"O Brasil é uma referência no combate à pobreza, principalmente para os países africanos, que estão em condições parecidas com as nossas." A afirmação é do professor Valeriano Mendes Ferreira da Costa, em entrevista concedida por telefone à equipe do Instituto Humanitas Unisinos (IHU) On-Line. Docente da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ele lembra que "na Ásia, tem-se um dinamismo da economia muito intenso, então é basicamente a inserção salarial que leva as pessoas a saírem da pobreza. A Índia e a África também se beneficiam de políticas como as que estão sendo elaboradas no Brasil, principalmente as de transferência direta de renda para as populações, coisa que antigamente não se fazia nestes países pobres". Para ele, o Brasil foi pioneiro, junto com o México, na política de transferência direta de renda à população mais pobre. No entanto, alerta: "Isto tem de ser articulado com políticas mais sofisticadas, que foquem melhor a pobreza em suas variadas dimensões, o que começou a ser construído com o governo Lula e hoje em dia se consolidou claramente".
DivulgaçãoValeriano Mendes Ferreira da Costa, professor da Unicamp
Qual o impacto de programas como Suas, Bolsa Família e Brasil sem Miséria? Eles auxiliam no combate à pobreza no país?
O Bolsa Família começou como um programa muito pequeno durante o governo Fernando Henrique Cardoso. A partir do governo Lula ele se ampliou muito e passou a atingir a população de extrema pobreza que não havia sido contemplada antes em nenhuma outra política social desta dimensão. Isso começou a ter efeito muito importante, principalmente nas cidades do interior do país, porque nestes locais mais da metade da população ou, às vezes, até 80% da população de uma cidade pequena, mais pobre, começou a receber o Bolsa Família e isto alterou totalmente a vida dessas pessoas, não apenas individualmente. Além disso, dinamizou o comércio e as atividades agrícolas e começaram a ser exploradas outras dimensões. Houve uma dinamização da economia local além da transferência direta de renda. Então, isto afetou profundamente as populações de periferias e das cidades pequenas.
Recentemente foi divulgado que o Brasil tem mais de 16 milhões de pessoas em extrema pobreza. O que isso representa para um país como o Brasil?
É um número muito grande, do tamanho da população do Chile. Comparado, porém, aos grandes países pobres, o Brasil é um dos maiores do mundo em área e população, mas está na faixa de renda média. Nosso país tem um número de pessoas na miséria, para a sua população total, pequeno, menos de 10% da população estaria nesta condição de extrema pobreza, enquanto na Índia deve chegar a 30%. Então, nós temos um perfil de população pobre proporcionalmente pequeno. É fácil de resolver isso: com políticas sociais intensas. Porém, o outro problema maior é que ela é difícil de localizar e de alcançar com políticas. Por isso que a presidenta Dilma Rousseff disse que é preciso buscar, caçar literalmente estes pobres, porque eles são invisíveis às políticas sociais por uma série de razões.
O que falta para que esses números diminuam e para que o quadro se reverta?
Primeiro, focar na pobreza extrema; depois, é preciso construir os instrumentos para isto. A gente já vem construindo com o Bolsa Família. Criou-se o cadastro único. Este cadastro único permitiu, pela primeira vez, identificar quase todos estes pobres ou extremamente pobres. Então, agora temos condições de iniciar um processo de busca ativa e de correção das distorções. Inicia-se o processo, porque o estado tem o empenho de fazer isso e o começo dos instrumentos. O principal desafio seria articular as políticas sociais financiadas pelo governo federal com a capacidade de ação e operação dos municípios. Estes teriam que ser parceiros neste processo, porque eles são os únicos que têm capacidade de estabelecer este contato direto com a população na extrema pobreza, com a coordenação do governo federal, o auxílio dos governos estaduais, mas principalmente do governo federal e municípios.
Segundo o IBGE, mais de 46% das pessoas na linha de extrema pobreza residem em área rural. O restante em condição de miséria, pouco mais de 53% mora em áreas urbanas. Como o senhor avalia tais dados?
Isto significa que a pobreza ainda é muito forte no interior, na área rural, mas ela migrou bastante para a área urbana. São dois tipos de pobreza bastante diferentes: a pobreza rural é a tradicional, que estamos acostumados a ver. É uma pobreza quase totalmente excluída da economia mercantil, da economia monetarizada. Então, o impacto do Bolsa Família foi muito maior aí porque ele inseriu a população em uma economia monetarizada. Ou seja, esta população pobre de cidades pequenas do interior, principalmente do Nordeste e Norte, não tinha acesso à moeda; ela quase não recebia dinheiro, vivia da troca direta de mercadorias. Isto modificou totalmente a dinâmica destas populações. Já na região metropolitana, ou nas regiões urbanas das cidades médias e pequenas, essas populações já estavam inseridas no mercado e tinham acesso a uma renda relativamente estável. Então, o impacto não foi tão grande. Os programas sociais precisam, cada vez mais, focar na natureza específica da pobreza e da extrema pobreza nas regiões metropolitanas, que é muito mais difícil de combater.
Alguns idealizadores do programa Brasil sem Miséria acreditam que, com o projeto, será possível erradicar quase que por completo a extrema pobreza no Brasil, em quatro anos. Isso será possível? Quais os desafios que o Brasil irá enfrentar?
Nunca será possível corrigir a miséria total, porque até mesmo os países ricos têm populações residuais em extrema pobreza, por uma série de razões que têm a ver com o dinamismo da economia e das relações familiares, problemas de desequilíbrio mental e financeiro. Então, toda hora vai ter gente caindo na extrema pobreza, tornando-se mendigo, por exemplo. Zerar nunca vai ser possível, porque mesmo que zerássemos toda população atual, ela se reproduziria em poucos anos. Seria possível conseguir reduzir a níveis muito pequenos, por exemplo, menos de um milhão de pessoas. E, se chegarmos a ter menos de um milhão de pessoas em extrema pobreza no Brasil, seria uma coisa fantástica. Tentar-se-ia enfrentar esta população residual com políticas permanentes de reinserção, de tratamento na área de saúde mental, educação, saúde e assistência social, principalmente os dois últimos, uma vez que este último pedaço da população residual será de difícil enfrentamento de políticas do tipo transferência de renda e de qualificação de trabalho, porque esta população não responderá a essas políticas. Os outros 15 milhões se consegue reinserir, porque são estruturas familiares mais ou menos estruturadas e que respondem minimamente a um programa de transferência de renda. E depois a questão da inserção no mercado de trabalho através de educação e programas de geração de emprego e renda. O governo está preparando os seus instrumentos para fazer isto, mas é muito difícil. Nós temos uma população que está muito espalhada no país inteiro. Então, é necessário ir de município em município construindo as condições de intervenção com apoio e coordenação do governo federal.
Qualquer pessoa residente em domicílios com rendimento menor ou igual a 70 reais é considerada extremamente pobre. Há, no entanto, integrantes de uma família que, apesar de não terem qualquer rendimento, não se encaixam na linha de extrema pobreza. Para calcular as pessoas sem rendimento que, de fato, se incluem na linha de miséria, é realizado um recorte que considera alguns critérios. Como o senhor avalia esses critérios de seleção?
Isso tem a ver com critérios ligados à condição de estrutura social familiar. Tem muita gente que não tem renda, mas está vinculada a famílias que têm. Então, é muito difícil uma pessoa que é extremamente pobre estar inserida em uma rede que precisa ser identificada. É um trabalho difícil de identificação; depende do cadastro e da confiabilidade das informações que elas mesmas prestam. Muitas pessoas vivem em uma situação de instabilidade, indo e depois saindo de estruturas familiares mais ou menos estáveis. Justamente a camada mais pobre é aquela mais desorganizada, cuja relação com a sociedade, com a estrutura social local é mais instável: é o maluco de rua, o mendigo, a moça que vive em condições de exploração sexual, crianças que vivem nas ruas.
Quantos por cento do PIB do Brasil são destinados à política social?
No total, considerando a política social como todas as atividades de transferência de renda e intervenção na área de políticas públicas é uma soma muito grande e eu não tenho uma ideia precisa. Mas tenho certeza que é acima dos 20% do PIB. É uma soma muito grande, é superior a dos países considerados emergentes, em desenvolvimento. Então, o Brasil gasta bastante, mas tem um problema sério na distribuição desses recursos. A grande dificuldade é onde aloca esses recursos, e este é um problema difícil de enfrentar porque são recursos que já estão fortemente consolidados em algumas áreas. Por exemplo, com relação às transferências pessoais de recurso, o grande gasto é o da Previdência, talvez 200/300 bilhões de reais anuais de transferência que são fortemente concentradas naquela parte da população que já tem uma inserção forte no mercado de trabalho, contribuiu a vida toda e consegue receber aposentadorias acima do salário mínimo.
O que este dado (20% do PIB) representa para um país como o Brasil?
É um dado grande e importante. Trata-se de um país que investe bastante na área social, nas políticas sociais, mas tem um viés distributivo ruim. Ou seja, boa parte deste recurso é investido não no sentido de reduzir pobreza, mas de manter as condições de vida daqueles que já têm um nível de vida razoável. Se olhar o geral você vai dizer que o Brasil é um país cuja previdência é comparada aos países europeus, o grau de transferências da previdência geral e da pública é comparado, em termos de PIB, ao que o país como a Espanha transfere para a previdência. O Brasil estaria na faixa superior em termos de transferência, muito superior a países como China e Índia. Nosso país tem uma forte inserção nas políticas sociais. Mas é uma nação que tem muita desigualdade e esta não se corrige com políticas transversais gerais. As famílias, hoje, estão claramente se mobilizando para educar seus filhos e para inseri-los no mercado de trabalho formal. Isso é fundamental para não se cair no ciclo de pobreza, que se dá renda, mas não condições de continuidade de geração da mesma. Isto é fundamental na articulação das políticas. Se elas não se articularem, não adianta transferir renda, porque ela não gera dinamismo. É necessário articular as transferências de renda com o dinamismo do mercado de trabalho e isto foi feito nos anos 1990 e 2000 e agora estamos nos beneficiando deste processo.
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