pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: Crônica: Orson Welles no Recife
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quarta-feira, 6 de junho de 2018

Crônica: Orson Welles no Recife


José Luiz Gomes


Orson Welles esteve no Recife. De passagem, mas esteve. E que passagem, caros leitores. Aqui ele hospedou-se no antigo Grande Hotel, tomou um porre homérico, batizou-se nas águas do Rio Capibaribe e ainda encontrou tempo para conhecer as zonas boêmias de prostituição do Recife, ciceroneado pelo escritor Liêdo Maranhão, que conhecia muito bem o terreno e suas manhas. Vocês não podem imaginar o que eles aprontaram. E ainda dizem que a decadência do cineasta americano ocorreu em terras brasileiras. Não é a primeira vez que relatamos a presença de Orson Welles no Brasil. Escrevemos uma longa crônica sobre o assunto, descrevendo a famosa odisseia dos pescadores cearenses, transformada em filme pelo diretor de Cidadão Kane.  
Outro dia, ao abrir os e-mails, lá estava um longo texto escrito por um cineasta americano elogiando a crônica que escrevi. Deve ter concordado comigo, ao concluir que Orson viveu seus melhores momentos nas praias de Fortaleza, papeando com os pescadores de Iracema, degustando agulhinhas brancas com cervejas geladas e, não tenham dúvidas disso, namorando aquelas cearenses de cores avermelhadas. Já observaram que as mulheres cearenses, queimadas pelo sol, guardam um tom de vermelho na pele? Intrigado, fui procurar saber de quem se tratava. Descobri que o e-mail havia sido encaminhado por um conhecido roteirista do circuito hollywoodiano. Coisa de fã. O prestígio de Orson Welles nunca esteve em discussão por aquelas bandas. 
Os bairros boêmios do Recife sempre foram locais de perdição para a juventude. Muita gente boa não resistiu aos seus encantos, suas mulheres, suas comidas. Um verdadeiro pavor para as famílias tradicionais, cristães e conservadoras da região, que não desejavam que seus filhos seguissem aqueles maus exemplos. José Lins do Rego tirava um simplesmente na Faculdade de Direito e um louvor nas noitadas recifenses. A família de Gilberto Freyre não gostava de sua amizade com o jornalista Carlos Dias Fernandes. O jovem possuía a má fama de levar uma vida boêmia. Foi Carlos Dias quem organizou a primeira conferência pública do então jovem escritor no Brasil, num teatro em João Pessoa, com grande repercussão. Chegou a ser publicada no jornal O Norte, assim como o Diário de Pernambuco, então dos diários associados de Assis Chateaubriand.
Orson viveu no Brasil uma ponte entre os Estados do Rio de Janeiro e o Ceará, preocupado com as filmagens de It's all true. Manobras do Estado Novo getulista e o Departamento de Estado Americano, como se sabe, deixaram o cineasta à míngua, sem recursos para as filmagens, conduzidas apenas com o seu talento. Negros e pobres em suas tomadas, ainda no Rio, criaram um grande embaraço diplomático entre os dois países. O que foi concebido como uma política de boa vizinhança da diplomacia americana - despretensiosos, esses americanos - transformou-se num grande impasse. Sua passagem pelo Recife, ocorreu, portanto, em meio a essas turbulências.
Mas, se bem conheço Liêdo Maranhão, cada minuto de sua passagem pelo Recife foi muito bem aproveitado. Entre os incidentes, dar-se conta de uma possível queda no Rio Capibaribe, ali no cais que fica bem diante do antigo hotel onde hospedou-se. O porto seguro de Liêdo era o Mercado de São José, de arquitetura francesa, localizado no bairro do mesmo nome. Em suas reflexões sobre uma museologia tropical ou morena, o museólogo Aécio de Oliveira tratava o local como o melhor museu do Recife. A feira assumiria um status bastante relevante em suas concepções expositivas, daí se entender porque ele admirava tanto aquele espaço. Liêdo foi um escritor e grande pesquisador da cultura popular. Ali pesquisava as raízes, os livretos, os ditos e não ditos, também o comportamento dos seus homens e mulheres, como os camelôs, em sua lida diária pela sobrevivência. 
Afinal, o que comeu Orson Welles no Recife...depois das noitadas na Rua da Guia, do Porto do Recife, com aquelas raparigas de latifúndios dorsais, numa expressão feliz atribuída aos sociólogo Gilberto Freyre? Certamente foi ao Mercado de São José com Liêdo, experimentar alguma receita popular para curar ressaca, reconstituir as energias com um chambaril, um sururu, um arrumadinho, uma galinha à cabidela, um sarapatel, uma rabada entre outras tantas. Liêdo não revela as iguarias pernambucanas com as quais o cineasta americano se lambuzou, sem se importar com aquela salmoura que insiste em escorrer pelos lábios. E as tapiocas do Alto da Sé? E ainda dizem que o cineasta viveu sua decadência em terras nordestinas...  

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