Uma grande reunião acontece todas as terças em uma linda pousada de um bairro de alto padrão de Brasília. “É um almoço e o menu muda toda semana”, explica o encarregado de comunicação da “bancada ruralista”. No cardápio não estão petiscos ou menu degustação, e sim temas que esse grupo de latifundiários do Parlamento discutem em sala fechada para, em seguida, levar ao Congresso ou ao Palácio do Planalto.
“É exatamente isso: eles discutem com qual molho vão devorar os direitos indígenas ou a reforma agrária”, ironiza Alceu Castilho, responsável pelo De Olho nos Ruralistas, um observatório da indústria agroalimentar no Brasil. Desde a chegada de Michel Temer à Presidência em 2016, a bancada parlamentar ganhou uma influência inédita. O mérito? Ter contribuído com metade dos votos do Congresso que destituíram a presidenta Dilma Rousseff. Confrontado com uma impopularidade abissal (menos de 5% dos brasileiros se dizem satisfeitos com seu governo), Temer não conseguiria se manter no poder sem o apoio dos ruralistas. E de fato o presidente é convidado com frequência para o almoço de terça.
Nestes dois anos, “o presidente tem nos atendido plenamente, isso é verdade. Mas ainda há muitos obstáculos para superar”, avalia João Henrique Hummel, diretor do Instituto Pensar Agro, o anfitrião desses almoços. Pensar Agro é um “think tank sem fins lucrativos” que agrupa as quarenta principais organizações agrícolas no Brasil, todas também desprovidas de “fins de lucro”, ressalta Hummel. O instituto financia as atividades do grupo parlamentar ruralista, elabora propostas e analisa os projetos de lei desse campo. Em relação aos “obstáculos”, Hummel relembra “duas recuadas de Temer” nestes dois anos. A primeira vez quando renunciou à diretriz de abolir a qualificação de “trabalho escravo”, conforme a reivindicação dos ruralistas. Em nome dessa qualificação, em 2017, o Ministério do Trabalho liberou 2.264 trabalhadores de 165 empresas que os mantinham em “condições análogas à escravidão”, notadamente em latifúndios. A segunda vez foi quando tentaram liberar a mineração em uma das reservas amazônicas mais importantes, a Renca. Ambas as vezes, a pressão internacional forçou o recuo. Uma pena para os amigos de Hummel, que se consolam em constatar que o presidente satisfez treze dos dezessete “temas prioritários” que pautaram no Congresso.
Essa lista de “reclamações” compreende em primeiro lugar os entraves à expansão territorial do agronegócio, em particular na Amazônia. A palavra-chave dos ruralistas nesse campo é “flexibilização”: a das análises preliminares das concessões de exploração (sejam de mineração ou agrícolas), mas também a da obrigação de realizar estudos de impacto ambiental.
Também reivindicaram uma lei que permita às empresas estrangeiras adquirir terras sem limitações – o que foi, de fato, implementado – e desejam que os “entraves históricos” aos seus negócios sejam suprimidos, entenda-se: os direitos indígenas e de comunidades quilombolas, além da obrigação por parte do Estado de empreender uma reforma agrária diante da desigualdade da propriedade das terras no Brasil. Vitória: não apenas o governo Temer propôs uma reforma constitucional visando à mudança das regras de demarcação de terras indígenas de comunidades quilombolas, mas também amputou o orçamento de dois organismos públicos essenciais, o Instituto Nacional de Colonização e da Reforma Agrária (Incra) e a Fundação Nacional do Índio (Funai).
Desde sua chegada à Presidência, Temer suprimiu o Ministério do Desenvolvimento Rural, que desenvolvia políticas favoráveis aos pequenos agricultores. Uma nova lei limita a reforma agrária e prevê a regularização de terras adquiridas a um preço bem inferior aos praticados no mercado – prática histórica entre os latifundiários. “Essa lei é uma grande derrota para a democratização da propriedade da terra”, resume Julianna Malerba, doutoranda em Planejamento Urbano na Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Ela muda completamente as regras e provoca uma concentração ainda maior. Além disso, permite anistias fiscais e reduções de dívidas aos latifundiários”, pontua.
Há dois anos, o ministro da Agricultura é “o maior dos ruralistas”: Blairo Maggi, conhecido no Brasil como “rei da soja”, proprietário do grupo Amaggi e maior produtor mundial da commodity, citado no Panama Papers por ter montado com o grupo Louis-Dreyfus uma empresa super-rentável nas Ilhas Cayman. “Esse governo suprimiu toda a regulamentação ambiental para a agricultura, de sementes transgênicas a inseticidas”, explica Carlos Frederico Marés de Souza Filho, professor de Direito Agrário da PUC-PR. “E o enquadramento legal já era limitado. A lei permite, atualmente, o uso de pesticidas proibidos em seu país de origem.”
Com 235 deputados de 513 no total, e 27 senadores de 81, a bancada ruralista se mostra bastante empreendedora. De sua autoria estão iniciativas que aumentariam a violência no campo se aprovadas: um projeto de lei legalizando o porte de armas por produtores rurais; outro que propõe inscrever o MST e outros movimentos de trabalhadores do campo na lista de “organizações terroristas”…
Os ruralistas também dirigiram duas comissões parlamentares de inquérito (CPIs) sobre o Incra e a Funai. Essas comissões pedem que a justiça investigue 96 pessoas (antropólogos, responsáveis de ONGs nacionais e internacionais, procuradores, juízes etc.), acusadas por eles de “fraudes na demarcação e homologação de terras indígenas”. “O Poder Judiciário tem uma grande responsabilidade nos processos de criminalização dos movimentos sociais”, inquieta-se Layza Queiroz Santos, advogada do Comitê Brasileiro de Defesa dos Direitos Humanos. “Se a relação de forças entre progressistas e conservadores não se equilibrar no Congresso que será eleito este ano, a violência no campo vai recrudescer.”
Enquanto o governo Temer se abre para o agronegócio, quase 4 milhões de camponeses permanecem sem terra no Brasil, em um território com 66 mil latifúndios improdutivos, que representam 175 milhões de hectares (uma área um pouco menor que a do México, que tem 196 milhões de hectares). “E esses números são estimados para baixo”, ressalta Marés de Souza Filho. “Os critérios que medem a produtividade datam de 1975. Se a miséria dos camponeses não for levada em conta, os conflitos vão se radicalizar.”
O número de brasileiros que vivem em estado de extrema pobreza aumentou em 11,2% entre 2016 e 2017, passando de 13,34 milhões para 14,83 milhões de pessoas – sujeitos que jamais participam do almoço de terça-feira.
*Anne Vigna é jornalista.
(Publicado originalmente no site do jornal Le Monde Diplomatique Brasil)
“É exatamente isso: eles discutem com qual molho vão devorar os direitos indígenas ou a reforma agrária”, ironiza Alceu Castilho, responsável pelo De Olho nos Ruralistas, um observatório da indústria agroalimentar no Brasil. Desde a chegada de Michel Temer à Presidência em 2016, a bancada parlamentar ganhou uma influência inédita. O mérito? Ter contribuído com metade dos votos do Congresso que destituíram a presidenta Dilma Rousseff. Confrontado com uma impopularidade abissal (menos de 5% dos brasileiros se dizem satisfeitos com seu governo), Temer não conseguiria se manter no poder sem o apoio dos ruralistas. E de fato o presidente é convidado com frequência para o almoço de terça.
Nestes dois anos, “o presidente tem nos atendido plenamente, isso é verdade. Mas ainda há muitos obstáculos para superar”, avalia João Henrique Hummel, diretor do Instituto Pensar Agro, o anfitrião desses almoços. Pensar Agro é um “think tank sem fins lucrativos” que agrupa as quarenta principais organizações agrícolas no Brasil, todas também desprovidas de “fins de lucro”, ressalta Hummel. O instituto financia as atividades do grupo parlamentar ruralista, elabora propostas e analisa os projetos de lei desse campo. Em relação aos “obstáculos”, Hummel relembra “duas recuadas de Temer” nestes dois anos. A primeira vez quando renunciou à diretriz de abolir a qualificação de “trabalho escravo”, conforme a reivindicação dos ruralistas. Em nome dessa qualificação, em 2017, o Ministério do Trabalho liberou 2.264 trabalhadores de 165 empresas que os mantinham em “condições análogas à escravidão”, notadamente em latifúndios. A segunda vez foi quando tentaram liberar a mineração em uma das reservas amazônicas mais importantes, a Renca. Ambas as vezes, a pressão internacional forçou o recuo. Uma pena para os amigos de Hummel, que se consolam em constatar que o presidente satisfez treze dos dezessete “temas prioritários” que pautaram no Congresso.
Essa lista de “reclamações” compreende em primeiro lugar os entraves à expansão territorial do agronegócio, em particular na Amazônia. A palavra-chave dos ruralistas nesse campo é “flexibilização”: a das análises preliminares das concessões de exploração (sejam de mineração ou agrícolas), mas também a da obrigação de realizar estudos de impacto ambiental.
Também reivindicaram uma lei que permita às empresas estrangeiras adquirir terras sem limitações – o que foi, de fato, implementado – e desejam que os “entraves históricos” aos seus negócios sejam suprimidos, entenda-se: os direitos indígenas e de comunidades quilombolas, além da obrigação por parte do Estado de empreender uma reforma agrária diante da desigualdade da propriedade das terras no Brasil. Vitória: não apenas o governo Temer propôs uma reforma constitucional visando à mudança das regras de demarcação de terras indígenas de comunidades quilombolas, mas também amputou o orçamento de dois organismos públicos essenciais, o Instituto Nacional de Colonização e da Reforma Agrária (Incra) e a Fundação Nacional do Índio (Funai).
Desde sua chegada à Presidência, Temer suprimiu o Ministério do Desenvolvimento Rural, que desenvolvia políticas favoráveis aos pequenos agricultores. Uma nova lei limita a reforma agrária e prevê a regularização de terras adquiridas a um preço bem inferior aos praticados no mercado – prática histórica entre os latifundiários. “Essa lei é uma grande derrota para a democratização da propriedade da terra”, resume Julianna Malerba, doutoranda em Planejamento Urbano na Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Ela muda completamente as regras e provoca uma concentração ainda maior. Além disso, permite anistias fiscais e reduções de dívidas aos latifundiários”, pontua.
Há dois anos, o ministro da Agricultura é “o maior dos ruralistas”: Blairo Maggi, conhecido no Brasil como “rei da soja”, proprietário do grupo Amaggi e maior produtor mundial da commodity, citado no Panama Papers por ter montado com o grupo Louis-Dreyfus uma empresa super-rentável nas Ilhas Cayman. “Esse governo suprimiu toda a regulamentação ambiental para a agricultura, de sementes transgênicas a inseticidas”, explica Carlos Frederico Marés de Souza Filho, professor de Direito Agrário da PUC-PR. “E o enquadramento legal já era limitado. A lei permite, atualmente, o uso de pesticidas proibidos em seu país de origem.”
Com 235 deputados de 513 no total, e 27 senadores de 81, a bancada ruralista se mostra bastante empreendedora. De sua autoria estão iniciativas que aumentariam a violência no campo se aprovadas: um projeto de lei legalizando o porte de armas por produtores rurais; outro que propõe inscrever o MST e outros movimentos de trabalhadores do campo na lista de “organizações terroristas”…
Os ruralistas também dirigiram duas comissões parlamentares de inquérito (CPIs) sobre o Incra e a Funai. Essas comissões pedem que a justiça investigue 96 pessoas (antropólogos, responsáveis de ONGs nacionais e internacionais, procuradores, juízes etc.), acusadas por eles de “fraudes na demarcação e homologação de terras indígenas”. “O Poder Judiciário tem uma grande responsabilidade nos processos de criminalização dos movimentos sociais”, inquieta-se Layza Queiroz Santos, advogada do Comitê Brasileiro de Defesa dos Direitos Humanos. “Se a relação de forças entre progressistas e conservadores não se equilibrar no Congresso que será eleito este ano, a violência no campo vai recrudescer.”
Enquanto o governo Temer se abre para o agronegócio, quase 4 milhões de camponeses permanecem sem terra no Brasil, em um território com 66 mil latifúndios improdutivos, que representam 175 milhões de hectares (uma área um pouco menor que a do México, que tem 196 milhões de hectares). “E esses números são estimados para baixo”, ressalta Marés de Souza Filho. “Os critérios que medem a produtividade datam de 1975. Se a miséria dos camponeses não for levada em conta, os conflitos vão se radicalizar.”
O número de brasileiros que vivem em estado de extrema pobreza aumentou em 11,2% entre 2016 e 2017, passando de 13,34 milhões para 14,83 milhões de pessoas – sujeitos que jamais participam do almoço de terça-feira.
*Anne Vigna é jornalista.
(Publicado originalmente no site do jornal Le Monde Diplomatique Brasil)
Nenhum comentário:
Postar um comentário