A semana foi pródiga em
comemoração. Dizia Theodoro Adorno que toda tentativa de compreender e
explicar os eventos passados era uma forma de justificação. Há coisas
injustificáveis e indizíveis e que, portanto, devem permanecer como
estão. Tal como uma ferida que não cicatriza e que sangra a vida toda. É
esta a sensação que se tem dos crimes cometidos contra a humanidade e à
dignidade da pessoa humana. A expressão "passar a limpo" ou "ajustar as
contas" com o passado pode muito bem ser uma forma de exorcismo dos
demônios e assombrações que povoam a mente de quem sobreviveu à
catástrofe. ao genocidio, ao assassinato e a tortura praticada por
agentes do estado contra parentes, amigos e cidadãos comuns. Mas isto é
notoriamente insuficiente, quando se trata do ponto de vista da história
e da sociedade onde e quando ocorreram esses eventos. A preocupação
legítima seria a de não transformar essa necessária e indispensável
anamnesis histórica numa comemoração familiar ou em auto-promoção
político-eleitoral. Mas grave ainda quando está em jogo o dinheiro
público, pago pelo contribuinte, que já suporta uma carga tributária
pela hora da morte. Indenizar crianças, cujos pais foram vítima do
arbítrio e que em vida receberam compensações pela violência
institucional cometida contra eles, é uma "ação em família", enquanto a
viúva do operário Manoel Fiel Filho, assassinado no DOI-CODI, em São
Paulo, recebe a pensão de um salário ou pouco mais de uma salário.
Já não bastasse a autopromoção
familiar, a propósito da rememoração dos trágicos acontecimentos de
1964, que muitas famílias não tão privilgiadas assim reclamam até hoje
para saber onde estão seus familiares "desaparecidos", para enterrá-los
condignamente e dormirem em paz, temos de presenciar o festim -
celebrado em parceria com ongs chapa-branca e uma universidade jesuita -
para convidados especiais, trazidos a peso de ouro do exterior e de
outros cantos do país, regado a "coffe-breaking" e farta distribuição de
material impresso, em papel couché e capa dura entregues aos inscritos e
participantes do convescote.
É o caso de se perguntar: qual é
o sentido dessa celebração ritualistica sobre os 50 anos do golpe
militar? É entende-lo, exorcizar as fantasmas do passado e apontar
responsabilidades pelos crimes cometidos contra os direitos humanos ou
transformá-lo em mais uma efeméride comemorativa, destinada a gerar mais
publicações, mais repecursão midiática e dividendos eleitorais para
aqueles que se julgam herdeiros das vitimas? Essa celebração mórbida,
ruidosa e cara serve a tudo, menos à salvação da memória dos vencidos;
que deve sim se resgatada numa ordem de luta, de indignação, de
resistência e de protesto. Se não formos capazes disso, é melhor
silenciar sobre o passado. É o mínimo respeito que espera a memória dos
que ainda hoje clamam por justiça.
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador e professor da Universidade Federal de PE.
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