publicado em 24 de março de 2014 às 5:09
Por Breno Altman, na Folha, sugerido pelo autor
Um espectro ronda a vida institucional e jurídica do país, movimentando-se na calada da sociedade e do Estado. Seus contornos podem ser definidos por uma pergunta: a democracia comporta o linchamento midiático e processual como ferramenta para eliminar inimigos políticos?
A questão leva nome e sobrenome. Há mais de quatro meses o ex-ministro José Dirceu de Oliveira e Silva cumpre pena em regime fechado, mesmo tendo sido condenado ao cumprimento inicial em sistema semiaberto. O presidente do STF, com a cumplicidade do juiz encarregado da execução penal, pisoteia ou posterga decisões da própria corte.
Não importa, a esses senhores e seus aliados, que a essência da acusação contra o líder petista tenha sido esvaziada pela absolvição acerca da formação de quadrilha. Afinal, sentenciado sem provas materiais ou testemunhais, Dirceu teve sua culpa determinada por uma teoria que considerava suficiente a função que eventualmente exercera no comando de suposto bando criminoso, cuja existência não é mais reconhecida.
O grupo chefiado pelo ministro Joaquim Barbosa, no entanto, resolveu virar as costas para a soberania da instituição que preside. Sob pretexto de regalias e privilégios que jamais se comprovam, mas emergem como verdadeiros nas páginas de jornais e revistas, a José Dirceu se nega o mais comezinho dos direitos. Permanece preso de forma ilegal, dia após dia, em processo no qual a justiça se vê substituída pela vingança.
Há poucos paralelos na história posterior à redemocratização, revelando o poderio dos setores mais conservadores e autoritários quase três décadas depois de findada a ditadura dos generais. As irregularidades contra Dirceu, acima de problema humanitário, afetam pilares fundamentais do regime democrático e civilizado.
O mais triste e preocupante, porém, é a omissão do mundo político diante da barbaridade. Vozes representativas do Estado e da sociedade fazem opção pela abulia e a passividade, possivelmente, e de antemão, atemorizadas pela reação de alguns veículos de comunicação e o dano de imagem que poderiam provocar contra quem ousasse dissentir.
O protesto cresce entre cidadãos e ativistas, alcança o universo jurídico, recebe acolhida de alguns articulistas e chega a provocar certo nível de resposta nos partidos e organizações progressistas. Mas a ilegalidade, respaldada por boa parte da mídia tradicional, não é enfrentada à altura por autoridades governamentais e entidades cujo papel obrigatório na defesa dos direitos democráticos deveria impor outro comportamento.
O mutismo refugia-se em álibis como a independência entre poderes e o caráter terminal da sentença promulgada pelo STF. Como se o bem supremo a ser defendido não fosse a Constituição, mas o respeito ritualístico a uma instância na qual se formou maioria transitória a favor do arbítrio.
Outra camuflagem aparece sob a forma de abordagem unilateral ao que vem a ser liberdade de imprensa. Como se empresas jornalísticas estivessem acima das normas e do escrutínio da cidadania. Ou é aceitável que responsáveis pela coisa pública abdiquem da crítica frontal quando meios de comunicação violam conduta para destruir reputações e prerrogativas inscritas em lei?
Estes são, enfim, temas da democracia, não apenas da solidariedade a José Dirceu ou da jurisdição de petistas que lhe são leais. O silêncio sobre o caso é tão abominável quanto aquele que, no passado, franqueou decisões do STF entregando Olga Benário ao nazismo ou chancelando o golpe militar de 1964.
Breno Altman, 52, é diretor editorial do site Opera Mundi.
(Publicado originalmente no site Viomundo)
Nenhum comentário:
Postar um comentário