pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Editorial: O PL irá "cristianizar" Jair Bolsonaro?


Como afirmamos em editoriais anteriores, os neologismos são comuns no vocabulário político brasileiro. "Cristianizar" é um desses neologismos, lembrado pelo jornalista Ricardo Rangel, em artigo publicado por uma revista de circulação nacional. Diz respeito a um caso de traição política, perpetrado pelo partido PSD, em 1950, cuja vítima foi o candidato Cristiano Machado. Percebe-se, claramente, haver um jogo de grandes escaramuças nessa relação entre o presidente Jair Bolsonaro(Sem Partido) e Valdemar da Costa Neto, presidente do Partido Liberal. 

A rigor, não há consenso construído entre ambos, mas um arranjo possível, diante das dificuldades encontradas nessa relação. É mais ou menos a mesma situação daquele casal que percebeu estar numa relação exaurida, mas prefere salvar as aparências, em nome de alguma conveniência ou para preservar os filhos. Para Valdemar da Costa Neto, no momento, é oportuna essa aliança, pois o presidente tem caneta e dotes, e, ainda, pode contribuir para ampliar a bancada do partido, que almeja alcançar 60 deputados federais nas próximas eleições, tornando a segunda maior bancada da Câmara dos Deputados. 

O presidente, por sua vez, além de precisar de uma legenda para viabilizar seu projeto de continuar como inquilino do Palácio do Planalto, promove um rearranjo ou "acomodação" das forças bolsonaristas em alguns Estados da Federação, como São Paulo e Pernambuco. Em tese, recebeu o aval de Valdemar da Costa Neto de que teria "carta branca" para intervir. Não vai permitir que o PL alie-se aos inimigos do bolsonarismo. Numa postagem a parte, discutiremos como fica a questão do prefeito Anderson Ferreira(PL), aqui em Pernambuco, que já teria firmado alianças com os tucanos. 

Como disse no início, o jogo é pesado e repleto de escaramuças, o que sugere termos a devida clareza da situação para não incorrermos em conclusões precipitadas. Não há conciliação e, muito menos, juras de amor eterno entre ambos. É só uma questão de tempo para ambos perceberam que tal situação de instabilidade e conflitos intermitentes não seria saudável para ninguém. O PL trabalha com algumas variáveis, uma notória habilidade de negociações e um "cálculo político' preciso. Resta saber se o presidente entendeu toda a dinâmica deste jogo, assim como se possui algum coringa, caso precise usá-la. E não seria nada improvável que ele precisará usá-la.  

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Editorial : A repercussão da viagem de Lula à Europa.

 

Repercute bastante a viagem que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva(PT-SP) realiza pelo continente europeu. Tem conversado com transeuntes; recebido com honras de chefe de Estado, na França; aplaudido de pé no Parlamento Europeu; participado de debates importantes para o mundo. Há quem diga que os grandes jornais do país não estão dando a cobertura devida à viagem de Lula à Europa, mas, para quem acompanhou o noticiário dos últimos dias, informo que o tradicional Jornal Nacional abriu um espaço para tratar deste assunto. E, como se sabe, o Jornal Nacional ainda continua como um bom parâmetro para analisar a cobertura da mídia sobre determinados assuntos. Para o bem ou para o mal, não é incomum as expectativas que se formam na opinião pública em torno de como determinados assunto foram abordados no jornal da família Marinho.  

Importantes revistas de circulação nacional também tem abordado bastante esta viagem. Por outro lado, as próprias redes sociais se encarregam, hoje, de disseminar alguns fatos, mesmo quando eles são ignorados por alguma mídia mais tradicional. De forma que consideramos a cobertura bastante razoável. Outro dado positivo é que - salvo na torcida do time adversário - não li nada desfavorável sobre este assunto. Até porque, o ex-presidente está sendo muito bem recebido pelos amigos europeus. Lula está do lado certo, da defesa da vida, do meio ambiente, do combate à fome, ao desemprego, do direito à educação.Isso ajuda bastante. Emocionante aquele seu encontro com uma aluna do Benin, país africano, que, hoje, faz doutorado na França, mas havia estudado Ciência Política no Brasil, graças ao amplo programa de expansão e interiorização de IFES e Institutos Técnicos, o que facultou amplas oportunidades educacionais no país durante o seu governo. Neste caso, ela ainda carrega o emblema de ser da raça negra, aqueles mais beneficiados por tais programas. 

Salvo os ajustes necessários na sua política de alianças - com o propósito de disputar mais uma vez as eleições presidenciais do próximo ano - Lula encontra-se em céu de brigadeiro.Vai muito bem nas pesquisas de intenção de voto, conforme discutimos por aqui em outro editorial, de acordo com a última pesquisa do Instituto Vox Populi. Abriu mais de 20 pontos sobre o seu principal oponente, uma vantagem bastante razoável. Ainda há uma grande expectativa acerca do comportamento do eleitorado em relação ao pelotão da terceira-via. Há uma eleitorado robusto, mas que ainda não escolheu seu candidato, a despeito das inúmeras opções que já se lançaram ou desejam fazê-lo. A viabilidade de um candidato da terceira via poderia mudar tal cenário de franco favoritismo do candidato do Partido dos Trabalhadores.  

Mais uma vez não custa repetir que pesquisa de inteção de voto reflete uma fotografia de um determinado momento. É bastante elucidativa uma pérola de reflexão de uma raposa política mineira, Magalhães Pinto, que se aplica à realidade das pesquisas. Política é como as nuvens. Ora elas estão de um jeito, ora estão de outro. Parecia improvável, por exemplo, uma reconciliação entre o presidente Jair Bolsonaro e o presidente do PL, Valdemar da Costa Neto. Hoje eles trocam juras de amor eterno(?), com o presidente recebendo carta branca para dar as coordenadas políticas em alguns Estados da Federação.  

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Tijolinho: As condições do PSB para apoiar Lula



Não está sendo fácil para ninguém os ajustes das composições políticas nacionais com as quadras estaduais. Aliás, no Brasil, elas sempre foram difíceis, pois seguem uma dinâmica própria, consoante o conjunto dos interesses dos líderes partidários dos Estados da Federação. No Brasil, partido político com orientação nacional é coisa rara. Agora mesmo, por ocasião de uma possível filiação do presidente Jair Bolsonaro(Sem Partido) ao PL, isso ficou bastante evidenciado. Ou ele entende que se trata de um problema estrutural dos nossos grêmios partidários, ou será muito difícil encontrar um partido que atenda às suas expectativas. Talvez não seja nem um problema dos partidos, mas da dinâmica da política brasileira. Um articulista da revista VEJA lembrava que este fenômeno ocorreu até mesmo durante o regime militar, onde a ARENA tinha as suas sublegendas. 

Os dirigentes do PSB entregaram ao candidato Lula uma lista de exigências para fecharem uma alinça com o propósito de disputar as eleições presidenciais de 2022. Desejam indicar o vice na chapa e contornar alguns casos problemáticos em alguns Estados da Federação, onde o partido não abdicaria de ter candidato próprio concorrendo ao governo. Em Pernambuco, o PT apoiaria o projeto de manter o governo nas mãos dos socialistas, emprestadno seu aval e apoio político ao nome do Secretário de Desenvolvimento, Geraldo Júlio(PSB-PE),ao Governo do Estado. Como é sabido, Geraldo Júlio enfrenta um momento difícil, com algumas arestas até mesmo dentro do partido. Em todo caso, é homem da confiança dos herdeiros do espólio político e eleitoral do ex-governador Eduardo Campos. 

A situação mais complicada é o caso de São Paulo, onde os socialistas não abrem mão da candidatura de Márcio França(PSB-SP) ao Governo do Estado, embora seja uma praça onde o PT, tradicionalmente, apresenta um nome para concorrer -  que deve recair sobre Fernando Haddad - numa integração com o projeto nacional. O fiel da balança nesse processo pode ser o ex-governador Garaldo Alckmin(PSDB-SP), que poderia, a convite de Lula, filiar-se ao PSB e compor uma chapa com ele, na condiação de vice. Viabilizada essa manobra, Márcio França poderia ajustar os passos com o professor Fernando Haddad, seja na condição de vice, seja concorrendo ao senado federal. O quadro ainda está bastante embolado, exigindo alguns ajustes e arestas a serem aparadas. Márcio França é uma pessoa séria e um ator político de grande estatura. Não é improvável que abdique de alguma ambição pessoal - embora legítima - em nome do interesse nacional.  

Editorial: Moro está "pronto" para disputar a presidência da República?

 


Uma espécie de cruzada anticorrução, liderada pelo ex-juiz Sérgio Moro, foi, basicamente no que se transformou a Lava Jato, antes, naturalmente, que seus métodos fossem duramente questionados e até decisões retificadas por instâncias superiores, como o STF. Segundo observam alguns analistas políticos, naquele timing, Moro seria imbatível numa corrida presidencial, sobretudo num país com um histórico de corrupção estrutural como o nosso. Suas decisões colocaram muitos peixes graúdos na cadeia, principalmente da classe política,  e este fato alcançou uma grande repercussão no imaginário da população, colocando-o como um grande justiceiro, alguém que teve a coragem de enfrentar esse grave problema do país.

Isso, naturalmente, antes que todo o edifício fosse desmoranando - depois dos vazamentos dos áudios comprometedores - demonstrando uma absoluta fragilidade em seus métodos e resultados alcançados, como a condenação sem a observância de ritos legais primários, como as provas concretas dos crimes ou delitos imputados aos réus.  Moro, evidentemente, saiu chamuscado desse processo, principalmente entre um eleitorado mais informado e consciente, menos infenso aos impulsos.  

Sejemos bastante objetivo com os nosso leitores e leitoras. Moro não está "pronto' para ocupar a Presidência da República, como ele tentou sugerir em sua entrevista ao apresentador Pedro Bial.  Seja por não ser um estudante aplicado dos problemas do país, seja por ter demonstrado, em sua conduta, algumas atitudes que não o credenciam ao cargo. Ele tem apresentado ao público uma equipe de bons nomes, capazes de construir uma plataforma de gestão do país em suas áreas específicas. São profissionais experientes e qualificados. Mas ele, em particular, ainda não está preparado. Talvez seja exatamente por isso que a sua assessoria preparou um discurso onde ele se dirigisse à população de uma maneira mais ampla, não se limitando a famosa nota só do combate à corrupção. Até uma tal de força tarefa para enfrentar a fome foi mencionada. Se, um dia, ele chegar ao Planalto, espero que essa força tarefa siga outros métodos. 

Em sua primeira entrevista ao apresentador Pedro Bial, da Rede Globo, ficou famoso um questionamento do apresentador acerca de sua preferência de leitura. Ele informou que gostava de ler biografias. Quando questionado sobre qual o último livro que leu, ele não soube responder. E, por falar em biografias, será que ele já adquiriu a biografia de Lula, escrita por Fernando Moraes? Seria uma boa sugestão.No nosso último editorial, abordamos a questão dos intérpretes do Brasil, algo para muito além dos chamados "cânones sagrados", como Gilberto Freyre, Caio Prado Junior e Sérgio Buarque de Holanda. Eles não deixam de ser importantes - imprescindíveis até - mas existem outros estudiosos e pesquisadores que se debruçaram sobre a questão de entender este país, como Francisco de Oliveira, Josué de Castro, Roberto DaMatta, Darci Ribeiro, Milton Santos, Celso Furtado, entre outros. Será que ele leu Elegia Para Uma Re(li)gião? Pedagogia do Oprimido? Geografia de Fome? A Natureza do Espaço: Tempo, Razão e Emoção? Muito pouco provável.  

  

Charge! Duke via O Tempo

 


Da ponte pra cá: Gilvan Eleutério

 


Da ponte pra cá: Gilvan Eleutério
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Você conhece algo da cena artística do velho oeste paulista? Já ouviu falar do Museu do Sol, primeiro museu de arte naïf da América Latina (localizado em Penápolis) ou da roça elétrica da banda Mercado de Peixe (formada em Bauru?)

Hoje é dia de um rolê pelas quebradas do cerrado paulista, ali onde o estado encontra-se com o Mato Grosso do Sul. Nosso anfitrião nesse corre é o escritor Gilvan Eleutério, que já fez um pouco de tudo nessa vida: foi segurança de boate, professor de Muay Thai, trabalhador de frigorífico e mc de rap:

Quando penso em Penápolis, primeiramente lembro da Vila Altimari, Planalto, Vila São João, Aparecida, Jardim Pevi, Mutirão, vilas no qual conheci muitas pessoas que realmente  valeram a pena conhecer nessa breve existência. Frenquentei lugares que facilmente poderiam ser cenários de filmes e séries, pela carga cultural e emocional, como o clube Corinthians, Zoom Night Club, Bar do Jhow, Chaparral, River’s Bar, Bar do Nory, entre outros.

O cenário alternativo, underground, sempre foi muito forte, pois nas periferias sempre alguma coisa acontecia, sendo eventos, festa em bairros, festivais em praças, ou nas mesas de boteco, o cenário cultural sempre foi de resistência. Conheci muita gente, grupos de rap e bandas de rock que o mundo deveria conhecer, porém poucas sobreviveram devida à dura realidade de ter que pensar primeiramente no trabalho para ter comida no prato, e sempre deixar para depois os sonhos e aquilo que realmente te faz feliz. 

No cenário atual a quebrada conta com muita gente boa, Big G com suas letras de rap contundente e rimas inteligentes, com o mestre Bylla nas ilustrações, Praga de Mãe no cenário punk, Q.O.E.S grupo de rap de respeito, Calibre100 Porte também pra fechar os monstros do cenário.

O mundo devia conhecer não  só eles, mas valorizar e procurar conhecer aqueles que fazem parte de uma cultura verdadeira e sincera, que mesmo nas adversidades conseguem produzir um conteúdo muito bom, longe dos padrões impostos por gravadoras e grande mídia.

Gilvan é um contista com sangue no olho, linguagem dura e dono de histórias passadas nas quebradas do interior. Alguma semelhança com a prosa de Charles Bukowski é mera semelhança de vivência, porque o contista de Piquete nunca leu o “velho safado”. Participou, no entanto, da antologia “Geração 2010: o sertão é o mundo” (Editora Reformatório, 2021). Para nossa série “Da ponte pra cá”, colaborou com outra história curta “O dragão trabalha, se São Jorge vacila”, que você lê no final deste texto.

Capa da antologia "Geração 2010: o sertão é o mundo"
Capa da antologia “Geração 2010: o sertão é o mundo”

Gilvan, o que você pensa quando pensa nos territórios em que foi criado no interiorzão de São Paulo?

Nascido em Piquete, pequena cidade localizada no vale do Paraíba no estado de São Paulo, depois da separação dos meus pais, fui para Penápolis, outra pequena cidade, localizada no noroeste paulista, cruzando literalmente o estado, morei lá por 30 anos, quebrada de respeito, região 018, onde sua realidade não era compatível com seu tamanho, pois lá aconteciam fatos dignos de uma metrópole. Na minha caminhada por lá, conheci pessoas, histórias, vivi situações e sobrevivi para contá-las. Participei de movimento estudantil, movimento punk, movimento hip-hop, trabalhei por exatamente 10 anos de vigilante, especialmente 8 anos na vida noturna.

Nesse caldeirão de emoções, com manifestações, tretas, romances, amigos presos e assassinados, sempre procurei observar na triste realidade algo a mais, olhar para cada acontecimento como uma história particular, singular e tentar passar para o papel os sentimentos que foram vividos nesses momentos.

São demais as quebradas dessa vida, já  cantou o poeta. Para encerrar a prosa com o Gilvan Eleutério, lemos um conto do artista, nascido em Piquete, mas criado a vida toda nas vilas de Penápolis:

O dragão trabalha, se São Jorge vacila

_ Nossa como está frio!!
_ Está mesmo.
_  Boa noite, senhor…O vento gelado envolve meu corpo, arrepios, apenas uma camiseta preta… Puxa, devia ter ouvido minha mãe: “Leva a blusa que vai fazer frio”. Dona Maria é uma rainha. Mães… Quando não as ouvimos a gente se fode.
Mais uma noite, mais alguns trocados, assim logo terei minha carta de habilitação. Mil conto, puta que o pariu, caro pra caralho._ O parceiro aonde é o banheiro?
_ É logo ali…Putz, nem um obrigado. Pessoas começam a entrar, estou só essa noite, que Deus me proteja e São Jorge também, tenho confiança nele, já me salvou de várias tretas._ Pois não, senhor?
_ Opa! Tranqüilo? Viu… Quantas mulheres tem hoje?
_ Hoje estamos trabalhando com seis, senhor.
_ Humm bom… Quanto é a entrada?
_ Senhor R$ 10,00 e tem direito a três cervejas!
_ Porra, tá caro!!!Mão de vaca do caralho, tem quatro fazendas, canavieiro, tem dinheiro e tá reclamando._ Eu pago, vou entrar
_ Sim, senhor, aguarde que vou efetuar a revista no senhor.
_ Tem isso também?
_ Senhor, guarde a arma no carro, por favor.
_ Olha garoto vou ficar com elaPuta merda, só falta encrencar agora._ Senhor… Com arma não entra.
_ Faz assim, fica com ela pra mim, depois eu pego.Nossa, mais uma, já não basta a minha? Cara folgado… Ambiente escuro, a música toca na máquina. R$1,00: mais uma música… Assim a madrugada vem, lenta e traiçoeira. Me assusto com uma barata no meu pé, filha da puta vou te dar um tiro. Clientes e mais clientes, homens casados, homens separados, homens… Todos solitários e carentes, sem sorte no amor, frustrados. Puxa mais um striptease, cansei de vê-las, vou ver a lua, faz mais tempo que não a vejo.

_ Careca tem um cara cheirando no banheiro, porra, te pago pra que? Ficar xavecando a Lua?

Nossa! Mas já? A noite vai ser longa.

_ E, ai, irmão, firmeza? Então, se quiser cheirar vai lá fora, aqui não dá.
_ É rapidinho, só tem uma carreira. É um, dois.
_ Não dá, ou você cheira, ou você vai embora.
_ É rapidinho.

Não acredito que ele vai encher minha paciência logo agora.

_ Você vai cheirar? Então deixa eu ver essa carreira, vai.

O idiota ainda mostra. Uma carreira grande e gorda em cima da tampa do sanitário.

Fuuuuuuuuuuuuuhhhhhhhhh, um leve assopro resolve, que dó.

_ Caralho, irmão, era meu último papelote
_ Foda-se, pra fora!
_ Firmeza… Vou te encontrar ainda.

Vai ter que pegar senha, a fila pra me matar ta grande. Volto para a portaria, de um lado um copo de uísque, do outro um recipiente com alho e sal grosso, espanta mal olhado e atrai mais cliente. Estou com fome, que horas são? Quase 2 da manhã, nossa tem chão ainda pra noite acabar.
Adoro essa música, Jenifer Lopez Love Don’t Cost a Thing, já sei quem a colocou. Primeira dedução e acerto, olho a máquina de música e lá está ela, Luciana. Morena clara, estatura mediana, cabelos até os ombros castanhos claros, hoje ela está mais moderada, veste um vestido branco um palmo antecedendo o joelho, sem sutiã, com uma sandália de salto. Sou louco por ela, meus olhos brilham ao notar sua presença, um leve sorriso aparece no canto da minha boca, tento esconder a satisfação em vê-la, mas não dá, pareço pit bull ao ver o dono.

_ Olá moço, tudo bem? Me dá um abraço.
_ Oi, como você está?

Abraço Luciana e sinto seu cheiro. Ela me dá um leve beijo, fico parado e aproveito o momento, logo volto a mim e percebo que alguém se aproxima, é o patrão. Fodeu, ele não gosta que me envolva com as meninas em hora de serviço, espanta os clientes.

_ Vai para a portaria, Careca.
_ Sim, senhor!

Nossa, falo senhor o tempo inteiro, quando será que me chamarão de senhor? A última vez que me chamaram de senhor foi quando o sargento no quartel me colocou de guarda: “Parabéns, senhor, acaba de ganhar um final de semana no quartel !”. Gente fina, o sargento, ensinou-me muitas coisas.

_ Briga!!! Briga!!!

De repente ouço gritos, minha barriga gela, meu coração dispara, os olhos começam a ficar vermelhos… É agora, a adrenalina domina meu corpo, em instantes chego no balcão, a confusão está armada, são dois, respiro, consigo dominar um, o outro se afasta, levo o cliente pra fora, ele nada fala, segue em direção ao seu carro, abre a porta e mexe debaixo do banco, sem vacilar pego minha arma engatilho e espero. Minhas pernas tremem, a respiração incontrolável, quando ele se levanta vejo um objeto em sua mão, não consigo identificar. O cliente se aproxima… Mais um passo e revelo meu guardião.

_ Aí, irmão, perdeu, fica parado ai mesmo, larga isso e deita no chão.

Ele não obedece…

_Parado, porra, caralho, parado!

Parou, largou o objeto e deitou-se. Puta que o pariu, era um simulacro, uma arma finta, arma de brinquedo.

_ Seu merda, ia me matar com isso? _ Dou um tiro para o alto. _ Corre seu cuzão, entra no carro e vaza.

Em minutos ele não esta mais lá. Não foi dessa vez, agradeço a Deus e a São Jorge pela proteção, estou cansado, a adrenalina em excesso cansa, volto para dentro do estabelecimento e olho no relógio, são 5 horas, acabou.

_ Ae, tio, tá na hora, passa o cadeado na porta.
_Sim, senhor…

Mais uma noite, mais alguns trocados. Logo terei minha carta de habilitação.  Mil conto, puta que o pariu, caro pra caralho.


(Publicado origilmente no site da Revista Cult)

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Editorial: "O que incomoda é pobre comendo bem, não passando fome"

 


Quando ainda estava entre nós, o saudoso professor Manuel Correia de Andrade desenvolvia um projeto bastante interessante na UFPE. Mensalmente, através dos famosos seminários do CFCH, reunia a nata da intelectualidade brasileira para discutir as ideias dos (novos?) intérpretes do Brasil. Suas discussões iam muito além dos chamados "cânones sagrados', como Gilberto Freyre, Caio Prado Junior e Sérgio Buarque de Holanda. Assim, tínhamos a oportunidade de aprofundar-nos no pensamento de Josué de Castro, Francisco de Oliveira, Darci Ribeiro, Milton Santos, Roberto DaMatta, entre outros grandes estudiosos, que deixaram reflexões importantes sobre o país. Aliás, para fazermos justiça, para o continente latino americano, pois suas ideias saíam da fronteira do Brasil e se estendia para o continente. 

Existem alguns livros consagrados em nossos planejamentos de ementas,quando nos preparamos para ministrar uma nova disciplina, como o Geografia da Fome ou Padagogia do Oprimido. No Brasil, é imprescindível ler esses textos, independentemente do que o indivíduo esteja cursando, se um curso de Humanas ou de Exatas. Ainda somos uma nação de famintos e analfabetos, o que revigora a atualidade desses trabalhos, embora tenham sido escritos em décadas idas do século passado. São flagelos que nos acompanham desde o descobrimento, impedindo os passos essenciais de construção da cidadania. Um atraso civilizatório que nunca conseguimos, de fato, enfrentar. 

Essas reflexões vem a propósito de uma ocorrência registrada recentemente, quando o diretor Wagner Moura, acompanhou a exibição de seu filme mais recente, Marighella, num acampamento do MTST. O problema não foi nem as polêmicas inerentes ao filme - por razões óbvias - mas o lanche do diretor, um acarajé recheado de camarão, que causou muita "indignação' de alguns setores - naturalmente setores conhecidos da nossa sociedade - que consideraram inusitado aquele cardápio servido num ambiente de 'pobres".  

De parte a parte, a briga foi feia nas redes sociais, mas, o mais pedagógico viria depois, na expressão de uma senhora - uma simples senhora - que teria feito a doação de 150 kits de acarajés para serem servidos aos convidados: O que incomoda é pobre comendo bem, não passando fome'. Não ouvi um único comentário dos "indignados" acima acerca dos 20 milhões de brasileiros que passam fome;sobre os assaltos aos camihões de lixo ou mesmo as filas nos açougues à procura de ossos de carne. 

Os dois ilustres pernambucanos citados acima - Josué de Castro e Paulo Freire - foram expulsos do país porque se preocuparam em debater temas da mais alta relevância,como  a fome e o analfabetismo. Em 2013 começaram a serem urdidas as manobras que culminaram num novo retrocesso político no país, materializado com o golpe institucional de 2016. Segundo Beatriz Alves - no concordamos com ela - a bronca foi o pobre reunir condições de juntar a família, os amigos e  organizar seu churrasquinho de costela e asinhas de frango na laje. Este país é inviável. Evidentemente, que não podemos ser, digamos assim, simplistas neste ponto. Claro que há outros componentes que se inserem nas causas do golpe institucional, como a descoberta de poços de petróleo, a ratificação da geopolítica do Tio Sam para a região, as mudanças impostas aos aparelhos de Estado pelo capitalismo financeiro e os reflexos disso para os regimes democráticos, que já não poderiam ser "tão democráticos assim", para viabilizar os interesses do capital. Mas, sinceramente, apenas se permitir, no país, que pobre coma e estude, já seriam suficente para causar asco em nossa elite asquerosa. Portanto, Beatriz Alves não deixa de ter razão.      

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domingo, 14 de novembro de 2021

Editorial: O clientelismo da democracia brasileira.



Louvável as atitudes dos ministros do Supremo Tribunal Federal em defesa da democracia brasileira. Este princípio tem sido a regra que orienta suas decisões mais recentes, constituindo-se numa espécie de balisamento jurídido embasado nos componentes que preservam, consolidam ou mesmo ampliam os regimes democráticos. Numa experiência democrática como a nossa, conhecida por suas fragilidades históricas, iniciativas desta natureza contribuem para significativos avanços neste campo, como o respeito às regras do jogo, assim como a inibição de práticas abusivas, como a disseminação de fake news

Os ministros daquela Corte estão se amparando, jurídica e teoricamente, nos pressupostos dos regimes democráticos para tomarem as suas decisões. Alguém poderia dizer que não poderia ser diferente. De fato não, mas vocês entendem o que este editor está querendo dizer ao fazer tais afirmações. Com decisões desse caráter, os ministros da Corte estão contribuindo para ampliar a nossa democracia. E, parafraseando o sociólogo francês, Claude Leffort, "uma democracia que não se amplia tende a morrer de inanição." Carmén Lúcia, Gilmar Mendes, Luiz Fux, Rosa Weber, Alexandre de Moraes, Luiz Roberto Barroso. Todos, sem exceção, seguem a mesma orientaçao. Rosa Weber, por exemplo, ao se colocar contra esse tal "orçamento secreto", afirma que ele constitue-se, em última análise, num procedimento incongruente com um regime democrático.

O cientista político Fernando Schüler, professor do INSPER, observa, em seu artigo semanal, que o filósofo político Norberto Bobbio dizia que a transparência era uma promessa não cumprida pela democracia. No caso brasileiro em específico, creio que tal promessa jamais será saudada, pelas razões já expostas por estudiosos do assunto, como Raimundo Faoro, Victor Nunes Leal, Sérgio Buarque de Holanda. É o jeitinho, é o favor, é clientelismo, é o tapinha nas costas, é a ausência de fronteiras entre o público e o privado. Nossa experiência democrática tem um comprometimento estrutural. Todo tipo de malabarismo e falcatruas são cometidas com as transações públicas que devem ser - ou deveriam ser - do conhecimento do público. Vocês bem podem imaginar, então, a rede de cooptação política, do nível federal ao municipal, inerentes a esses tais orçamentos secretos, onde a sociedade não tem acesso aos quinhões destinados aos deputados, assim como eles serão negociados com os prefeitos e vereadores dos municípios.  

Ainda bem que o colegiado do STF formou maioria em relação a este assunto,seguindo o voto da ministra Rosa Weber. Pena que os esperneios do Poder Legislativo não traduzam uma preocupação com a independência dos três poderes - concebidos no sistema de freios,pesos e contrapesos tão salutares à democracia -mas, sobretudo, pelo fato de a liminar ter estancado a farra com o dinheiro público, que pesa diretamente sobre os alicerces de uma democracia. 

sábado, 13 de novembro de 2021

Editorial: O blefe de Dória



Pela clivagem deste editor - certamente aliada à nossa condição de eleitor - dos atuais pretendentes a ocupar a cadeira do Palácio do Planalto, alguns desses nomes não deveriam ser reconduzidos ao cargo e outros tantos sequer deveriam tentá-lo, pelas suas condutas como homens públicos ou na iniciativa privada. Não vamos aqui entrar nos pormenores, para não ferir as susceptibilidades desses atores políticos ou, pior, atrair a ira dos seus seguidores, tornando-se alvo dos inevitáveis ataques vis, através de expedientes conhecidos. Fica a critérios dos leitores e leitoras que nos acompanham por qui, através de um exercicio de intuição ou mesmo baseados no que escrevemos pelo blog, tentar estabelecer essa nossa possível clivagem. 

Asseguro que seria muito importante que a maioria de nossos eleitores estabelecessem esses mesmos critérios. Muitas tragédias poderiam ser evitadas na condição dos negócios de Estado. Mas, voltemos ao cotidiano dos nossos comentários políticos, desta vez para tratar das prévias do PSDB, marcadas por alguns lances curiosos - como as filiações irregulares, já devidamente anuladas pela Executiva Nacional da legenda - e, agora, os chamados blefes, possivelmente em razão da  suas proximidade da votação, prevista para o dia 21. 

As prévias tucanas, quando foram anunciadas, geraram muitas expectativas junto ao eleitorado, seja este eleitorado tucano raiz ou não. Seria um momento para conhecermos as propostas dos candidatos a candidato do partido à Presidência da República, nas eleições de 2022. Infelizmente, nenhum entre eles apresentou, a rigor, uma proposta para o país, restringindo-se às suas experiências nos Estados ou capital que administram, conforme o caso, João Dória(PSDB-SP)), Eduardo Leite(PSDB-RS), Arthur Virgílio(PSDB-AM). O senador Tasso Jereissati(PSDB-CE) desistiu de disputar as prévias, engrossando as fileiras dos apoiadores do governador gaúcho.

Ao longo do processo, escaramuças trocadas entre os candidatos ganharam a cena e, hoje, não se fala noutra coisa senão sobre os números apresentados pelos candidatos em relação à votação. Eduardo Leite assegura que sairá vitorioso das prévias, enquanto o governador de São Paulo, João Dória - que atravessa mais uma fase de adequação de discurso - assegura que terá 75% dos convencionais. Assim como Eduardo Leite (PSDB-RS), endossamos a tese de que se trata de um blefe.

O engomadinho é, rigorosamente, um "produto" de marketing. O ex-governador Geraldo Alckmin já afirmou que essa sua mania de misturar negócios privados com coisa pública não é muito salutar. E ele tem toda a razão quando fala sobre este assunto. Já foi um aliado dele no passado e, hoje, é um desafeto. Aliás, Dória tem a mania de abandonar ex-companheiros de viagem. Se o indivíduo cai em desgraça, ele o abandona na hora, sem qualquer constrangimento. Essa parece ser uma das espertises de sua práxis corportativa, que ele trouxe para a sua vida pública. Como disse antes, consoante as conveniências, já anda moldando milimetricamente o seu discurso, de acordo com uma revista de circulação nacional. Depois de um encontro com empresários, teria parado de atacar o presidente Jair Bolsonaro(PL), de quem já foi um aliado no passado. Eduardo Leite afirmou que faria uma manobra mirabolante caso se confirme as previsões do governador paulista. Não será preciso.  

Charge! Duke via O Tempo

 


sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Editorial: O banho de Lula na Vox Populi



Para evitar comprometimentos, melhor seria afirmar que "Tudo pode acontecer, inclusive nada', até porque, as eleições presidenciais ainda estão muito distante. Alguns cenários poderão mudar até lá. Nem mesmo o surgimento de um "azarão' seria de todo improvável. Mas, pelo andar da carruagem política, a cada nova pesquisa se consolida a liderança do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva(PT-SP) na corrida presidencial de 2022. O petista continua firme, costurando alianças, conversando com amplos setores da sociedade civil e até incursionando pela Europa, onde iniciou um périplo mais recentemente, com o propósito de reestabelecer o diálogo com líderes da esquerda.

Esta última pesquisa da Vox Populi, inclusive, já traçou uma simulação sem a presença do presidente Jair Bolsonaro(PL), que, como disse num outro editorial, não enfrenta um bom momento ou, para usar uma linguagem militar, não encontra-se em céu de brigadeiro. Como pesquisa é uma "fotografia" - que retrata uma realidade momentânea - nada nos assegura que este quadro possa ser mantido até as urnas, em outubro de 2022. Por enquanto, o petista corre solto, com possibilidades reais de liquidar a fatura ainda no primeiro turno, a julgar pela sua performance nos levantamentos de intenção de voto. Pela Vox Populi,de 11\11, ele crava 44%, enquanto Jair Bolsonaro aparece com 21%. Com o nome de Jair Bolsonaro de fora, ele amplia a vantagem sobre o pelotão da terceira via, que ainda continua uma massa disforme. Lula 45%, Moro 8% e Ciro Gomes 6%. A terceira via continua, ainda, uma grande incógnita. Tem eleitores, mas eles estão órfãos de candidatos. 

Num exercício bastante interessante, uma revista de circulação nacional publicou um artigo, onde o articulista listava uma série de motivos para não crer da consolidação dessa terceira via. Cuidadosamente, estou me debruçando sobre tais argumentos para discuti-los aqui com vocês. Nos meus bons tempos de estudante, li bastante sobre a polarização  política que ocorria nos estados de Pernambuco e Rio Grande do Sul. São dois estados emblemáticos para se entender a polarização política no pais. 

Incrível como, até o momento, no contexto da eleição presidencial de 2022, ainda não surgiu um nome para desmanchar esse binômio, embora haja espaço, pois há uma insatisfação de um percentual expressivo de eleitores. Tenho inúmeras razões para acreditar que Sérgio Moro não conseguirá esta proesa, apesar do seu bom start de largada, que gira entre 8% e 10%,dependendo do instituto. Embora tenha recebido uma boa assessoria para a elaboração de seu discurso de estréia - falou-se, imaginem! até mesmo numa força tarefa para enfrentar problema da fome ou da probreza, onde servidores seriam convocados para participar do projeto - a sua plataforma é eminentemente voltada para o combate à corrupção. E, já que ele pretende convocar especialistas para tratar do assunto da fome no país, este editor sugere o nome do grande sociólogo Jessé de Sousa, que prestou grandes serviços ao país na presidência do IPEA. Claro que há aqui uma ironia.  

Um resistente nos Estados Unidos

 

João Camillo Penna

Um resistente nos Estados Unidos
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Grafite retratando Michel Foucault (Reprodução/ Organ Museum)

 

A presença de Michel Foucault nos Estados Unidos é significativa. Ela é sensível das formas mais diversas: em órgãos específicos de difusão da pesquisa acadêmica na crítica literária, em revistas como Social Text (primeiro número: inverno de 1979, gerida principalmente por Fredric Jameson, de abordagem marxista), Representations (primeiro número: fevereiro de 1983, órgão do Novo Historicismo) ou Cultural Critique (primeiro número: 1985), mas também na antropologia (Paul Rabinow, por exemplo), na história da ciência e da tecnologia (Donna Haraway) ou ainda em campos da política, como o movimento carcerário ou antipsiquiátrico, para mencionar só algumas áreas. É preciso, no entanto, cautela ao falar de Foucault nos Estados Unidos. Cinco razões principais para isso.

Primeira, a profunda inadequação da noção de “influência”, cuja fraqueza epistemológica é tema interno à própria obra de Foucault, que via a leitura causal dos fenômenos de semelhança e repetição como um suporte mágico inadequado. Assim, não se pode falar de “influência” da História da loucura sobre o movimento antipsiquiátrico nos Estados Unidos e na Inglaterra, já que um é em larga medida contemporâneo do outro – embora seja verdade que há muito de Foucault em A manufatura da loucura de Thomas Szasz (1970). Além disso, a relação entre Foucault e seus leitores americanos não é sempre amistosa, sendo freqüentemente marcada por uma ambigüidade crítica rigorosa, que precisa arrancar a Foucault um campo aberto por sua reflexão (caso de algumas apropriações como a dos Estudos de gênero ou a dos Estudos subalternos).

Segunda, não é evidente que as apropriações de Foucault nos Estados Unidos sejam homogêneas ao sentido original de seus projetos na França, embora a hipótese da existência de dois Foucaults, um Foucault americano e outro francês, como escreveu Vincent Descombes, seja algo excessiva. É inegável, portanto, que a inserção de Foucault no que se convencionou chamar “ontologias do múltiplo” (com Deleuze, Derrida, Lyotard…), i.e., a tradução filosófica francesa da política de maio de 1968, tem pouco a ver com o debate multiculturalista e a discussão sobre políticas identitárias americanas, momento mais fecundo da recepção foucaultiana nos Estados Unidos, nos anos oitenta. Embora não seja menos verdade que a crítica da subordinação do pensamento ao sujeito e ao Um, e uma idêntica afirmação da multiplicidade, lida em termos culturais ou identitários nos Estados Unidos, perpasse tanto uma quanto a outra.

Terceira, a articulação do debate foucaultiano nos Estados Unidos se dá no contexto da grande importação do pensamento francês nesse país, em que Foucault está longe de ser um caso isolado, sendo lido em conjunto com Derrida, Deleuze, Bourdieu, os historiadores das mentalidades, ou, um pouco antes, com Althusser, Lacan e Barthes, pensadores bastante heterogêneos entre si.

Quarta, a academia americana dialoga com aspectos distintos da obra foucaultiana, ela própria marcada por cortes profundos. É o caso das discussões no campo da filosofia e das ciências sociais sobre as ciências humanas ou da “virada interpretativa” (lingüística ou culturalista), marcada por uma crítica hermenêutica ao positivismo científico. É algo como o conceito de epistéme que será retomado, podendo ser “culturalizado” ou não, para querer dizer algo como uma “rede de significações tecida” pelo ser humano, conforme a definição de cultura formulada por Clifford Geertz (citando Max Weber), enquanto as apropriações mais recentes (Estudos pós-coloniais, Estudos de gênero, Queer Theory) se fixarão, como veremos, na História da sexualidade ou em Vigiar e punir.

Acresce-se a isso, finalmente, que o “último” Foucault será marcado por suas freqüentes visitas aos Estados Unidos, como professor convidado e conferencista. A partir delas ele se interessará por um novo tipo de luta social, por modo de resistência e por novas formas comunitárias, que lhe vieram em particular da experiência da cultura gay em San Francisco. Além disso, o fato inédito de que a apresentação sistemática de algumas de suas últimas colocações não só aparecerá antes nos Estados Unidos do que na França, como será incluída no interior de uma poderosa reflexão e tradução americana de sua obra, o livro de Paul Rabinow e Hubert Dreyfus (ambos professores na Universidade da Califórnia, em Berkeley), Michel Foucault, uma trajetória filosófica (de 1982 e 1983).

O caminho a tomar deve ser, portanto, outro: há um gesto foucaultiano claramente reconhecível em suas apropriações americanas. Esse gesto tem dois lados: o seu construtivismo radical e um estilo de ativismo que chamarei, precariamente, de nietzschiano. A marca foucaultiana aparecerá de forma nítida no mercado editorial americano sob o traço reconhecível em títulos contendo as palavras mágicas: a invenção de, a construção de, o nascimento de…

Mas como entender o construtivismo de Foucault? Ele é claramente definido na Arqueologia do saber: substituir uma interrogação sobre o conteúdo secreto da loucura pelo mapeamento da constituição da doença mental por meio do conjunto de enunciados que a nomeiam, recortam, explicam, julgam e, finalmente falam pela loucura (“articulando, em seu nome, discursos que deviam passar por seus”). Substituir a discussão sobre as coisas (sobre a referência) pela discussão sobre a formação de objetos no interior do discurso, o conjunto de regras que permite que a criminalidade, por exemplo, possa ter-se tornado objeto de parecer médico, ou que a loucura possa tornar-se objeto de parecer psiquiátrico.

É precisamente a noção foucaultiana de “discurso” que interessará, por exemplo, a Edward Said, em O Orientalismo (1978), livro que funda sozinho o campo inteiro dos Estudos coloniais e pós-coloniais na Academia Norte-americana. “Orientalismo”, explica Said, nas páginas iniciais de seu livro, é a “enorme e sistemática disciplina por meio da qual a cultura européia conseguiu administrar – e até produzir – politicamente, sociologicamente, militarmente, ideologicamente, cientificamente e imaginariamente, o Oriente, durante o período pós-iluminista”.

Reconhecemos os termos das análises clássicas do Foucault de Vigiar e punir: a disciplina, em seu duplo sentido de saber/poder, que constitui, fabrica, ou produz o objeto Oriente, para dominá-lo ou controlá-lo. Eis o gesto foucaultiano, na verdade uma tradução do tema transcendental (kantiano): estudar a constituição do Oriente enquanto objeto discursivo, que não pode ser confundido com a cultura própria dos países do Oriente Médio, consiste em examinar as condições de seu aparecimento como construção ocidental enquanto objeto a ser dominado e outro simétrico inverso do Ocidente.

Mas é sobretudo enquanto produtor de subjetividades que o disciplinamento do binômio saber/poder contribuirá ao debate identitário americano. São os temas propostos em Vigiar e punir e A vontade de saber, respectivamente, do “exame” (criminológico ou psiquiátrico) e da “confissão”, por um lado, que vão colocar o problema da enunciação em primeiro plano. Foucault explica que a criação mais fecunda do sistema penitenciário não é a “detenção privativa da liberdade”, mas a criação do personagem do delinqüente que suplementa a prisão e duplica o delito.

Em A vontade de saber, por outro lado, delineia-se a polêmica proposição sobre a construção da sexualidade como categoria científica-política-social, produzindo-a (a matriz é sempre a da fabricação industrial) a partir das proibições e regulamentações de comportamentos que eram suspeitos de reprimi-la. A “tecnologia” ou o “dispositivo” sexual consiste no conjunto de técnicas concebidas com o intuito de maximizar a vida no bojo de um novo poder no século 19, o biopoder, constituindo quatro objetos e suas respectivas ciências: a sexualidade infantil (a pedagogia), a sexualidade feminina (como especialização da medicina), o controle da procriação (a demografia) e a perversão (como campo da psiquiatria).

Embora a palavra “identidade” não apareça nestes textos de Foucault, é a tradução dos personagens por identidades que se mostrará extremamente profícua para o debate americano. A objetivação/subjetivação da mulher como ser sexuado, por exemplo, é sua identidade constituída pelo saber/poder, forma aprisionada e limitada, determinada por aparelhos complexos de controle. Ao mesmo tempo é a forma possível com a qual pode contar qualquer movimento identitário de mulheres que pretenda se libertar dessa forma aprisionada.

Double-bind terrível e inescapável com o qual os Estudos de gênero deverão se confrontar (Teresa de Lauretis, por exemplo), que oporá um construtivismo radical (a identidade genérica é fabricada enquanto “personagem” do biopoder e é incapaz de dizer qualquer coisa de interessante sobre a mulher) a uma necessidade de recorrer, nem que seja estrategicamente, a uma quase-essência feminina como espaço comunitário político afirmativo e liberalizante da mulher, abrindo a possibilidade de constituição de um sujeito-mulher. Aqui, se juntam possivelmente as preocupações em torno do problema das “técnicas de si”, da transformação de si mesmo em sujeito, do último Foucault.

Um problema análogo coloca-se para os Estudos gays e lésbicos, que se reagruparão em seguida como Queer Theory. Enquanto antes do século 19, no direito canônico e civil, a sodomia era vista simplesmente como um ato proibido, a partir do século 19 – Foucault nos oferece a data de 1870 –, o homossexual torna-se um personagem, compreendido como um passado, uma história, uma infância, um caráter, uma forma de vida, uma morfologia, uma anatomia e uma fisiologia. A definição destas “sexualidades periféricas” no contexto da “implantação perversa” e da especificação dos indivíduos é a mesma da constituição de sexualidades ditas normais. Daí, o grande interesse dos Estudos de gênero (ou da Queer Theory) também pelas formas da masculinidade ou pela heterossexualidade vista como comportamento compulsório.

Dizer que a sexualidade é um efeito discursivo artificial (não-natural), um instrumento político-social e não uma positividade, uma realidade psicológica ou física não implica de maneira nenhuma dizer que ela seja pura e simplesmente discursiva, mas sim propor polemicamente um salutar antídoto a qualquer tentativa de fundamentar uma “teoria da sexualidade”. Novo double-bind identitário, mas cuja solução corajosa e arriscada poderia ser formulada da seguinte maneira: já que a sexualidade é pura fabricação do biopoder, por que não reinventar um modo corporal e de prazer que não seja o sexual, uma forma de experimentação coletiva e pessoal, que propusesse uma maneira nova e até agora desconhecida de relação com o corpo? David Halperin caminharia nesse sentido. É o tipo de ativismo nietzschiano de que falei no início.


JOÃO CAMILLO PENNA é professor no Departamento de Ciência da Literatura, na UFRJ. Publicou, dentre outros, “Este corpo, esta dor, esta fome:  notas sobre o testemunho hispano-americano” in Seligmann-Silva, Márcio (Org.). História-Memória-Literatura. O testemunho na  era das catástrofes. São Paulo: Editora Unicamp, 2003, e organizou, com Virgínia Figueiredo, A imitação dos modernos, de Philippe Lacoue-Labarthe. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2000

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)