Wilson Gomes
Agenda pública e os políticos ignorando a crise econômica (Arte Andreia Freire)
Ali pelo finalzinho de 2014, a conversa política no Brasil girava ao redor da crise da economia brasileira. Uma crise fiscal que se aprofundou aceleradamente, fruto de reiterados equívocos macroeconômicos do governo Dilma, produziu, em cascata, uma série de efeitos sobre a situação financeira das empresas e das famílias. Dívida pública instável, retração dos investimentos privados e públicos, endividamento, queda dos indicadores de renda e emprego.
E, como costuma acontecer nesses casos, estabeleceu-se uma espiral entre política e governo, de um lado, e fundamentos econômicos de outro, de forma que já nem se conseguia mais entender o que era causa e o que era consequência. No caso em tela, a crise econômica brasileira foi causada certamente pelo governo e por suas políticas, mas, ao mesmo tempo, se torna, ela mesma, a causa de uma crise política, uma vez que a quem governa interessa a cooperação de todos para produzir respostas eficazes aos indicadores econômicos, enquanto quem é oposição ao governo quer respostas, sim, mas com um outro governo e, certamente, com uma outra política econômica.
Os problemas políticos da administração Rousseff – que ganha uma eleição em outubro de 2014 negando a crise e começa o governo em fevereiro avisando que há crise, sim, e ela é medonha – vão produzir ainda mais crise econômica. A crise fiscal, somada à fragilidade política da presidente, gera a perda do grau de investimentos, o dinheiro privado desaparece, o dinheiro público já não há, dispara dólar, inflação, juros e a atividade econômica congela. Quando a crise chega ao emprego e à renda, o país entra em surto. O jornalismo vai aos gráficos, números, tabelas, recorre às sonoras de operadores do mercado e de políticos interessados no que a crise lhe podia render, e o nível de angústia vai às nuvens. Este foi o cenário de economia política que levou ao desfecho que conhecemos, entre 2015 e 2016, com o impeachment de Dilma Rousseff. E estes são os fatos, a prescindir do julgamento que se faça sobre a legitimidade do ato, que certamente dividirá a sociedade brasileira ainda por muitos anos.
O que me interessa aqui é registrar como, às vésperas de um novo e decisivo ciclo eleitoral, o tema da resposta política à crise da economia brasileira deixou de ser o centro da vida pública nacional para se tornar uma agenda de nicho, de bolha. Tanto do ponto de vista da oferta quando da perspectiva do consumo eleitoral. O que não deixa de ser assombroso, haja vista o quanto a sociedade e as instituições do Estado brasileiro permitiram que fosse feito, em nome da resposta à crise econômica e em termos de “puxadinhos” e arranjos democráticos, com o mandato da última presidente eleita. Que consistiu, para dizê-lo de maneira honesta e simples, em uma presidente recém-eleita pelo voto popular ter o seu mandato suprimido politicamente em razão de uma crise econômica que o seu governo anterior criou ou, em uma versão que lhe é mais favorável, que o seu governo não foi capaz de responder de forma eficiente.
Pois bem, suspendemos há uma semana as eleições para a Copa do Mundo com uma perspectiva econômica em que a crise continua presente e assustadora, sem que pareçam ter alguma chance eleitoral as respostas que o jornalismo e o debate público sobre macroeconomia nos disseram que eram imprescindíveis. Aumentaram os índices relativos à pobreza e à miséria, o desemprego continua em alta e Temer, escolhido pelo Clube do Saneamento do Ambiente Macroeconômico, sangra e agoniza aos olhos de todos desde meados de 2017. Para completar, recebeu nos peitos a greve dos caminhoneiros, para a qual a única resposta que conseguiu produzir foi exatamente no sentido oposto ao receituário do grupo da agenda da estabilização da dívida pública. De fato, acabou prometendo onerosos subsídios públicos para as empresas transportadoras e intervenção estatal na economia na forma de, pasmem, tabelamento de preços. Às favas controle de gastos, às favas os escrúpulos da austeridade fiscal. Ora, é inegável que isso tenha gerado uma sinalização certamente confusa, vinda justamente do homem que foi retirado do banco de reservas para fazer os gols políticos que a “agenda das reformas” precisava com urgência.
Assim, não deixa de ser ao mesmo tempo irônico e trágico que, às vésperas da largada final da disputa eleitoral, não vislumbremos candidaturas competitivas comprometidas com uma resposta à crise econômica que cobrou do país um preço altíssimo, no que tange ao desordenamento do sistema político e à desconfiguração das regras do jogo democrático. Ou que todos os candidatos competitivos se esforcem para guardar distâncias das respostas que os apologistas da austeridade fiscal e da reforma da Previdência consideram os únicos meios eficientes para o país retomar o crescimento. E é curioso, além disso, quem nem mesmo os mais devotos da causa sequer consideram as candidaturas de Henrique Meirelles (MDB) ou de João Amoêdo (Novo), resignados ante o fato de ambos serem ofertas eleitoralmente ignoradas pelos brasileiros que votarão em outubro. Como Temer não teve coragem de vir à disputa eleitoral defender o seu pretenso legado e a sua agenda sobre “o que é melhor para o país”, os defensores da plataforma veem-se limitados à já inquietante espera de que alguma poção mágica acorde, enfim, Geraldo Alckmin.
Na verdade, a agenda economicista de austeridade e reformas, que se acreditou vencedora quando empossou um presidente sem ter vencido uma eleição com tal plataforma, reduziu-se a apenas mais uma das bolhas em que a nossa já decantada fragmentação política produziu nos últimos quatro anos. A bolha não tem janelas e facilmente se desconecta do mundo, julgando a realidade equivocadamente a partir do próprio ambiente social, cada vez mais homogêneo.
Esta semana, assisti a um painel em que uma “economista-chefe” de fundos de investimentos declarava, com cristalina certeza, que não importa quem seja eleito em 2018, as reformas têm que sair, “porque senão o sujeito não vai terminar o mandato”. Para ela era claro que se o ambiente macroeconômico piorar, por falta de reformas, “vai ter muita gente na rua” e aí, frisou, “é uma questão de terminar mandato”. Achei extremamente revelador da mentalidade economicista por trás da fase aguda da crise política de 2015 a 2016. E que se desconectou da realidade em 2018.
Primeiro, fiquei encantado com a “cool indifference” com as instituições da democracia liberal, coisinhas secundárias como soberania popular manifestada em decisões eleitorais e o respeito a mandatos populares obtidos de forma livre e limpa. É praticamente um “se não gostar, a gente tira de novo”, como se o acontecido com Dilma Rousseff não fosse um feito insólito, anômalo e com uma extraordinária capacidade de desestabilizar o sistema político, como o estamos presenciando agora.
Segundo, é uma amostra embaraçante da certeza típica de quem vive em câmeras de eco ouvindo apenas a própria voz: a convicção de que no fim do dia é a Economia quem acaba dando as cartas e se impõe sobre a política, mesmo que para isso precise passar por cima de uma ou outra das regras do jogo democrático. Lamento pela crença alheia, que não é do meio feitio desrespeitar a religião dos outros, mas não somos governados por um conselho de fundos de investimentos, como desejariam os ultraliberais e como a esquerda tem certeza de que já acontece.
Na democracia, para governar é preciso combinar com os eleitores. E os eleitores parecem, neste momento, terem adotado prioridades muito, mas muito distante mesmo desta agenda. Para o bem ou para o mal. E se em 2016 a maioria da sociedade comprou a ideia de que uma situação extraordinária podia admitir medidas excepcionais, duvido muito que em 2020 estejamos dispostos a recomeçar este ciclo de insanidade, apenas porque não gostamos da política econômica que a maioria escolheu nas eleições de 2018.
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
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