pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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domingo, 8 de dezembro de 2019

Michel Zaidan Filho: Impressões de leitura sobre o neopentecostalismo




Li, com muito interesse e acuidade, o artigo de Magali Nascimento Cunha sobre “a hegemonia neopentecostal” no Brasil. As cifras apresentadas por ela são impressionantes e sua influência social, cultural e política considerável. Pergunta ela: o que têm em comum o pastor Waldomiro, o bispo Edir Macedo, seu cunhado R.R. Soares, Silas Malafaia e o casal Hernandez?


Naturalmente, a crença em comum numa espécie de teologia fundamentalista e fundada numa religião da prosperidade que faz os incautos, crédulos e desesperados a se agarrar a uma pregação religiosa de natureza retributiva (ganhas na medida em que tu dás) e   na Lei de Talião (do Velho Testamento). Sem esses componentes, estes ramos populares do Cristianismo reformado não teriam prosperado no Brasil, depois do recuo das pastorais e comunidades eclesiais de base da Igreja católica. Perdeu-se uma Igreja dos oprimidos, dos pobres e humildes, nas periferias miseráveis das grandes cidades. A imensa vala aberta pelas políticas neoliberais em nosso país só deixou como alternativa a pregação desses pastores fundamentalistas e individualistas, inspirados no modelo americano do American Dream”.  

Neste ponto, o livro do bispo da Igreja metodista “Educação Religiosa e Petismo”,  Geoval Jacinto da Silva  parece ser muito esclarecedor sobre o sentido da recepção abastardada e conservadora do  pentecostalismo trazida por missionários norte-americanos ,entre nós. Tal recepção deixou para trás os conteúdos dogmáticos originais e tornou-se um mero canal de “self-made man”, através de uma ética puritana, abstemia e diligente, que coloca toda a responsabilidade das desigualdades sociais nas costas do “crente”, rejeitando a pobreza, a solidariedade e qualquer tipo de crítica social. A cultura ética e individualista desse ramo pentecostal e neopentecostal faz recair sobre os ombros de cada indivíduo a culpa pela sua desgraça, como uma nova espécie de pegado original, e o sentido do apelo religioso é para que trabalhe, trabalhe e acumule bens, sem se preocupar com os outros ou o Estado.  Ser virtuoso é ser rico, próspero e bem sucedido na vida. Ser pecaminoso é ser pobre ou miserável.


Não foi à-toa que os milhões de votos que deram a vitória a Jair Bolsonaro saíram desses círculos cristãos, avessos a qualquer discurso socializante ou mesmo protetivo em relação aos mais pobres. Esta teologia da prosperidade casou à perfeição com a ideologia neoliberalismo desse governo dos ricos, demonizando os partidos de esquerda e toda ética da solidariedade.

Imagine-se o uso instrumental pelo governo de um discurso religioso como esse? Que junta fundamentalismo e individualismo e se aproxima perigosamente do darwinismo social.

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia. 




quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Charge! Benett via Folha de São Paulo

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A hegemonia pentecostal no Brasil

  Magali do Nascimento Cunha

A hegemonia pentecostal no Brasil
Frame do vídeo “Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo, mas tudo sobrou ou foi pouco – não sei qual – e eu sofri”, Roberta Goldfarb, 2014 (Foto: Reprodução)

Bispo Edir Macedo, missionário R. R. Soares, apóstolo Estevam Hernandes, pastor Silas Malafaia, bispo Valdemiro Santiago, pastora Damares Alves, apóstolo Rina, pastor Marco Feliciano, apóstola Valnice Milhomens, pastora Cassiane. O que essas lideranças religiosas, destacadas por mídias brasileiras, têm em comum? São pentecostais, o segmento religioso cristão que mais se expandiu, numérica e geograficamente, no Brasil nas últimas décadas. Hoje, compreender o pentecostalismo é imprescindível para quem se interessa pelas dinâmicas socioculturais e políticas que envolvem o país.
O pentecostalismo é uma das ramificações evangélicas formada por uma variedade de grupos, desde grandes igrejas, como a Assembleia de Deus (que também tem suas divisões), até pequenas denominações de uma única congregação, como a Igreja Evangélica Pentecostal Maná do Céu, em São Vicente (SP), e tantas outras vistas Brasil afora.
Evangélicos pentecostais e neopentecostais
O segmento evangélico é bastante diverso. Tem origem na Reforma Protestante do século 16 que abriu caminho para o surgimento de luteranos, congregacionais, presbiterianos, batistas, metodistas, anglicanos. No século 20, surgiram os pentecostais, expressão de um movimento de protesto contra o racismo e o classismo nas Igrejas, e de afirmação da população negra, migrante, feminina e pobre nos Estados Unidos. 
Os primeiros evangélicos chegaram ao Brasil por meio de missionários estadunidenses, na primeira metade do século 19. A identidade “protestante” nunca foi bem afirmada por boa parte deles, que sempre optaram por se denominar “evangélicos”, reforçando disputas religiosas com o histórico catolicismo romano ao colocarem-se como detentores “do verdadeiro Evangelho”.
Atualmente, o grupo mais significativo desse mosaico religioso são os pentecostais. Representam a maior fatia numérica (são cerca de 60% dos evangélicos, segundo o Censo de 2010), com presença geográfica importante, ocupação de espaço nas mídias tradicionais (rádio e TV) e intensa atuação na política partidária. 
O que diferencia evangélicos pentecostais dos históricos é a crença no segundo batismo, uma experiência mística atribuída à ação do Espírito Santo, que leva os fiéis a falarem línguas estranhas como sinal de sua presença. Essa ação do Espírito Santo também atribui dons especiais, como profecia e cura pela oração. 
Missionários trouxeram o pentecostalismo ao Brasil na primeira década do século 20 e se estabeleceram no Pará (suecos, Assembleia de Deus) e em São Paulo (estadunidenses, Congregação Cristã do Brasil e Evangelho Quadrangular). A partir dos anos 1950, com os intensos movimentos migratórios do campo para as cidades e o processo de industrialização do país, surgiram as Igrejas pentecostais fundadas por brasileiros, como a Casa da Bênção, a Brasil para Cristo, a Deus é Amor, entre outras. Várias delas tiveram em programas de rádio um importante apoio para disseminar sua fé. 
A ação pentecostal no país é historicamente marcada por presença mais voltada à população empobrecida e às periferias das cidades. Essa prática tornou possível maior enraizamento nas culturas populares, com lugar garantido para a emoção e expressões corporal e musical, ainda que marcada por um puritanismo de restrições morais e culturais. Isso deu aos grupos pentecostais condições de consolidação nos espaços religiosos e crescimento numérico mais expressivo. 
Mas o boom pentecostal, de fato, ocorreu a partir da década de 1980 e transformou significativamente o perfil do segmento evangélico brasileiro. Essa expansão tão marcante tem alicerces nas transformações do mundo naquele período. Foi o momento dos processos de derrocada do socialismo, simbolizado pela queda do Muro de Berlim, e a consolidação do capitalismo globalizado e da cultura do mercado, baseados na lógica da plena realização do ser humano pela posse de produtos e serviços e pelo acesso à tecnologia da informática. 
Grupos cristãos estadunidenses adequaram seu discurso à nova ordem mundial e criaram a Teologia da Prosperidade. Ela foi abraçada por uma parcela de pentecostais brasileiros que passou a pregar que as bênçãos de Deus, na forma de prosperidade material (posse de finanças, saúde e felicidade na família), são concedidas aos fiéis que se empenham nas práticas de devoção aliadas às ofertas em dinheiro às igrejas. A elas também é destinada a prosperidade, por meio de amplo número de fiéis, ocupação geográfica, aquisição de patrimônio e influência no espaço público. Os estudiosos da religião dizem que se trata de uma relação de troca com Deus, bem própria do clima social estabelecido pelo mercado neoliberal. 
Como essa noção de prosperidade também tem a dimensão da saúde plena, as propostas de cura se amplificaram, bem como se intensificaram as práticas de exorcismo contra os males (demônios) que impedem a felicidade. Isso representou um reprocessamento de elementos da matriz religiosa brasileira com a farta (re)utilização de símbolos e representações do catolicismo e de religiões de terreiros.
Cura, exorcismo e prosperidade tornaram-se marcas de uma nova forma de pentecostalismo, que deixava de enfatizar a necessidade de restrições de cunho moral e cultural para que se alcançasse a bênção divina. 
Esse pentecostalismo se expandiu no Brasil pelos anos 1990 e 2000, com a formação de um sem-número de igrejas. Estudiosos da religião denominam essa expressão religiosa de neopentecostalismo, ao qual estão vinculadas as Igrejas Universal do Reino de Deus, Internacional da Graça de Deus, Renascer em Cristo, Mundial do Poder de Deus, Sara Nossa Terra, Bola de Neve, entre as maiores, somadas a inúmeras igrejas autônomas. 
O crescimento pentecostal passou a exercer influência decisiva sobre o modo de ser das demais Igrejas cristãs. A influência se concretizou de maneira especial no reforço aos grupos chamados “avivalistas” ou “de renovação carismática”, que têm similaridade de propostas e posturas com o pentecostalismo e que, em busca de crescimento numérico, passaram a conquistar espaços importantes na prática religiosa das Igrejas chamadas históricas, incluindo a Católica.
Mídias, política e mercado
O neopentecostalismo não significa a superação do pentecostalismo clássico do início do século 20. Pelo contrário, a Assembleia de Deus consolidou-se como a maior denominação pentecostal, e é também a maior Igreja Evangélica do Brasil, em termos numéricos e geográficos, com suas grandes e pequenas divisões em “ministérios”. A Congregação Cristã do Brasil, a Evangelho Quadrangular, a Deus é Amor e a Brasil para Cristo continuam a ter presença significativa em todas as regiões do país.
Entretanto, os grupos neopentecostais ganharam intensa visibilidade por conta da ocupação das mídias tradicionais, como rádio e TV, e dos projetos de participação política. 
Na virada para o século 21, pastores e líderes neopentecostais tornaram-se empresários de mídia e detentores do que se poderia chamar “verdadeiros impérios” no campo da comunicação, buscando competir até mesmo com empresas não religiosas historicamente consolidadas (caso das Universal do Reino de Deus, Renascer em Cristo e Internacional da Graça de Deus). Chegou ao ponto de alguns desses grupos religiosos já nascerem midiáticos, isto é, a interação com as mídias passaram a fazer parte de sua própria razão de ser. 
Ao mesmo tempo, as grandes mídias (seculares) assimilam essa atmosfera e passam a produzir programas, ou parcelas deles, para disputar a audiência evangélica: espaço para a música cristã contemporânea (“gospel”) e seus artistas; patrocínio de festivais e megaeventos de rua; veiculação de programas de entretenimento com temática religiosa (inclusive com a concepção de personagens para telenovelas e criação das próprias telenovelas bíblicas).
A tudo isso se conecta o crescimento de um mercado da religião. Os cristãos tornam-se um segmento de mercado com produtos e serviços especialmente desenhados para atender às suas necessidades religiosas, sejam de consumo de bens, sejam de lazer e entretenimento. Passou a ser possível encontrar produtos os mais variados, como roupas, cosméticos, doces, viagens, filmes e jogos com marcas formadas por slogans de apelo religioso, versículos bíblicos ou, simplesmente, o nome de Jesus. A Igreja Católica passou a seguir a mesma trilha.
A maior presença dos evangélicos no campo da política partidária é parte desse contexto. Desde o Congresso Constituinte de 1986 e a formação da primeira bancada evangélica e seus desdobramentos, a máxima “crente não se mete em política” foi sepultada. A máxima passou a ser “irmão vota em irmão”.
A atuação daquela primeira bancada no Congresso Constituinte (1986-1989) foi marcada por fisiologismo e pela histórica farta distribuição de estações de rádio e canais de TV aos deputados evangélicos (determinante para a ampliação da presença de pentecostais nas mídias). 
Depois de altos e baixos numéricos, decorrentes de casos de corrupção e fisiologismo nas legislaturas pós-Congresso Constituinte, a bancada evangélica consolidou-se como força a partir dos anos 2000, chegando a alcançar 92 parlamentares (88 deputados e 4 senadores) em 2014, e nas eleições de 2018, 94 (85 deputados e 9 senadores), sendo os pentecostais uma força hegemônica.
trabalho de Roberta Goldfarb - frame do vídeo VI TODAS AS COISAS, E MARAVILHEI-ME DE TUDO, MAS TUDO OU SOBROU OU FOI POUCO - NÃO SEI QUAL - E EU SOFRI / 2014
Frame do vídeo “Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo, mas tudo sobrou ou foi pouco – não sei qual – e eu sofri”, Roberta Goldfarb, 2014 (Foto: Reprodução)
Essa potência solidificou-se na última década e meia, muito especialmente por conta da força de duas Igrejas Evangélicas que concretizaram, desde 1986, projetos de ocupação da política institucional do país: as Assembleias de Deus (AD) e a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Ambas passaram a ocupar, depois de 2003, espaços plenos de poder em partidos (respectivamente o Partido Social Cristão, PSC, e o Partido Republicano Brasileiro, PRB), maior quantidade de deputados e senadores no Congresso, conquistas de cargos públicos, como as nomeações de ministros de Estado de Dilma Rousseff (dois da IURD) e de Michel Temer (dois da IURD), e lançaram dois candidatos à Presidência da República (Marina Silva e pastor Everaldo, ambos da AD). A IURD conseguiu ainda eleger o bispo, ex-senador e ex-ministro Marcelo Crivella como prefeito da cidade do Rio de Janeiro (2016). 
Além disso, dois fatos impulsionaram o poder pentecostal na política. Um deles foi a inusitada nomeação do deputado Marco Feliciano (hoje, Podemos, o PODE/SP) como presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, em 2013. Ela culminou no revigoramento de campanhas por legislação pautada pela moralidade sexual religiosa, sob o rótulo “Defesa da Família Tradicional”, contra movimentos feministas e LGBTI, em aliança com a bancada católica. Essas pautas encontraram eco na população conservadora não religiosa e reforçaram movimentos reacionários às conquistas de direitos alcançadas nas últimas duas décadas.
Outro fato foi a eleição do deputado federal pentecostal Eduardo Cunha (Movimento Democrático Brasileiro, MDB/RJ) à presidência da Câmara dos Deputados, em 2015. Representou um poder sem precedentes para a bancada evangélica e facilitou tanto a defesa das pautas descritas aqui como a abertura à concessão de privilégios a Igrejas no espaço público. A prisão e a cassação do deputado, em 2016, não afetou significativamente as conquistas políticas da bancada.
Tanto a IURD como a AD ofereceram amplo apoio à eleição de Jair Bolsonaro à Presidência da República em 2018, acompanhadas por outras denominações pentecostais, no rastro das propostas conservadoras apresentadas por ele. Bolsonaro candidatou-se à Presidência com um discurso identificado como cristão, marcadamente evangélico conservador, embora declarando-se católico. Nesse contexto, a bancada evangélica se fortaleceu como interlocutora do novo governo e ganhou representantes nos ministérios da Casa Civil (Onyx Lorenzoni) e da Mulher, Família e Direitos Humanos (pastora Damares Alves), com fiéis alocados em cargos estratégicos no Ministério da Educação. 
Para refletir
Esse quadro retrata a ampliação da visibilidade pública alcançada pelos evangélicos no Brasil nas últimas décadas, por conta da hegemonia (neo)pentecostal. 
É um fenômeno que marca o momento sociopolítico e cultural do país, em que os evangélicos se colocam na arena como bloco organicamente articulado. Eles não são mais “os crentes” ou os grupos fechados de outrora; desenvolvem uma cultura “da vida normal” que combina a religião com presença nas mídias, no mercado, no entretenimento e na política. Um segmento religioso que se vê fortalecido como parcela social que tem suas próprias reivindicações e pode eleger seus próprios representantes para os espaços de poder público. 
MAGALI DO NASCIMENTO CUNHA é doutora em Ciências da Comunicação pela USP, integrante da Associação Internacional Mídia, Religião e Cultura e da Associação Mundial de Comunicação Cristã

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

terça-feira, 26 de novembro de 2019

Michel Zaidan Filho: Forte e submisso

  •                                                
     
     
     
    O Partido dos Trabalhadores apresenta, em Pernambuco, um quadro paradoxal: é um partido forte, consolidado, com representantes nos três níveis de governo, mas ao mesmo tempo submisso à hegemonia política da oligarquia pernambucana Campos/Arraes. Não quero falar do outro Partido que integra a aliança governista, pois este já abdicou faz muito tempo de qualquer veleidade de autonomia ou liderança política, conformando-se em ser mero coadjuvante da coligação ora no poder. O problema da falta de autonomia do PT foi explicado pelo ex-vereador (hoje secretário) Dilson Peixoto como tendo o partido uma estratégia nacional e Pernambuco não poderia ficar de fora, qual seja: a eleição de um candidato petista à Presidência da República e o indispensável apoio do PSB a esta candidatura. Foi o que se deu entre nós, com o sacrifício da candidatura da hoje deputada Marília Arraes.

    As imagens que circularam pelas redes sociais, mostrando Lula de braços dados ou com os bracos levantados, ora com Marília Arraes ora beijando o filho de Eduardo Campos parecem reeditar a mesma história da eleição passada: com uma mão, Lula acena para a militância petista entusiasmada com a possibilidade de o partido ter candidatura própria, com a outra parece selar um acordo de cúpula com os herdeiros do legado político eduardista. Afinal, teremos a reedição dessa nefasta aliança, com o sacrifício - outra vez - de uma candidatura petista que vem se mostrando viável e competitiva?

    É de se lamentar - e muito - essa duplicidade de atitudes. O pragmatismo em política sem seus limites: não só numa ética das convicções ideológicas ou programáticas, mas nos compromissos assumidos publicamente com o povo. Como é possível continuar acendendo uma vela para Deus, e outra para o Diabo? - Seja qual for o projeto (ou estratégia) nacional do Partido dos Trabalhadores e seu candidato às eleições presidenciais de 2022, o PSB será levado pela força da gravidade a apoiar o PT; não é necessário que determinadas lideranças regionais lulistas e arraesistas entreguem numa bandeja a cabeça de um projeto de autonomia polítoco-partidária no estado, e os demais companheiros digam "amém", "amém".

    Se quisermos romper com esse circulo infernal da reprodução do poder oligárquico em Pernambuco é preciso ousar, ter coragem de abrir uma via própria para a esquerda passar, mesmo que isto custe mandatos, cargos e eleições. No início, o PT foi capaz de fazer isso. Por que agora não consegue mais? - Será que a idade da razão (ou do acomodamento político-institucional) chegou nas cabeças de alguns líderes locais da agremiação partidária? - É tão importante assim ocupar uma secretaria sem importância ou um mandato senatorial em troca de um verdadeiro projeto de hegemonia política em Pernambuco? - Considero isso não só uma pequena política, mas sobretudo uma traição aos compromissos democráticos e populares assumidos historicamente com a sociedade. 
     
    Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Das bordas do Brasil nasce uma revolução literária no hemisfério sul

 

Das bordas do Brasil nasce uma revolução literária no hemisfério sul
Descendente de negros e indígenas, o baiano Itamar Vieira Jr é autor de 'Torto arado', publicado pela Todavia (Foto: Valdizio Soares)

Quando o poeta cearense Mailson Furtado, nascido e criado na cidade de Varjota, sertão nordestino, ganhou o Prêmio Jabuti de livro do ano em 2018 com À cidade, uma obra que não tinha editora e fora bancada com recursos próprios, ficou claro que algo estava mudando na literatura brasileira. Maílson, grande vencedor do mais prestigiado prêmio literário brasileiro, era um artista periférico, nascido em uma família pobre e sem conexões com o establishment da literatura nacional. No mesmo ano, o baiano Itamar Vieira Jr, descendente de negros e indígenas, abocanhou 100 mil euros do Prêmio Leya com seu romance Torto arado (Todavia), que contava a história de duas irmãs quilombolas envolvidas em conflitos agrários no sertão baiano. Ainda em 2018, Raimundo Neto, autor homossexual, nascido no sertão do Piauí, fora agraciado com o Prêmio Paraná de Literatura com o excelente livro de contos Todo esse amor que inventamos para nós, protagonizado por gays, travestis e outras personagens LGBTQ+.
Dois anos antes, Micheliny Verunschk, nascida no sertão de Pernambuco, já havia sido agraciada com o Prêmio São Paulo de Literatura por sua versão barroca da história de Teresa, uma santa popular suicida cultuada no nordeste brasileiro. Em comum, esses quatro autores nordestinos, ponta de lança de um movimento literário maior que eclode na década de 2010, tinham o fato de virem de fora dos centros de poder do Brasil, serem parte de grupos discriminados, produzirem uma literatura épica e poética e não terem começado suas carreiras apadrinhados por grandes editoras.
Até então, a literatura brasileira dos anos da redemocratização e da chamada Nova República tinha cara, gênero e classe social: era dominada por autores homens, brancos, “não-jovens”, ricos e heterossexuais nascidos nos grandes centros urbanos da regiões sul-sudeste do país. Seu estilo muitas vezes privilegiava a autoficção e sua temática estava mais focada nos dramas internos e no fluxo psicológico do que em grandes acontecimentos ou na narrativa romanesca tradicional. A oposição binária a isso seria a “literatura periférica/marginal” dos artistas das favelas brasileiras, também vindos dos grandes centros urbanos do sudeste e, muitas vezes, produzindo prosa autobiográfica e protagonizada por homens heterossexuais. Exceção feita para a mineira Ana Maria Gonçalves, escritora afro-brasileira, e seu Um defeito de cor (2006), espécie de madrinha espiritual desta geração que escreve “histórias de dimensão épica e sobre um Brasil profundo” como definiu o escritor Krishna Monteiro, ele próprio um autor negro, nascido no interior do Paraná e cujo livro de estreia O que não existe mais (Tordesilhas) foi finalista do Prêmio Jabuti.
Esta premiada literatura “neoregionalista” (título problemático, pois foge da universalidade buscada pelos autores citados e flerta com uma hierarquia de que só se é universal quando central) aparenta romper com os padrões colonialistas e europeus pelos quais a prosa brasileira vinha enveredando. É literatura produzida fora dos grandes centros urbanos, nas regiões de sertão, por membros pouco representados e periféricos da sociedade brasileira (negros, mulheres, pobres, homossexuais e indígenas) e que rejeita a exclusividade do binarismo “periferia urbana – centro urbano”, apresentando uma pluralidade de regiões, sotaques, cores e perspectivas de um país continental. Verunschk reflete sobre isso em entrevista na Revista Pessoa para a escritora Paula Fábrio – ela também vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura pelo elogiado Desnorteio (Patuá): “Não somos a Europa. Nossas combinações, arranjos, nossos modos de pensar são inclusivos, não-binários, vertiginosos. O nosso design pode se esforçar pela brancura escandinava, mas somos outra coisa, somos a estátua de murta, de que falava o padre Antonio Vieira em um dos seus sermões. Não podemos ser mármore, porque nasce um broto onde deveria ser um olho, um galho fora de ordem onde deveria ser um braço.”
Quando observamos os premiados romances de Verunschk e Vieira Jr, especificamente, notamos uma identidade brasileira moderna, mas com raízes fincadas nas tradições e particularidades do continente latino-americano, atualizando para o século 21 o legado de artistas de língua portuguesa como Guimarães Rosa, Glauber Rocha, João Cabral de Melo Neto e do luso José Saramago. É marcante também a presença do jarê, religião afro-brasileira, em Torto arado, de Vieira Jr, (cuja última parte é narrada por uma entidade) e da religiosidade popular devota de santos “leigos” em Nossa Teresa: vida e morte de uma santa suicida (Patuá), de Verunschk. Essa espiritualidade mágica remete ao realismo fantástico latino-americano (da qual Verunschk se diz admiradora de Borges e Vieira Jr. de García Marquez), mas parece avançar para uma representação menos exótica e mais genuína, alinhando-se ao perspectivismo ameríndio teorizado por Viveiros de Castro e lido, na prática, no livro A queda do céu (Cia das Letras) do xamã yanomami David Kopenawa, outro grande marco literário decolonialista da década de 2010.
Foi por tudo isso que cravei com gosto a frase: “A literatura brasileira vive seu melhor momento nos últimos 50 anos” no jornal alemão Frankfurter Rundschau e na rádio francesa RF1. Não era só a empolgação caipira de dar entrevistas internacionais divulgando meu romance Desamparo (Reformatório) durante a Feira do Livro de Frankfurt, maior feira literária do mundo, mas uma fé gigante nos livros que ando lendo, nas conversas que ando tendo e na esperança de abrir algum espaço para nós, escritores brasileiros, no disputado mercado europeu. É importante a literatura brasileira ser arejada pelos ventos que sopram no norte-nordeste, nas periferias, nas florestas, nas zonas rurais. É importante que ela seja vista como um corpo múltiplo de peso e não apenas fruto de um ou outro iluminado que rompe os muros ocidentais da Europa e Estados Unidos. Por isso foi um prazer gigante ter feito uma tour literária na Feira de Frankfurt ao lado do meu irmão-escritor Alexandre Ribeiro, autor do best seller das ruas Reservado (Miudeza) e ter trombado, no percurso, com mulheres ativistas e intelectuais maravilhosas como as escritoras afro-brasileiras Waleska Barbosa e Djamila Ribeiro.
Micheliny Verunschk
Nascida no sertão de Pernambuco, Micheliny Verunschk criou versão barroca da história de Santa Teresa (Foto: Divulgação/Itaú Cultural)
Tenho visto literatura excelente sendo escrita por mulheres e homens do sertão, por indígenas, companheirxs da literatura queer, por gente de quebrada, do interior. Livros épicos, romances históricos, prosa-poética, contos experimentais. Quando celebro o novo, faço-o com a consciência de que o novo nem sempre vem dos jovens, mas de artistas experientes que conquistaram seu espaço ao sol com anos de caminhada como as escritoras Maria Valéria Rezende e Conceição Evaristo.
Há “uma revolução literária no hemisfério sul” gritou o diário alemão Frankfurter Rundschau fazendo eco às reportagens do italiano Corriere della Sera e da RFI francesa, onde eu, saído do extremo-oeste paulista, e o ultrajovem Alexandre Ribeiro, nascido e criado na Favela da Torre, nos atrevemos a dar entrevistas. Fiz questão de citar o máximo possível de autores, ativistas e editoras independentes nessas reportagens. É pouco, mas é só a ponta do iceberg da melhor literatura que quem está vivo pode escrever. É por isso que meu mantra segue rezando: leia autores vivos, compre seu livros, adote suas obras nas escolas e cursos. Compre os livros que as editoras independentes publicam. Presenteie seus amigos com livros de autores do seu tempo, adapte suas obras para o cinema. Acredite, há literatura que pulsa no Brasil.

FRED DI GIACOMO ROCHA é escritor e jornalista; autor de Desamparo (Reprodução)

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Michel Zaidan Filho: O fim e as metamorfoses do emprego

quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Olga Tokarczuk e o Nobel tardio

Ganhadora do Nobel de Literatura, escritora polonesa traz personagens excêntricas em um mundo onde matar e causar dor é algo normal
Camila von Holdefer 23out2019 19h15
 
A escritora polonesa Olga Tokarczuk Friso Gentsch/picture alliance via Getty Images
Tokarczuk, Olga Sobre os ossos dos mortos
TRAD. Olga Bagińska-Shinzato
Todavia • 256 pp • R$ 59,90
Conflitos internos da Academia Sueca fizeram com que o Nobel de Literatura dado a Olga Tokarczuk, correspondente ao ano de 2018, só fosse anunciado em 2019. Tida como uma das favoritas ao prêmio, a polonesa nascida em 1962 foi saudada pela “imaginação narrativa” — incluindo aí o “cruzamento de fronteiras como uma forma de vida”.
Há várias maneiras de interpretar a última afirmação do comitê. Sobre os ossos dos mortos, publicado originalmente em 2009 e lançado agora no Brasil pela Todavia, talvez seja o melhor exemplo do modo como demarcações territoriais são constantemente questionadas na obra de Tokarczuk.
Embora seja uma espécie de romance policial, a singularidade da narradora, de seus pontos de vista e de seus interesses sugere uma mistura peculiar de gêneros. Janina Dusheiko é uma mulher idosa que só bebe chá preto e vive sozinha em um vilarejo isolado na fronteira com a República Tcheca. Seus dias se dividem entre as caminhadas pelo lugar, a tradução de poemas de William Blake e as aulas de inglês para crianças.
Dusheiko não apenas detesta o próprio nome, que considera um equívoco, como se refere às outras criaturas da maneira que lhe parece mais conveniente ou apropriada — é o caso de Pé Grande, o vizinho, encontrado morto ainda nas primeiras páginas do livro. A ele se seguirão outros homens.
Para a senhora Dusheiko, “chamar as coisas pelo nome” inclui não só rebatizar os seres conforme a essência de cada um, mas usar o adjetivo “diabólico” para descrever os postos de caça espalhados estrategicamente pela região em que vive. Ela enfrenta “um luto interminável por cada animal morto”. É a uma vingança dos animais contra a crueldade humana que a senhora Dusheiko atribui as mortes em sequência. Condene os outros ao inferno, diz, e “o mundo todo se transforma num inferno”.
“Essa grande matança cruel, insensível, mecânica, sem nenhum remorso, sem nenhuma pausa para pensar [...]. Que mundo é esse onde matar e causar dor é tido como algo normal?”, quer saber a senhora Dusheiko. Os ataques mais devastadores daquilo que ela chama de suas “moléstias”, e que incluem uma lista extensa de dores e achaques, são os de lágrimas vertidas sem qualquer controle. As lágrimas limpam, garante, e são o motivo pelo qual ela enxerga melhor do que todos os outros.

Outras frequências

É quase como se Janina Dusheiko fosse uma Elizabeth Costello (a famosa personagem de J. M. Coetzee) menos pretensiosa. O tom, no entanto, é muito semelhante. “Assim seria o mundo”, diz a narradora de Tokarczuk ao denunciar o tratamento dado aos animais, “se os campos de concentração se tornassem algo normal.”
O movimento das duas personagens é bem parecido: ambas tentam se colocar no lugar daqueles outros, por mais difícil que o exercício possa parecer. Se a intelectual Costello segue um conhecido texto de filosofia da mente ao questionar como é ser um morcego, há, talvez, algo de espontâneo na indagação idêntica da senhora Dusheiko. “Como todos parecemos aqui embaixo quando somos vistos por seus sentidos?”, pergunta. “Essencialmente”, ela acredita ter “muito em comum” com os morcegos, já que também enxerga “o mundo em outras frequências, às avessas”.

Para essa narradora, não podemos ter certeza de nada. Ela acha que a mente é um objeto ‘tênue’ demais

O pulsar em outra frequência e a visão do mundo por uma espécie de lado avesso são comuns aos personagens de Olga Tokarczuk. É a essa representação nada inédita — o excêntrico que aparentemente detém o bom senso que falta ao senso comum — que Tokarczuk fornece contornos originais, eliminando a ingenuidade. Um sem-número de detalhes curiosos se combinam para formar uma voz estranha e fascinante. A senhora Dusheiko diz enxergar tudo como “anormal, horrível e perigoso” e pressentir “apenas catástrofes”. É provável que venham daí as suas pequenas batalhas diárias — contra as árvores cortadas, contra os ralis de carros barulhentos e poluentes— que pareceriam tão banais à maioria.
Tokarczuk venceu o Man Booker Prize em 2018 com a tradução de Bieguni, de 2007, que virou Flights. Uma das primeiras personagens que a narradora viajante de Bieguni encontra é Aleksandra, que também luta pelos direitos dos animais. “O verdadeiro Deus”, diz Aleksandra, “é um animal.”
Diferentemente da senhora Dusheiko, a narradora de Bieguni (que será relançado no Brasil pela Todavia como Viagens) não consegue ficar muito tempo no mesmo lugar. Sua energia, garante ela, vem do movimento. Em passagens que variam de poucas linhas a algumas páginas e que vão do século 16 ao presente, ela tece um encantador catálogo de histórias e indivíduos, tanto reais quanto imaginários. Se Sobre os ossos dos mortos questiona as fronteiras que nos separam de outros seres vivos, Viagens questiona todo tipo de fronteira — a começar pelas clássicas do tempo e do espaço.
Lá está, no olhar da narradora de Viagens, a visão pelo avesso que marca a senhora Dusheiko. O que a faz viajar é a necessidade de seguir o que chama de “erros” e “enganos” do mundo. Seu olhar repara no que é desviante, no que é grande ou pequeno demais, no que não se encaixa. Os gabinetes de curiosidades, os Wunderkammer, algo a que o produto final do livro acaba por se assemelhar, lhe interessam desde sempre. Esses gabinetes contêm, afinal, “as coisas que existem nas sombras da consciência”.
Para essa narradora — uma mulher que gosta de tricotar quando viaja —, não podemos ter certeza de nada. O mundo não é para ela “inerte e morto, [nem] governado por leis relativamente simples”, que podem vir à tona através de experimentos. Ela, que assim como Tokarczuk estudou psicologia, acha que a mente humana é um objeto de estudo “tênue” demais.
Já a senhora Dusheiko confia cegamente na astrologia. Seus mapas astrais são feitos em um computador instalado na mesa da cozinha. Entre a genética e o movimento dos astros, ela acha que a diferença reside apenas na escala. A lente da astrologia também acaba definindo uma característica da própria escrita de Tokarczuk: é quando a senhora Dusheiko diz que “o mundo é uma grande rede, um todo único, e não existe nada que esteja isolado”. Mesmo em um livrofragmentado como Viagens há uma uniformidade difícil de ignorar. Hásentido na aleatoriedade; há algo que transcende e destrói certas divisas.
Talvez os livros de Olga Tokarczuk ecoem, ainda, outra observação da mesma estranha senhora: “Que grande e cheio de vida é o mundo”. 

Michel Zaidan Filho: A responsabilidade civil e penal pelos crimes ambientais

Brasil: o laboratório interseccional do neoliberalismo

  

Brasil: o laboratório interseccional do neoliberalismo

o outro lado da lógica interseccional dirigida contra as minorias está a celebração do homem branco (Foto: Arte Revista Cult)

O Brasil de Bolsonaro não é uma exceção no cenário mundial, assim, não deve ser reduzido a uma aberração cultural. Pelo contrário, o Brasil de Bolsonaro é exemplar: ilustra uma deriva populista que afeta outros países em outras partes do mundo como a Turquia de Erdoğan, a Hungria de Orban ou as Filipinas de Duterte. Ecoando Vladimir Safatle, podemos falar de um “laboratório global onde as novas configurações do neoliberalismo autoritário são testadas, no qual a democracia liberal é reduzida a uma mera aparência”. Podemos fazer um paralelo com o Chile de Pinochet que, após o golpe de Estado de 1973, serviu de laboratório para o neoliberalismo. Em ambos os casos, o chileno e o brasileiro, se tratou de excluir um partido de esquerda apoiado pelas classes populares do processo eleitoral (como foi o caso das eleições brasileiras de 2018, o que pode ser constatado nas pesquisas de intenção de voto). De fato, as classes populares se beneficiaram de políticas inclusivas colocadas em curso. Segundo o Banco Mundial, entre 2004 e 2014, o Bolsa Família tirou 28 milhões de brasileiros da pobreza.  Paralelamente a isso, tanto no Chile do passado quanto no Brasil recente, tratou-se também de se dar lugar aos “Chicago Boys”. No caso brasileiro, a virada neoliberal tardia de Jair Bolsonaro, pode ser resumida na escolha de Paulo Guedes, anunciada ainda durante a campanha, para gerir a pasta da Economia, decisão anunciada já durante a campanha presidencial, o que eu vejo como umas das condições que possibilitou sua chegada ao poder.
Forma e estilo políticos
É importante, porém, marcar as diferenças significativas entre a ditadura neoliberal de Pinochet e o regime de Bolsonaro. Este último se inscreve no que eu chamei de “o momento neofascista do neoliberalismo”. Em primeiro lugar eles se atém a diferenças na forma e o estilo da política em cada caso. No caso brasileiro, tirar o Partido dos Trabalhadores do poder exigiu um duplo golpe: primeiro um golpe parlamentar, com o impeachment de Dilma em 2016, e depois um golpe judicial, proibindo Lula, o favorito da pesquisa, de concorrer às eleições presidenciais de 2018. Contudo, tudo isso é muito diferente dos golpes militares que vimos no Chile em 1973, ou no Brasil em 1964. Agora não vemos mais tanques nas ruas. Como quando assistimos à crise econômica na Grécia, momento no qual a hashtag #ThisIsACoup denunciou a imposição dos valores da Europa financeira ao governo de Syriza, numa fórmula que se pautou pela lógica: “bancos sim, tanques não”. O mesmo, penso, valeu para o Brasil – mesmo que Bolsonaro, capitão do exército, reivindique fortemente o legado da ditadura militar, incluindo tortura e assassinatos, como bem salientou a historiadora francesa Maud Chirio. De minha parte resumi essa manobra na fórmula: “Voto sim, coturnos não” (ver artigo Un coup d’État démocratique. Du 49-3 à Nuit Debout).  Dois anos depois, em 2018, nas ações contra Lula, foram juízes e não mais os carrascos de outros tempos aqueles que o tiraram do páreo. Propus chamar esse duplo golpe de Estado institucional (que matou dois coelhos com uma cajadada), de um “golpe de Estado democrático”. Um golpe contra a democracia, dentro do jogo democrático. 
Dar uma aparência democrática ao golpe foi importante: por um lado, foi possível enganar os observadores, como evidenciado por um editorial constrangedor no Le Monde em 2016: “Brasil: isto não é um golpe de Estado”. Por outro lado, essa aparência democrática, permitiu que os neofascistas de hoje invertessem antigas estratégias retóricas apropriando-se, como se passou na França, do léxico da Resistência, como na França ocupada durante a II Guerra, transformando em “colaboradores”, aqueles e aquelas que procuram assegurar direitos às minorias políticas, de modo que agora já só denunciam a democracia, mas reivindicam-na em nome do povo.
Em segundo lugar, ainda me referindo à forma e ao estilo político, os ditadores dos anos 1970 eram sérios, até sombrios. A sua gravidade obscura parecia anunciar esquadrões da morte… hoje, o que domina é a figura do bufão. Parece que o bobo da corte e o rei são agora a mesma coisa.  Como num espelho deformado da dignidade de Dilma ou Lula, o estilo grotesco de Bolsonaro lembra Donald Trump, Matteo Salvini ou Boris Johnson. Esse novo estilo populista deixa transparecer um desprezo pelo povo: é como se eles, o povo, estivesse fadado à vulgaridade. Mas esse estilo é, sobretudo, um gesto político. Por um lado, temos uma política de repugnância: o Presidente do Brasil não hesitou em tweetar, condenando o carnaval, imagens que mostravam um homem urinando sobre outro. Por outro lado, o que esse estilo mostra é uma recusa à política democrática. O citado vídeo lembrou uma gravação na qual Trump é acusado de ter pago prostitutas para fazer “chuva dourada” na cama onde Barack Obama e sua esposa dormiriam em Moscou…
A política da repugnância e a política como repugnante se confundem. Pensemos no ensaio sobre o “ridículo político” publicado em 2017 por Marcia Tiburi. A filósofa analisa a “berlusconização” do discurso político, ou para retomar seu neologismo, a “ridicularização”: pois não se trata apenas de mentir (fake news) mas também não ter pudor de proferir disparates (mais do que dizer “besteira”, é dizer “bullshit”, nas palavras do filósofo americano Harry Frankfurt ou, em bom português: “falar merda”). As derivas escatológicas de um Trump ou de um Bolsonaro são a confirmação literal disso que estou tentando argumentar. Nessa (escato)lógica, o presidente dos Estados Unidos descreve países africanos e o Haiti, fontes de emigração, como “países de merda”, enquanto o presidente brasileiro, ao apelar a um, não menos racista, “controle de natalidade”, propõe, como medida ecológica, “fazer cocô a cada dois dias”… As duas lógicas convergem, usa-se uma linguagem do nojo para tornar nojenta a linguagem. Juntas, significam um ódio à política democrática, que também se manifesta no disfarce democrático dos atuais golpes de Estado.
Ressentimento político
As diferenças entre o laboratório brasileiro e o chileno, entre nosso momento neofascista e as ditaduras dos anos 1970, não param na forma e no estilo. Eles vão mais fundo, quer dizer, envolvem também o conteúdo do discurso e as políticas que acompanham esses discursos. É claro que as questões de classe permanecem fundamentais: a deriva autoritária é uma reação contra as mobilizações políticas das classes trabalhadoras e as transformações sociais que estas provocam. No caso do Brasil, isso fica claro em 2013, quando a Emenda Constitucional 72, mais conhecida como PEC das Domésticas, estendeu a legislação trabalhista vigente às empregadas domésticas, limitando as horas de trabalho e garantindo que elas recebessem horas extras e adicional noturno. As classes médias, que encararam esse progresso social como uma espécie de perda de “direitos”, tiveram um papel decisivo nos protestos contra o Partido dos Trabalhadores. O mesmo se deu em relação às viagens aéreas que já não eram uma exclusividade da burguesia, e que passaram a ser acessíveis também às classes populares. A democratização foi vista como uma ameaça aos privilégios de classe. Isto tudo lembra a indignação causada pelas medidas sociais de Salvador Allende no Chile: é como se as medidas a favor das classes populares fossem o mesmo que prejudicar as classes médias.
No meu ensaio “Populismo e o ressentimento em tempos neoliberais”, tentei analisar esse tipo de política, baseadas no medo da perda de privilégios. Pois, como analiso, não se trata apenas de um anti-elitismo, como é o caso dos populistas de esquerda (povo x elite). Como salienta John B. Judis, com razão, “os populistas de direita defendem o povo contra uma elite a qual acusam de de proteger um terceiro grupo constituído por imigrantes, muçulmanos e militantes negros. O populismo de esquerda é binário. O populismo de direita é ternário. Esse populismo ternário olha para cima, mas também para baixo, mas também na direção de grupos de excluídos”.  Essas duas formas raivosas levam a efeitos diferentes. É importante distinguir entre os efeitos mobilizados com sucesso pela extrema direita e aqueles que a esquerda espera poder suscitar – como indignação generosa que a injustiça desperta. O ressentimento é uma “paixão triste”, como disse Espinoza. A verdadeira força motriz da indignação é “a ideia de que existem outros que estão gozando em meu lugar; se eu não gozo, se eu não desfruto, é por causa deles”. E essa raiva frustrante se transforma ele mesma em gozo”. Em outras palavras, é uma reação, não às desigualdades, mas ao avanço da igualdade. É aqui que entra o ressentimento, não dos “perdedores” da globalização, como a gente gosta de acreditar, mas daqueles que, independentemente de seu sucesso ou fracasso, culpam o fato de que outros, que não merecem, estarem se dando melhor. É assim que podemos entender a raiva contra as minorias, contra as mulheres, mas também contra os “necessitados”. O que o populismo de direita detesta mais que a “gentalha”, quer dizer, aqueles pobres que só merecem o pouco que têm, ou melhor, que não merecem nada – são “burgueses intelectualizados”, a “esquerda caviar”, aqueles que têm além de diplomas universitários, a arrogância de não perceber que o capital cultural que compõe seu patrimônio, só tem valor para eles, ou seja, aqueles que podem perder a pose, mas não perdem a soberba. “(Populismo: o grande ressentimento, 2017, citações pp. 76 e 70). Apostar na miséria popular não é só reduzir, indevidamente, as classes populares ao voto populista e, simetricamente, o voto populista às classes populares. Significa ainda recusar a reconhecer as classes populares como compostas por verdadeiros sujeitos políticos – para o bem ou para o mal. Considerar as classes populares como meras vítimas é negar-lhes qualquer capacidade de agência (agency).
Assassinato de Marielle Franco é um trágico símbolo do neofascismo que coloca em prática a interseccionalidade (Foto Bárbara Dias/Fotoguerrilha)
Valores neoliberais
O ressentimento neoliberal hoje em dia não concerne exclusivamente às relações de classe, ele toca na política de identidade. No Brasil, como em muitos outros países, dos Estados Unidos à Rússia, da Hungria à Itália, vimos, na década de 2010,  o crescimento não apenas dos movimentos sociais reacionários, como na França; assistimos ainda o surgimento da cruzada lançada pelo Vaticano e de verdadeiras campanhas de políticas anti-gênero em nível governamental e, portanto, de políticas de Estado, na Europa, mas também na América Latina e mundo a fora. Em contrapartida, vimos “populistas de direita”, aos quais eu prefiro chamar neofascistas, fazerem campanha sexistas e homofóbicas. Trump, por exemplo, não tinha revelado seu sexismos, em seu aspecto mais chocante, até à divulgação da gravação em que ele se gaba de “pegar mulheres pela xana” (pussy grabbing). Longe de enfraquecer o apoio a ele, esse tipo de declaração reforçou esse apoio, como? Da mesma forma, Bolsonaro não sofreu com as declarações sexistas e homofóbicas que fez. Ao invés disso elas mobilizam ainda mais seu eleitorado, justamente porque elas conseguiram chocar a odiada “esquerda caviar”. A campanha de rumores totalmente descabidos sobre a distribuição do suposto “kit gay” nas escolas, ecoa campanhas semelhantes que ocorreram na França entre 2010 e 2014, o que mostra que este é um tipo de estratégia política deliberada.
O que isso tudo tem a ver com o neoliberalismo? Podemos supor que o anti-intelectualismo que incentiva ataques contra a (suposta) “teoria de gênero” e promove a defesa do “senso comum” (este é também o nome de um movimento católico que lutou contra a abertura do casamento para casais do mesmo sexo na França), assume seu pleno significado em um mundo neoliberal. Podemos pensar, por exemplo, nos ataques violentos contra a filósofa Judith Butler enquanto sua esfinge era queimada em São Paulo, em 2017. De fato, este anti-intelectualismo é o que torna possível dirigir o ódio populista das elites somente para as elites culturais – como se o verdadeiro privilégio, longe de ser econômico, fosse sobretudo cultural. Em outras palavras, no exato momento em que o capital cultural está perdendo sua importância relativa em relação ao capital econômico, é a retórica que permite substituir o primeiro pelo segundo. As ameaças à liberdade acadêmica hoje, sobretudo à filosofia e às ciências sociais, confirmam que o neoliberalismo está muito bem adaptado ao anti-intelectualismo que ataca o pensamento crítico.
Podemos mesmo ir mais longe: a reação sexual desempenha agora um papel crucial no sistema neoliberal. O fato de Paulo Guedes ter visto a necessidade de redobrar os insultos sexistas de Jair Bolsonaro contra Brigitte Macron nos dá uma indicação precisa disso: a política sexual e a política econômica andam, hoje em dia, de mãos dadas. Esta é a tese central do livro de Melinda Cooper sobre a relação entre o neoliberalismo e o novo conservadorismo moral: “valores familiares” (para usar o título) são tão econômicos quanto culturais. Pensar no capitalismo neoliberal, portanto, nos convida a ir além da distinção entre políticas redistributivas e políticas de reconhecimento (para usar o vocabulário de Nancy Fraser). Longe de se oporem, como a esquerda muitas vezes acreditou, a moralidade e o mercado andam de mãos dadas nesse novo sistema político. Se lança mão de uma forma de privatizar a ordem social, forma esta que se baseia cada vez mais, na responsabilidade individual e familiar, e não no Estado. Este livro que acabo de citar, inspirou a cientista política Wendy Brown a pensar na “ascensão das políticas antidemocráticas no Ocidente”, numa revisão de suas análises anteriores sobre o “pesadelo americano”, ou seja, a levou a repensar a aliança antinatural entre os partidários do neoliberalismo e os defensores da reação moral: não estaríamos, pelo contrário, na origem mesmo do projeto revisionista capitalista, como atesta a obra de Friedrich Hayek?
A fúria do homem branco
No Brasil, podemos, portanto, falar de um laboratório sexual do neoliberalismo. Vale dizer que se trata também de um laboratório racial. O racismo teve um papel decisivo na carreira de Trump: foi desafiando a nacionalidade de Barack Obama, o primeiro presidente negro cuja certidão de nascimento ele exigiu ver, que Trump se tornou uma figura política. Esta posição foi então confirmada pelos seus ataques ao comparar mexicanos a estupradores, pelo “Muslim ban” que fecha a porta aos refugiados dos países muçulmanos e pelo seu apoio declarado aos supremacistas brancos. O mesmo se aplica a Bolsonaro. Basta citar apenas uma única frase extraída de suas entrevistas: “o racismo é uma coisa rara no Brasil”. Frase que nega de forma radical a existência de discriminação racial no Brasil além de não reconhecer as desigualdades econômicas que dela resultam, nem a violência racista, particularmente da polícia militar contra a população negra, não é preciso citar as outras para deixar claro sua posição nesse debate. E ele ainda acrescenta: “Dizem que sou homofóbico, racista, fascista, xenófobo, mas mesmo assim eu ganhei a eleição”. De fato, como mostra o mapa eleitoral, o voto bolsonarista foi mais forte no Sul e mais fraco no Nordeste: o primeiro é majoritariamente branco, enquanto o segundo não. Bem, isso para não mencionar o tratamento dos povos indígenas da Amazônia…
Classe, gênero e raça: o laboratório neoliberal é, claramente falando, interseccional. Isto fica evidente nos muitos populistas autoritários, começando por Trump e Bolsonaro. De fato, o assassinato de Marielle Franco, uma mulher negra, ativista lésbica, da favela e comprometida com a luta contra a discriminação e a desigualdade, que apareceu retrospectivamente como o prenúncio da eleição que ocorreu seis meses depois, é um trágico símbolo: o neofascismo põe em prática a interseccionalidade – invertendo, de forma perversa, o seu objetivo emancipatório. Cabe aos seus adversários aprender com isso… pois o outro lado desta lógica interseccional dirigida contra as minorias está o seu contrário: a celebração do homem branco. Mais uma vez, de Trump a Bolsonaro (mas isto se aplica também à família Le Pen na França, e a tantos outros “populistas de direita”), o que vemos, de fato, é uma política de ressentimento. 
Tudo acontece como se efetivamente essas políticas neofascistas fizessem da figura do homem branco de classe média, os chamados “cidadãos de bem”, a verdadeira vítima, ao invés daqueles e daquelas que “se fazem de vítimas”, ou seja, as minorias políticas.  Tem-se promovido o sentimento de que outros gozam indevidamente deste “vantajoso” estatuto de vítima, seja sob o pretexto de sua pobreza, mas também por sofrerem racismo, sexismo ou homofobia. Em suma, através da magia do ressentimento, reverte-se a hierarquia do privilégio: os dominantes são vistos como dominados, e os primeiros podem acreditar que são os últimos… 
Compreendemos assim a eficácia desta política neofascista que movimenta valores morais, culturais e identitários, colocando-os coração do atual sistema neoliberal: para se mobilizarem contra a igualdade, numa era de desigualdade, eles põem em jogo os efeitos inscritos nos corpos a partir de um discurso que fala não só de classe, mas também de gênero e raça. A sua força reside no fato de nutrir o ressentimento populista, alimentando em todas as classes, populares ou não, o medo de perder pequenos ou grandes privilégios para outros, seja o proletariado ou as minorias políticas, que já não aceitam mais permanecer em lugar forçosamente inferior. TRADUÇÃO LARISSA PELÚCIO

ÉRIC FASSIN é professor do Laboratório de Estudos de gênero e Sexualidade – Universidade Paris 8. Lança, em novembro, o livro Populismo e ressentimento em tempos neoliberais, pela editora da Uerj

Charge! Benett via Folha de São Paulo

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