Marcia Tiburi
Foto vencedora do Prêmio Vladimir Herzog (2002) clicada por Nilton Claudicio da Silva na Maré (arte revista CULT)
Marcos Vinicius da Silva, um menino de 14 anos, morre na favela enquanto se dirige à escola. Ele é atingido no abdome por uma bala. A bala vem da horizontal. À sua mãe, Bruna da Silva, ele conta que viu quem atirou nele um pouco antes de morrer.
No velório, a camiseta do uniforme torna-se uma bandeira nas mãos dessa mulher que, como todas as mães moradoras de comunidades atingidas pela violência sem igual e intensificada desde a cruel intervenção militar no Rio de Janeiro, faz muitos sacrifícios para que seus filhos possam ter uma vida de esperança.
Ela sabe, e todos sabem, que a morte de Marcos Vinicius enquanto ia à escola é uma metonímia da sociedade atual. A parte que vale pelo todo. Em palavras simples: quando e onde o Estado deveria proteger os jovens, dar-lhes um futuro por meio da escola, ele lhes dá a morte. Essa não é apenas mais uma contradição social – é a barbárie, um nome arrumado para explicar o que é o inferno.
É o inferno. É muito mais do que triste ver a vida desse jovem estudante interrompida e tantas vidas destruídas em uma guerra insana, delirante e interesseira para quem alimenta o medo e transforma a segurança em mercadoria. E tudo faz crer que não se trata apenas de que a vida das pessoas não importe, que o Estado não se preocupe com elas – o que já é em si mesmo algo terrível -, mas trata-se também de que as vidas de pessoas marcadas como negras que vivem em favelas devem ser exterminadas. Esse é o ponto onde fica evidente o jogo entre racismo e capitalismo. Os indesejáveis devem morrer.
Vivemos um genocídio que não tem fim, um genocídio patrocinado há muito tempo pelo Estado e que usa os próprios homens negros, na posição de soldados ou policiais para fazer o trabalho infeliz de matar. Qualquer governante, de direita ou de esquerda, que não interromper esse processo ficará para a história como um genocida.
Hoje, nas favelas cariocas, há esse “helicóptero-caveirão” que sobrevoa os territórios imprimindo o terror. O caveirão, para quem não conhece, é o nome popular do carro blindado usado pelo batalhão da polícia para operações em favelas. Um verdadeiro pavor para crianças, mas também para adultos que são submetidos a essa presença.
Mas há também o homem, o cidadão comum, funcionário do governo, que descarrega a metralhadora sobre a população sem medo de matar alguém. Falo em medo porque qualquer pessoa que valorizasse a vida e a responsabilidade de seu trabalho no campo da segurança deveria cuidar do que faz. O agente da matança pode alegar, como os carrascos nazistas, que apenas seguem ordens. E isso não deixa de ser verdade, por mais que aniquile completamente a perspectiva ética. Mas o que é “ética”quando se trata da queda na barbárie?
Todos sabem, além de tudo, que esse homem que opera a metralhadora deve sentir raiva do lugar que ele ataca. E, contraditoriamente, ele opera a arma com frieza. Foi ensinado a ser frio quando deveria ter sido formado para ser responsável. A raiva é possivelmente o efeito de uma projeção. O lugar que ele ataca deve ser muito parecido com o lugar de onde ele mesmo vem. Esse homem que mata os filhos dos outros também tem filhos. Esse homem que mata recebe também um salário de fome. Esse homem que mata pertence ao mesmo mundo no qual ele descarrega a sua metralhadora. Para quem opera a máquina, tanto faz quem vai morrer, há quem pondere. É um mandamento do Estado exterminador.
O número de tiros ajuda a entender o horror: 59 são os sinais que ficam no chão. Uma escrita da morte nas páginas cada vez mais ensaguentadas das favelas. Outros param nos corpos daqueles que foram marcados para morrer por um sistema de extermínio. Não podemos esquecer de Marielle Franco, morta com 4 tiros na cabeça, símbolo do genocídio contra o povo negro, da favela, das mulheres, das pessoas LGBTs.
As notícias que vêm da favela são diferentes das que vêm do jornal. Conta-se que há muito mais gente assassinada nesse processo de extermínio, mas as pessoas têm medo de denunciar, medo de mais mortes. Enterram seus mortos em silêncio.
Nesses momentos é triste perceber a insistência brasileira em desqualificar e até criminalizar as vítimas. Toda vida importa. A morte precoce é uma tragédia seja de um adolescente que vai para o colégio, de um policial ou de uma pessoa acusada por um crime. Nas democracias, a vida é um direito inegociável.
A morte para o povo é o que resta na nossa falsa democracia. O Estado que deixa morrer também manda matar. O Estado que deveria cuidar dos cidadãos torna-se seu assassino. Essa é a realidade que é preciso mudar. Diante desse cenário, precisamos de um exercício de reflexão intenso para entender o país em que vivemos. Um país no qual contradições sociais estão escandalosamente expostas. O sofrimento de pessoas totalmente inocentes não entra nas estatísticas e não importa a quem está no poder.
Mudar isso é uma tarefa de todos nós.
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
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