um deles foi a inusitada nomeação do
deputado Marco Feliciano (hoje, Podemos, o PODE/SP) como presidente da
Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, em 2013. Ela culminou
no revigoramento de campanhas por legislação pautada pela moralidade
sexual religiosa, sob o rótulo “Defesa da Família Tradicional”, contra
movimentos feministas e LGBTI,
em aliança com a bancada católica. Essas pautas encontraram eco na
população conservadora não religiosa e reforçaram movimentos
reacionários às conquistas de direitos alcançadas nas últimas duas
décadas. Outro fato foi a eleição do deputado federal pentecostal Eduardo Cunha
(Movimento Democrático Brasileiro, MDB/RJ) à presidência da Câmara dos
Deputados, em 2015. Representou um poder sem precedentes para a bancada
evangélica e facilitou tanto a defesa das pautas descritas aqui como a
abertura à concessão de privilégios a Igrejas no espaço público. A
prisão e a cassação do deputado, em 2016, não afetou significativamente
as conquistas políticas da bancada. Tanto a IURD como a AD ofereceram amplo apoio à eleição de Jair Bolsonaro
à Presidência da República em 2018, acompanhadas por outras
denominações pentecostais, no rastro das propostas conservadoras
apresentadas por ele. Bolsonaro candidatou-se à Presidência com um
discurso identificado como cristão, marcadamente evangélico conservador,
embora declarando-se católico. Nesse contexto, a bancada evangélica se
fortaleceu como interlocutora do novo governo e ganhou representantes
nos ministérios da Casa Civil (Onyx Lorenzoni) e da Mulher, Família e
Direitos Humanos (pastora Damares Alves), com fiéis alocados em cargos estratégicos no Ministério da Educação. Para refletir Esse quadro retrata a ampliação da
visibilidade pública alcançada pelos evangélicos no Brasil nas últimas
décadas, por conta da hegemonia (neo)pentecostal. É um fenômeno que marca o momento
sociopolítico e cultural do país, em que os evangélicos se colocam na
arena como bloco organicamente articulado. Eles não são mais “os
crentes” ou os grupos fechados de outrora; desenvolvem uma cultura “da
vida normal” que combina a religião com presença nas mídias, no mercado,
no entretenimento e na política. Um segmento religioso que se vê
fortalecido como parcela social que tem suas próprias reivindicações e
pode eleger seus próprios representantes para os espaços de poder
público. MAGALI DO NASCIMENTO CUNHA é
doutora em Ciências da Comunicação pela USP, integrante da Associação
Internacional Mídia, Religião e Cultura e da Associação Mundial de
Comunicação Cristã
O Partido dos Trabalhadores apresenta, em Pernambuco, um quadro paradoxal: é um partido forte, consolidado, com representantes nos três níveis de governo, mas ao mesmo tempo submisso à hegemonia política da oligarquia pernambucana Campos/Arraes. Não quero falar do outro Partido que integra a aliança governista, pois este já abdicou faz muito tempo de qualquer veleidade de autonomia ou liderança política, conformando-se em ser mero coadjuvante da coligação ora no poder. O problema da falta de autonomia do PT foi explicado pelo ex-vereador (hoje secretário) Dilson Peixoto como tendo o partido uma estratégia nacional e Pernambuco não poderia ficar de fora, qual seja: a eleição de um candidato petista à Presidência da República e o indispensável apoio do PSB a esta candidatura. Foi o que se deu entre nós, com o sacrifício da candidatura da hoje deputada Marília Arraes.
As imagens que circularam pelas redes sociais, mostrando Lula de braços dados ou com os bracos levantados, ora com Marília Arraes ora beijando o filho de Eduardo Campos parecem reeditar a mesma história da eleição passada: com uma mão, Lula acena para a militância petista entusiasmada com a possibilidade de o partido ter candidatura própria, com a outra parece selar um acordo de cúpula com os herdeiros do legado político eduardista. Afinal, teremos a reedição dessa nefasta aliança, com o sacrifício - outra vez - de uma candidatura petista que vem se mostrando viável e competitiva?
É de se lamentar - e muito - essa duplicidade de atitudes. O pragmatismo em política sem seus limites: não só numa ética das convicções ideológicas ou programáticas, mas nos compromissos assumidos publicamente com o povo. Como é possível continuar acendendo uma vela para Deus, e outra para o Diabo? - Seja qual for o projeto (ou estratégia) nacional do Partido dos Trabalhadores e seu candidato às eleições presidenciais de 2022, o PSB será levado pela força da gravidade a apoiar o PT; não é necessário que determinadas lideranças regionais lulistas e arraesistas entreguem numa bandeja a cabeça de um projeto de autonomia polítoco-partidária no estado, e os demais companheiros digam "amém", "amém". Se quisermos romper com esse circulo infernal da reprodução do poder oligárquico em Pernambuco é preciso ousar, ter coragem de abrir uma via própria para a esquerda passar, mesmo que isto custe mandatos, cargos e eleições. No início, o PT foi capaz de fazer isso. Por que agora não consegue mais? - Será que a idade da razão (ou do acomodamento político-institucional) chegou nas cabeças de alguns líderes locais da agremiação partidária? - É tão importante assim ocupar uma secretaria sem importância ou um mandato senatorial em troca de um verdadeiro projeto de hegemonia política em Pernambuco? - Considero isso não só uma pequena política, mas sobretudo uma traição aos compromissos democráticos e populares assumidos historicamente com a sociedade.
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE
Descendente de negros e
indígenas, o baiano Itamar Vieira Jr é autor de 'Torto arado', publicado
pela Todavia (Foto: Valdizio Soares)
Quando o poeta cearense Mailson Furtado, nascido e criado na cidade de Varjota, sertão nordestino, ganhou o Prêmio Jabuti de livro do ano em 2018 com À cidade,
uma obra que não tinha editora e fora bancada com recursos próprios,
ficou claro que algo estava mudando na literatura brasileira. Maílson,
grande vencedor do mais prestigiado prêmio literário brasileiro, era um
artista periférico, nascido em uma família pobre e sem conexões com o establishment
da literatura nacional. No mesmo ano, o baiano Itamar Vieira Jr,
descendente de negros e indígenas, abocanhou 100 mil euros do Prêmio
Leya com seu romance Torto arado (Todavia), que contava a
história de duas irmãs quilombolas envolvidas em conflitos agrários no
sertão baiano. Ainda em 2018, Raimundo Neto, autor homossexual, nascido
no sertão do Piauí, fora agraciado com o Prêmio Paraná de Literatura com
o excelente livro de contos Todo esse amor que inventamos para nós, protagonizado por gays, travestis e outras personagens LGBTQ+.
Dois anos antes, Micheliny Verunschk, nascida no sertão de
Pernambuco, já havia sido agraciada com o Prêmio São Paulo de Literatura
por sua versão barroca da história de Teresa, uma santa popular suicida
cultuada no nordeste brasileiro. Em comum, esses quatro autores
nordestinos, ponta de lança de um movimento literário maior que eclode
na década de 2010, tinham o fato de virem de fora dos centros de poder
do Brasil, serem parte de grupos discriminados, produzirem uma
literatura épica e poética e não terem começado suas carreiras
apadrinhados por grandes editoras.
Até então, a literatura brasileira dos anos da redemocratização e da chamada Nova República tinha cara, gênero e classe social:
era dominada por autores homens, brancos, “não-jovens”, ricos e
heterossexuais nascidos nos grandes centros urbanos da regiões
sul-sudeste do país. Seu estilo muitas vezes privilegiava a autoficção e
sua temática estava mais focada nos dramas internos e no fluxo
psicológico do que em grandes acontecimentos ou na narrativa romanesca
tradicional. A oposição binária a isso seria a “literatura
periférica/marginal” dos artistas das favelas brasileiras, também vindos
dos grandes centros urbanos do sudeste e, muitas vezes, produzindo
prosa autobiográfica e protagonizada por homens heterossexuais. Exceção
feita para a mineira Ana Maria Gonçalves, escritora afro-brasileira, e seu Um defeito de cor (2006),
espécie de madrinha espiritual desta geração que escreve “histórias de
dimensão épica e sobre um Brasil profundo” como definiu o escritor
Krishna Monteiro, ele próprio um autor negro, nascido no interior do
Paraná e cujo livro de estreia O que não existe mais (Tordesilhas) foi finalista do Prêmio Jabuti.
Esta premiada literatura “neoregionalista” (título problemático, pois
foge da universalidade buscada pelos autores citados e flerta com uma
hierarquia de que só se é universal quando central) aparenta romper com
os padrões colonialistas e europeus pelos quais a prosa brasileira vinha
enveredando. É literatura produzida fora dos grandes centros urbanos,
nas regiões de sertão, por membros pouco representados e periféricos da
sociedade brasileira (negros, mulheres, pobres, homossexuais e
indígenas) e que rejeita a exclusividade do binarismo “periferia urbana –
centro urbano”, apresentando uma pluralidade de regiões, sotaques,
cores e perspectivas de um país continental. Verunschk reflete sobre
isso em entrevista na Revista Pessoa para a escritora Paula Fábrio – ela
também vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura pelo elogiado Desnorteio (Patuá):
“Não somos a Europa. Nossas combinações, arranjos, nossos modos de
pensar são inclusivos, não-binários, vertiginosos. O nosso design pode
se esforçar pela brancura escandinava, mas somos outra coisa, somos a
estátua de murta, de que falava o padre Antonio Vieira em um dos seus
sermões. Não podemos ser mármore, porque nasce um broto onde deveria ser
um olho, um galho fora de ordem onde deveria ser um braço.”
Quando observamos os premiados romances de Verunschk e Vieira Jr,
especificamente, notamos uma identidade brasileira moderna, mas com
raízes fincadas nas tradições e particularidades do continente
latino-americano, atualizando para o século 21 o legado de artistas de
língua portuguesa como Guimarães Rosa, Glauber Rocha, João Cabral de Melo Neto e do luso José Saramago. É marcante também a presença do jarê, religião afro-brasileira, em Torto arado, de Vieira Jr, (cuja última parte é narrada por uma entidade) e da religiosidade popular devota de santos “leigos” em Nossa Teresa: vida e morte de uma santa suicida
(Patuá), de Verunschk. Essa espiritualidade mágica remete ao realismo
fantástico latino-americano (da qual Verunschk se diz admiradora de
Borges e Vieira Jr. de García Marquez), mas parece avançar para uma
representação menos exótica e mais genuína, alinhando-se ao
perspectivismo ameríndio teorizado por Viveiros de Castro e lido, na
prática, no livro A queda do céu (Cia das Letras) do xamã yanomami David Kopenawa, outro grande marco literário decolonialista da década de 2010.
Foi por tudo isso que cravei com gosto a frase: “A literatura
brasileira vive seu melhor momento nos últimos 50 anos” no jornal alemão
Frankfurter Rundschau e na rádio francesa RF1. Não era só a empolgação
caipira de dar entrevistas internacionais divulgando meu romance Desamparo
(Reformatório) durante a Feira do Livro de Frankfurt, maior feira
literária do mundo, mas uma fé gigante nos livros que ando lendo, nas
conversas que ando tendo e na esperança de abrir algum espaço para nós,
escritores brasileiros, no disputado mercado europeu. É importante a literatura brasileira ser arejada
pelos ventos que sopram no norte-nordeste, nas periferias, nas
florestas, nas zonas rurais. É importante que ela seja vista como um
corpo múltiplo de peso e não apenas fruto de um ou outro iluminado que
rompe os muros ocidentais da Europa e Estados Unidos. Por isso foi um
prazer gigante ter feito uma tour literária na Feira de Frankfurt ao
lado do meu irmão-escritor Alexandre Ribeiro, autor do best seller das ruas Reservado
(Miudeza) e ter trombado, no percurso, com mulheres ativistas e
intelectuais maravilhosas como as escritoras afro-brasileiras Waleska
Barbosa e Djamila Ribeiro. Nascida
no sertão de Pernambuco, Micheliny Verunschk criou versão barroca da
história de Santa Teresa (Foto: Divulgação/Itaú Cultural)
Tenho visto literatura excelente sendo escrita por mulheres e homens do sertão, por indígenas, companheirxs da literatura queer,
por gente de quebrada, do interior. Livros épicos, romances históricos,
prosa-poética, contos experimentais. Quando celebro o novo, faço-o com a
consciência de que o novo nem sempre vem dos jovens, mas de artistas
experientes que conquistaram seu espaço ao sol com anos de caminhada
como as escritoras Maria Valéria Rezende e Conceição Evaristo.
Há “uma revolução literária no hemisfério sul” gritou o diário alemão
Frankfurter Rundschau fazendo eco às reportagens do italiano Corriere
della Sera e da RFI francesa, onde eu, saído do extremo-oeste paulista, e
o ultrajovem Alexandre Ribeiro, nascido e criado na Favela da Torre,
nos atrevemos a dar entrevistas. Fiz questão de citar o máximo possível
de autores, ativistas e editoras independentes nessas reportagens. É
pouco, mas é só a ponta do iceberg da melhor literatura que quem está
vivo pode escrever. É por isso que meu mantra segue rezando: leia
autores vivos, compre seu livros, adote suas obras nas escolas e cursos.
Compre os livros que as editoras independentes publicam. Presenteie
seus amigos com livros de autores do seu tempo, adapte suas obras para o
cinema. Acredite, há literatura que pulsa no Brasil. FRED DI GIACOMO ROCHA é escritor e jornalista; autor de Desamparo (Reprodução)
Durante os longos oito anos do governo de Fernando Henrique Cardoso uma
declaração do seu ministro do trabalho ficou famosa: "acabou-se a época
das políticas de pleno emprego". Esta época coincidiu com o aumento
exponencial do desemprego e as tentativas de substituir as intervenções
públicas no mercado de trabalho por uma microeconomia do emprego, com
ajustes pontuais no "mau" funcionamento do mercado de trabalho:
intermediação, qualificação profissional,e políticas compensatórias para
os desempregados.
Segundo o governo tucano, em razão da exaustão do modelo fordista e a
concorrência internacional, os sistemas nacionais de emprego teriam que
lidar com a falta de poupança interna e externa para alavancar o
desenvolvimento econômico e as antigas políticas keynesianas de demanda
teriam de ser substituídas por políticas de oferta: atrair investimentos
estrangeiros com baixa carga tributária e a desregulamentação do
mercado de trabalho. Daí a palavra de ordem: "destruir o legado
varguista". Na acepção tucana, flexibilizar ou desregulamentar as
relações de trabalho e desengessar a justiça do trabalho, acabando com
seu caráter normativo e vinculante. Substituir a rede de proteção
social do trabalhador por políticas de funcionamento do mercado de
trabalho. Trocar a CLT por contratos provisórios
, precários, desregulamentado de trabalho.
O que Fernando Henrique Cardoso tentou, foi
finalmente atingido por Michel Temer e Jair Bolsonaro, praticando uma
modalidade de ultraliberalismo a serviço das empresas e dos empresários.
Mas esse cenário de barbárie e selvageria foi muito ajudado pela nova
morfologia da classe trabalhadora brasileira, pelos info-proletários ou
os trabalhadores da época digital. Diante desse novo quadro, a
flexibilização, desregulamentação e precarização da força de trabalho
foi mais longe do que se imaginava nos anos 90. E contou com a ajuda de
uma perigosa ideologia: a do empreendedorismo. Ou seja, ser patrão de si
mesmo, não ser empregado de ninguém. Some-se a isso a pregação
individualista das igrejas neopentecostais e sua teologia da
prosperidade.
O cenário pós-CLT, que ameaça destruir o Direito
do Trabalho e extinguir a Justiça trabalhista, apresenta duas
modalidades de trabalhadores que parece ter afastado todas as garantias
legais dos trabalhadores e dispensado a indispensável tutela jurídica
das relações de trabalho: os serviços on-demand e o crowdwork.
As palavras podem ser estranhas, mas o seu significado está presente no
cotidiano da população brasileira. Trata-se de trabalhadores
de aplicativo e plataformas digitais (aqueles de bicicleta e bau nas
costas, debaixo do sol) - Uber, Ifood e outras marcas - O segundo são
plataformas de prestação de serviço e de consumo que se comunicam
sozinhas, sem a intermediação de ninguém. Este é o cenário de uma
modalidade de trabalho perverso, precário, sem nenhuma proteção, que ainda faz o trabalhador
imaginar que não tem patrão nem é explorado por ninguém. Uma situação
inédita onde a exploração da força-de-trabalho se disfarça pelo
funcionamento das info-redes e ele não ver quem está do outro lado da
operação.
As consequências desse modelo tanto no que diz
respeito à subjetividade do operário quanto às suas possibilidades de
organização sindical são muito sérias. A captura da subjetividade do
trabalhador, a fragmentação e o isolamento dessa categoria, bem como as
imensas dificuldades de proteção legal desse info-proletariado estão na
mesma proporção do avanço dessa modalidade de trabalho entre os
desempregados, os que complementam sua renda ou simplesmente os que
acham que vão ganhar muito dinheiro com esse trabalho. O desafio para o
Direito do Trabalho e a magistratura laboral para oferecer a sua tutela
jurídica a esses trabalhadores tem sido enorme e está ainda muito longe
de ter encontrado o seu marco legal satisfatório.
Que tem autonomia e liberdade.
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD/UFPE
A escritora polonesa Olga Tokarczuk Friso Gentsch/picture alliance via Getty Images
Tokarczuk, OlgaSobre os ossos dos mortos
TRAD. Olga Bagińska-Shinzato
Todavia • 256 pp • R$ 59,90
Conflitos
internos da Academia Sueca fizeram com que o Nobel de Literatura dado a
Olga Tokarczuk, correspondente ao ano de 2018, só fosse anunciado em
2019. Tida como uma das favoritas ao prêmio, a polonesa nascida em 1962
foi saudada pela “imaginação narrativa” — incluindo aí o “cruzamento de
fronteiras como uma forma de vida”.
Há várias maneiras de interpretar a última afirmação do comitê. Sobre os ossos dos mortos,
publicado originalmente em 2009 e lançado agora no Brasil pela Todavia,
talvez seja o melhor exemplo do modo como demarcações territoriais são
constantemente questionadas na obra de Tokarczuk.
Embora seja uma espécie de romance policial, a
singularidade da narradora, de seus pontos de vista e de seus interesses
sugere uma mistura peculiar de gêneros. Janina Dusheiko é uma mulher
idosa que só bebe chá preto e vive sozinha em um vilarejo isolado na
fronteira com a República Tcheca. Seus dias se dividem entre as
caminhadas pelo lugar, a tradução de poemas de William Blake e as aulas
de inglês para crianças.
Dusheiko não apenas detesta o próprio nome, que
considera um equívoco, como se refere às outras criaturas da maneira que
lhe parece mais conveniente ou apropriada — é o caso de Pé Grande, o
vizinho, encontrado morto ainda nas primeiras páginas do livro. A ele se
seguirão outros homens.
Para a senhora Dusheiko, “chamar as coisas pelo
nome” inclui não só rebatizar os seres conforme a essência de cada um,
mas usar o adjetivo “diabólico” para descrever os postos de caça
espalhados estrategicamente pela região em que vive. Ela enfrenta “um
luto interminável por cada animal morto”. É a uma vingança dos animais
contra a crueldade humana que a senhora Dusheiko atribui as mortes em
sequência. Condene os outros ao inferno, diz, e “o mundo todo se
transforma num inferno”.
“Essa grande matança cruel, insensível, mecânica,
sem nenhum remorso, sem nenhuma pausa para pensar [...]. Que mundo é
esse onde matar e causar dor é tido como algo normal?”, quer saber a
senhora Dusheiko. Os ataques mais devastadores daquilo que ela chama de
suas “moléstias”, e que incluem uma lista extensa de dores e achaques,
são os de lágrimas vertidas sem qualquer controle. As lágrimas limpam,
garante, e são o motivo pelo qual ela enxerga melhor do que todos os
outros.
Outras frequências
É quase como se Janina Dusheiko fosse uma Elizabeth
Costello (a famosa personagem de J. M. Coetzee) menos pretensiosa. O
tom, no entanto, é muito semelhante. “Assim seria o mundo”, diz a
narradora de Tokarczuk ao denunciar o tratamento dado aos animais, “se
os campos de concentração se tornassem algo normal.”
O movimento das duas personagens é bem parecido: ambas tentam se colocar no lugar daqueles outros,
por mais difícil que o exercício possa parecer. Se a intelectual
Costello segue um conhecido texto de filosofia da mente ao questionar
como é ser um morcego, há, talvez, algo de espontâneo na indagação
idêntica da senhora Dusheiko. “Como todos parecemos aqui embaixo quando
somos vistos por seus sentidos?”, pergunta. “Essencialmente”, ela
acredita ter “muito em comum” com os morcegos, já que também enxerga “o
mundo em outras frequências, às avessas”.
Para essa narradora, não podemos ter certeza de nada. Ela acha que a mente é um objeto ‘tênue’ demais
O pulsar em outra frequência e a visão do mundo por
uma espécie de lado avesso são comuns aos personagens de Olga Tokarczuk.
É a essa representação nada inédita — o excêntrico que aparentemente
detém o bom senso que falta ao senso comum — que Tokarczuk fornece
contornos originais, eliminando a ingenuidade. Um sem-número de detalhes
curiosos se combinam para formar uma voz estranha e fascinante. A
senhora Dusheiko diz enxergar tudo como “anormal, horrível e perigoso” e
pressentir “apenas catástrofes”. É provável que venham daí as suas
pequenas batalhas diárias — contra as árvores cortadas, contra os ralis
de carros barulhentos e poluentes— que pareceriam tão banais à maioria.
Tokarczuk venceu o Man Booker Prize em 2018 com a tradução de Bieguni, de 2007, que virou Flights. Uma das primeiras personagens que a narradora viajante de Bieguni encontra é Aleksandra, que também luta pelos direitos dos animais. “O verdadeiro Deus”, diz Aleksandra, “é um animal.”
Diferentemente da senhora Dusheiko, a narradora de Bieguni (que será relançado no Brasil pela Todavia como Viagens)
não consegue ficar muito tempo no mesmo lugar. Sua energia, garante
ela, vem do movimento. Em passagens que variam de poucas linhas a
algumas páginas e que vão do século 16 ao presente, ela tece um
encantador catálogo de histórias e indivíduos, tanto reais quanto
imaginários. Se Sobre os ossos dos mortos questiona as fronteiras que nos separam de outros seres vivos, Viagens questiona todo tipo de fronteira — a começar pelas clássicas do tempo e do espaço.
Lá está, no olhar da narradora de Viagens, a
visão pelo avesso que marca a senhora Dusheiko. O que a faz viajar é a
necessidade de seguir o que chama de “erros” e “enganos” do mundo. Seu
olhar repara no que é desviante, no que é grande ou pequeno demais, no
que não se encaixa. Os gabinetes de curiosidades, os Wunderkammer,
algo a que o produto final do livro acaba por se assemelhar, lhe
interessam desde sempre. Esses gabinetes contêm, afinal, “as coisas que
existem nas sombras da consciência”.
Para essa narradora — uma mulher que gosta de
tricotar quando viaja —, não podemos ter certeza de nada. O mundo não é
para ela “inerte e morto, [nem] governado por leis relativamente
simples”, que podem vir à tona através de experimentos. Ela, que assim
como Tokarczuk estudou psicologia, acha que a mente humana é um objeto
de estudo “tênue” demais.
Já a senhora Dusheiko confia cegamente na
astrologia. Seus mapas astrais são feitos em um computador instalado na
mesa da cozinha. Entre a genética e o movimento dos astros, ela acha que
a diferença reside apenas na escala. A lente da astrologia também acaba
definindo uma característica da própria escrita de Tokarczuk: é quando a
senhora Dusheiko diz que “o mundo é uma grande rede, um todo único, e
não existe nada que esteja isolado”. Mesmo em um livrofragmentado como Viagens há uma uniformidade difícil de ignorar. Hásentido na aleatoriedade; há algo que transcende e destrói certas divisas.
Talvez os livros de Olga Tokarczuk ecoem, ainda,
outra observação da mesma estranha senhora: “Que grande e cheio de vida é
o mundo”.
O (des)governo do senhor Jair Bolsonaro vem se
caracterizando pela ocorrência de inúmeros crimes ambientais, mal
denominados de "desastres ambientais" ou "tragédias ambientais". Ninguém
desconhece o desprezo já manifestado por esse mandatário pela questão
do socioambiental e as políticas de preservação do
meio ambiente.Inspirado num ultraliberalismo selvagem, este governo ver a
preservação dos recursos naturais, as reservas indígenas e as terras
dos quilombolas como meros empecilhos ao desenvolvimento de grandes
negócios, mesmo que isso implique em crime de lesa-pátria ou
lesa-sociedade. Por ele, a amazônia inteira e as terras indígenas seriam
vendidas a preço de banana, na bacia das almas, com ajuda do BNDES.
Dessa forma, não há como deixar de responsabilizar a
administração federal (e seus ministérios competentes) em face dos
crimes ambientais que vêm se sucedendo num triste cortejo, entre nós.
Primeiro, o incêndio da floresta amazônica, hoje já desvendado pela
denúncia de ação concertada e deliberada de uma associação de
produtores, articulada pelas redes sociais, para atear fogo na "hiléia
brasileira", como chamava Gastão Cruz. Vem daí, aliás, as manobras
diversionistas, empregadas por Bolsonaro, de culpar as ONGs e os
ambientalistas pela destruição da flora amazônica. Ou de recusar a ajuda
internacional para combater o incêndio, alegando ser a ajuda uma
afronta à soberania do país. Agora, tão grave como o incêndio, surge
o vazamento de óleo nas praias brasileiras, mais uma vez atribuída ora
ao governo venezuelano ou aos ambientalistas. Como no primeiro caso, já
se sabe que o vazamento do óleo veio do fundo do mar, não da
superfície. E isso em razão do rompimento de uma barreira na exploração
das camadas de petróleo do pré-sal, por empresas estrangeiras, no campo
de Tupy.
Assim, coloca-se a candente questão: a quem cabe a
responsabilidade civil e penal por tal crime ambiental, em nossas
praias? - A sociedade civil e suas organizações não-governamentais? - às
empresas contratadas para fazer a extração do petróleo no fundo do mar?
Ao governo brasileiro e seus órgãos de controle e fiscalização do
meio ambiente? À comunidade internacional?
Naturalmente, que aos bravos militantes que se
voluntariam para cuidar da natureza e reparar os danos a ela, não. Uma
coisa é a consciência ambiental e o nosso papel de preservar a natureza,
inclusive para as gerações futuras. Outra bem diferente é o papel das
empresas privadas - que ganham muito dinheiro - para explorar as nossas
riquezas naturais. Estas são - antes de tudo - os primeiros agentes
responsáveis, tanto do ponto de vista civil como penal, pelo crime
ambiental. Por isso, devem ser processadas, condenadas e obrigadas a
combater o sinistro que provocaram por imperícia, descuido ou má-fé.
Segundo, o governo federal e seus ministros. Trata-se de um crime de
lesa-sociedade nacional. A competência para ajuizar e punir é das
autoridades federais. Não fazê-lo é pecar por grave omissão ou
cumplicidade com as empresas criminosas.
Digo isso, para que não se inverta a responsabilidade
pelos danos ambientais no Brasil. É muito importante a mobilização da
sociedade em defesa da natureza, sobretudo como efeito de demonstração
e formação da opinião pública favorável à preservação do meio ambiente.
Mas ela não tem o poder de polícia, os recursos tecnológicos
necessários, nem o poder econômico para reverter - por si só- uma
agressão tão profunda às nossas praias, aos meios de sobrevivência dos
pescadores e marisqueiras e aos cidadãos e cidadãs em geral. Além do
quê, não é justo deixar impunes os principais responsáveis pelo crime
ambiental. A isso, deve somar-se a opinião pública internacional sobre a
falta de políticas (e fiscalização) sócio-ambiental desse lamentável
(des)governo da república brasileira.
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE
o outro lado da lógica interseccional dirigida contra as minorias está a celebração do homem branco (Foto: Arte Revista Cult)
O Brasil de Bolsonaro não é uma exceção no cenário mundial,
assim, não deve ser reduzido a uma aberração cultural. Pelo contrário, o
Brasil de Bolsonaro é exemplar: ilustra uma deriva populista que afeta
outros países em outras partes do mundo como a Turquia de Erdoğan, a
Hungria de Orban ou as Filipinas de Duterte. Ecoando Vladimir Safatle,
podemos falar de um “laboratório global onde as novas configurações do
neoliberalismo autoritário são testadas, no qual a democracia liberal é
reduzida a uma mera aparência”. Podemos fazer um paralelo com o Chile de
Pinochet que, após o golpe de Estado de 1973, serviu de laboratório
para o neoliberalismo. Em ambos os casos, o chileno e o brasileiro, se
tratou de excluir um partido de esquerda apoiado pelas classes populares
do processo eleitoral (como foi o caso das eleições brasileiras de
2018, o que pode ser constatado nas pesquisas de intenção de voto). De
fato, as classes populares se beneficiaram de políticas inclusivas
colocadas em curso. Segundo o Banco Mundial, entre 2004 e 2014, o Bolsa Família
tirou 28 milhões de brasileiros da pobreza. Paralelamente a isso,
tanto no Chile do passado quanto no Brasil recente, tratou-se também de
se dar lugar aos “Chicago Boys”. No caso brasileiro, a virada neoliberal tardia de Jair Bolsonaro, pode ser resumida na escolha de Paulo Guedes, anunciada ainda durante a campanha, para gerir a pasta da Economia, decisão anunciada já durante a campanha presidencial, o que eu vejo como umas das condições que possibilitou sua chegada ao poder. Forma e estilo políticos É importante, porém, marcar as
diferenças significativas entre a ditadura neoliberal de Pinochet e o
regime de Bolsonaro. Este último se inscreve no que eu chamei de “o
momento neofascista do neoliberalismo”. Em primeiro lugar eles se atém a
diferenças na forma e o estilo da política em cada caso. No caso
brasileiro, tirar o Partido dos Trabalhadores do poder exigiu um duplo golpe: primeiro um golpe parlamentar, com o impeachment de Dilma em 2016, e depois um golpe judicial, proibindo Lula,
o favorito da pesquisa, de concorrer às eleições presidenciais de 2018.
Contudo, tudo isso é muito diferente dos golpes militares que vimos no
Chile em 1973, ou no Brasil em 1964. Agora não vemos mais tanques nas
ruas. Como quando assistimos à crise econômica na Grécia, momento no
qual a hashtag #ThisIsACoup denunciou a imposição dos valores da Europa
financeira ao governo de Syriza, numa fórmula que se pautou pela lógica:
“bancos sim, tanques não”. O mesmo, penso, valeu para o Brasil – mesmo
que Bolsonaro, capitão do exército, reivindique fortemente o legado da ditadura militar,
incluindo tortura e assassinatos, como bem salientou a historiadora
francesa Maud Chirio. De minha parte resumi essa manobra na fórmula:
“Voto sim, coturnos não” (ver artigo Un coup d’État démocratique. Du
49-3 à Nuit Debout). Dois anos depois, em 2018, nas ações contra Lula, foram juízes e não mais os carrascos
de outros tempos aqueles que o tiraram do páreo. Propus chamar esse
duplo golpe de Estado institucional (que matou dois coelhos com uma
cajadada), de um “golpe de Estado democrático”. Um golpe contra a
democracia, dentro do jogo democrático. Dar uma aparência democrática ao
golpe foi importante: por um lado, foi possível enganar os observadores,
como evidenciado por um editorial constrangedor no Le Monde
em 2016: “Brasil: isto não é um golpe de Estado”. Por outro lado, essa
aparência democrática, permitiu que os neofascistas de hoje invertessem
antigas estratégias retóricas apropriando-se, como se passou na França,
do léxico da Resistência, como na França ocupada durante a II
Guerra, transformando em “colaboradores”, aqueles e aquelas que
procuram assegurar direitos às minorias políticas, de modo que agora já
só denunciam a democracia, mas reivindicam-na em nome do povo. Em segundo lugar, ainda me referindo à
forma e ao estilo político, os ditadores dos anos 1970 eram sérios, até
sombrios. A sua gravidade obscura parecia anunciar esquadrões da morte…
hoje, o que domina é a figura do bufão. Parece que o bobo da corte e o
rei são agora a mesma coisa. Como num espelho deformado da dignidade de
Dilma ou Lula, o estilo grotesco de Bolsonaro lembra Donald Trump,
Matteo Salvini ou Boris Johnson. Esse novo estilo populista deixa
transparecer um desprezo pelo povo: é como se eles, o povo, estivesse
fadado à vulgaridade. Mas esse estilo é, sobretudo, um gesto político.
Por um lado, temos uma política de repugnância: o Presidente do Brasil
não hesitou em tweetar, condenando o carnaval, imagens que mostravam um homem urinando sobre outro.
Por outro lado, o que esse estilo mostra é uma recusa à política
democrática. O citado vídeo lembrou uma gravação na qual Trump é acusado
de ter pago prostitutas para fazer “chuva dourada” na cama onde Barack
Obama e sua esposa dormiriam em Moscou… A política da repugnância e a política como repugnante se confundem. Pensemos no ensaio sobre o “ridículo político” publicado em 2017 por Marcia Tiburi.
A filósofa analisa a “berlusconização” do discurso político, ou para
retomar seu neologismo, a “ridicularização”: pois não se trata apenas de
mentir (fake news) mas também não ter pudor de proferir disparates (mais do que dizer “besteira”, é dizer “bullshit”,
nas palavras do filósofo americano Harry Frankfurt ou, em bom
português: “falar merda”). As derivas escatológicas de um Trump ou de um
Bolsonaro são a confirmação literal disso que estou tentando
argumentar. Nessa (escato)lógica, o presidente dos Estados Unidos
descreve países africanos e o Haiti, fontes de emigração, como “países
de merda”, enquanto o presidente brasileiro, ao apelar a um, não menos
racista, “controle de natalidade”, propõe, como medida ecológica, “fazer
cocô a cada dois dias”… As duas lógicas convergem, usa-se uma linguagem
do nojo para tornar nojenta a linguagem. Juntas, significam um ódio à
política democrática, que também se manifesta no disfarce democrático
dos atuais golpes de Estado. Ressentimento político As diferenças entre o laboratório
brasileiro e o chileno, entre nosso momento neofascista e as ditaduras
dos anos 1970, não param na forma e no estilo. Eles vão mais fundo, quer
dizer, envolvem também o conteúdo do discurso e as políticas que
acompanham esses discursos. É claro que as questões de classe permanecem
fundamentais: a deriva autoritária é uma reação contra as mobilizações
políticas das classes trabalhadoras e as transformações sociais que
estas provocam. No caso do Brasil, isso fica claro em 2013, quando a
Emenda Constitucional 72, mais conhecida como PEC das Domésticas,
estendeu a legislação trabalhista vigente às empregadas domésticas,
limitando as horas de trabalho e garantindo que elas recebessem horas
extras e adicional noturno. As classes médias, que encararam esse
progresso social como uma espécie de perda de “direitos”, tiveram um
papel decisivo nos protestos contra o Partido dos Trabalhadores. O mesmo
se deu em relação às viagens aéreas que já não eram uma exclusividade
da burguesia, e que passaram a ser acessíveis também às classes
populares. A democratização foi vista como uma ameaça aos privilégios de
classe. Isto tudo lembra a indignação causada pelas medidas sociais de
Salvador Allende no Chile: é como se as medidas a favor das classes
populares fossem o mesmo que prejudicar as classes médias. No meu ensaio “Populismo e o
ressentimento em tempos neoliberais”, tentei analisar esse tipo de
política, baseadas no medo da perda de privilégios. Pois, como analiso,
não se trata apenas de um anti-elitismo, como é o caso dos populistas de
esquerda (povo x elite). Como salienta John B. Judis, com razão, “os
populistas de direita defendem o povo contra uma elite a qual acusam de
de proteger um terceiro grupo constituído por imigrantes, muçulmanos e
militantes negros. O populismo de esquerda é binário. O populismo de
direita é ternário. Esse populismo ternário olha para cima, mas também
para baixo, mas também na direção de grupos de excluídos”. Essas duas
formas raivosas levam a efeitos diferentes. É importante distinguir
entre os efeitos mobilizados com sucesso pela extrema direita e aqueles
que a esquerda espera poder suscitar – como indignação generosa que a
injustiça desperta. O ressentimento é uma “paixão triste”, como disse Espinoza.
A verdadeira força motriz da indignação é “a ideia de que existem
outros que estão gozando em meu lugar; se eu não gozo, se eu não
desfruto, é por causa deles”. E essa raiva frustrante se transforma ele
mesma em gozo”. Em outras palavras, é uma reação, não às desigualdades,
mas ao avanço da igualdade. É aqui que entra o ressentimento, não dos
“perdedores” da globalização, como a gente gosta de acreditar, mas
daqueles que, independentemente de seu sucesso ou fracasso, culpam o
fato de que outros, que não merecem, estarem se dando melhor. É assim
que podemos entender a raiva contra as minorias, contra as mulheres, mas
também contra os “necessitados”. O que o populismo de direita detesta
mais que a “gentalha”, quer dizer, aqueles pobres que só merecem o pouco
que têm, ou melhor, que não merecem nada – são “burgueses
intelectualizados”, a “esquerda caviar”, aqueles que têm além de
diplomas universitários, a arrogância de não perceber que o capital
cultural que compõe seu patrimônio, só tem valor para eles, ou seja,
aqueles que podem perder a pose, mas não perdem a soberba. “(Populismo: o
grande ressentimento, 2017, citações pp. 76 e 70). Apostar na miséria
popular não é só reduzir, indevidamente, as classes populares ao voto
populista e, simetricamente, o voto populista às classes populares.
Significa ainda recusar a reconhecer as classes populares como compostas
por verdadeiros sujeitos políticos – para o bem ou para o mal.
Considerar as classes populares como meras vítimas é negar-lhes qualquer
capacidade de agência (agency). Assassinato
de Marielle Franco é um trágico símbolo do neofascismo que coloca em
prática a interseccionalidade (Foto Bárbara Dias/Fotoguerrilha)Valores neoliberais O ressentimento neoliberal hoje em
dia não concerne exclusivamente às relações de classe, ele toca na
política de identidade. No Brasil, como em muitos outros países, dos
Estados Unidos à Rússia, da Hungria à Itália, vimos, na década de 2010,
o crescimento não apenas dos movimentos sociais reacionários, como na
França; assistimos ainda o surgimento da cruzada lançada pelo Vaticano e
de verdadeiras campanhas de políticas anti-gênero
em nível governamental e, portanto, de políticas de Estado, na Europa,
mas também na América Latina e mundo a fora. Em contrapartida, vimos
“populistas de direita”, aos quais eu prefiro chamar neofascistas,
fazerem campanha sexistas e homofóbicas. Trump, por exemplo, não tinha
revelado seu sexismos, em seu aspecto mais chocante, até à divulgação da
gravação em que ele se gaba de “pegar mulheres pela xana” (pussy grabbing).
Longe de enfraquecer o apoio a ele, esse tipo de declaração reforçou
esse apoio, como? Da mesma forma, Bolsonaro não sofreu com as
declarações sexistas e homofóbicas que fez. Ao invés disso elas
mobilizam ainda mais seu eleitorado, justamente porque elas conseguiram
chocar a odiada “esquerda caviar”. A campanha de rumores totalmente
descabidos sobre a distribuição do suposto “kit gay”
nas escolas, ecoa campanhas semelhantes que ocorreram na França entre
2010 e 2014, o que mostra que este é um tipo de estratégia política
deliberada. O que isso tudo tem a ver com o neoliberalismo?
Podemos supor que o anti-intelectualismo que incentiva ataques contra a
(suposta) “teoria de gênero” e promove a defesa do “senso comum” (este é
também o nome de um movimento católico que lutou contra a abertura do
casamento para casais do mesmo sexo na França), assume seu pleno
significado em um mundo neoliberal. Podemos pensar, por exemplo, nos
ataques violentos contra a filósofa Judith Butler enquanto sua esfinge era queimada em São Paulo,
em 2017. De fato, este anti-intelectualismo é o que torna possível
dirigir o ódio populista das elites somente para as elites culturais –
como se o verdadeiro privilégio, longe de ser econômico, fosse sobretudo
cultural. Em outras palavras, no exato momento em que o capital
cultural está perdendo sua importância relativa em relação ao capital
econômico, é a retórica que permite substituir o primeiro pelo segundo.
As ameaças à liberdade acadêmica hoje, sobretudo à filosofia e às
ciências sociais, confirmam que o neoliberalismo está muito bem adaptado
ao anti-intelectualismo que ataca o pensamento crítico. Podemos mesmo ir mais longe: a reação
sexual desempenha agora um papel crucial no sistema neoliberal. O fato
de Paulo Guedes ter visto a necessidade de redobrar os insultos sexistas
de Jair Bolsonaro contra Brigitte Macron nos dá uma indicação precisa
disso: a política sexual e a política econômica andam, hoje em dia, de
mãos dadas. Esta é a tese central do livro de Melinda Cooper sobre a
relação entre o neoliberalismo e o novo conservadorismo moral: “valores
familiares” (para usar o título) são tão econômicos quanto culturais.
Pensar no capitalismo neoliberal, portanto, nos convida a ir além da
distinção entre políticas redistributivas e políticas de reconhecimento
(para usar o vocabulário de Nancy Fraser). Longe de se oporem, como a
esquerda muitas vezes acreditou, a moralidade e o mercado andam de mãos
dadas nesse novo sistema político. Se lança mão de uma forma de
privatizar a ordem social, forma esta que se baseia cada vez mais, na
responsabilidade individual e familiar, e não no Estado. Este livro que
acabo de citar, inspirou a cientista política Wendy Brown a pensar na
“ascensão das políticas antidemocráticas no Ocidente”, numa revisão de
suas análises anteriores sobre o “pesadelo americano”, ou seja, a levou a
repensar a aliança antinatural entre os partidários do neoliberalismo e
os defensores da reação moral: não estaríamos, pelo contrário, na
origem mesmo do projeto revisionista capitalista, como atesta a obra de
Friedrich Hayek? A fúria do homem branco No Brasil, podemos, portanto, falar
de um laboratório sexual do neoliberalismo. Vale dizer que se trata
também de um laboratório racial. O racismo teve um papel decisivo na
carreira de Trump: foi desafiando a nacionalidade de Barack Obama, o
primeiro presidente negro cuja certidão de nascimento ele exigiu ver,
que Trump se tornou uma figura política. Esta posição foi então
confirmada pelos seus ataques ao comparar mexicanos a estupradores, pelo
“Muslim ban”
que fecha a porta aos refugiados dos países muçulmanos e pelo seu apoio
declarado aos supremacistas brancos. O mesmo se aplica a Bolsonaro.
Basta citar apenas uma única frase extraída de suas entrevistas: “o
racismo é uma coisa rara no Brasil”. Frase que nega de forma radical a
existência de discriminação racial no Brasil além de não reconhecer as
desigualdades econômicas que dela resultam, nem a violência racista, particularmente da polícia militar contra a população negra, não é preciso citar as outras para deixar claro sua posição nesse debate.
E ele ainda acrescenta: “Dizem que sou homofóbico, racista, fascista,
xenófobo, mas mesmo assim eu ganhei a eleição”. De fato, como mostra o
mapa eleitoral, o voto bolsonarista foi mais forte no Sul e mais fraco no Nordeste:
o primeiro é majoritariamente branco, enquanto o segundo não. Bem, isso
para não mencionar o tratamento dos povos indígenas da Amazônia… Classe, gênero e raça: o laboratório
neoliberal é, claramente falando, interseccional. Isto fica evidente nos
muitos populistas autoritários, começando por Trump e Bolsonaro. De
fato, o assassinato de Marielle Franco,
uma mulher negra, ativista lésbica, da favela e comprometida com a luta
contra a discriminação e a desigualdade, que apareceu
retrospectivamente como o prenúncio da eleição que ocorreu seis meses
depois, é um trágico símbolo: o neofascismo põe em prática a
interseccionalidade – invertendo, de forma perversa, o seu objetivo
emancipatório. Cabe aos seus adversários aprender com isso… pois o outro
lado desta lógica interseccional dirigida contra as minorias está o seu
contrário: a celebração do homem branco. Mais uma vez, de Trump a
Bolsonaro (mas isto se aplica também à família Le Pen na França, e a
tantos outros “populistas de direita”), o que vemos, de fato, é uma
política de ressentimento. Tudo acontece como se efetivamente
essas políticas neofascistas fizessem da figura do homem branco de
classe média, os chamados “cidadãos de bem”, a verdadeira vítima, ao
invés daqueles e daquelas que “se fazem de vítimas”, ou seja, as
minorias políticas. Tem-se promovido o sentimento de que outros gozam
indevidamente deste “vantajoso” estatuto de vítima, seja sob o pretexto
de sua pobreza, mas também por sofrerem racismo, sexismo ou homofobia.
Em suma, através da magia do ressentimento, reverte-se a hierarquia do
privilégio: os dominantes são vistos como dominados, e os primeiros
podem acreditar que são os últimos… Compreendemos assim a eficácia desta
política neofascista que movimenta valores morais, culturais e
identitários, colocando-os coração do atual sistema neoliberal: para se
mobilizarem contra a igualdade, numa era de desigualdade, eles põem em
jogo os efeitos inscritos nos corpos a partir de um discurso que fala
não só de classe, mas também de gênero e raça. A sua força reside no
fato de nutrir o ressentimento populista, alimentando em todas as
classes, populares ou não, o medo de perder pequenos ou grandes
privilégios para outros, seja o proletariado ou as minorias políticas,
que já não aceitam mais permanecer em lugar forçosamente inferior.
TRADUÇÃO LARISSA PELÚCIO ÉRIC FASSIN é professor do Laboratório de Estudos de gênero e Sexualidade – Universidade Paris 8. Lança, em novembro, o livro Populismo e ressentimento em tempos neoliberais, pela editora da Uerj