"Eu sou mameluco, eu sou leão do norte...."
Como as épocas históricas, os povos não são tradicionalistas por vocação. São por necessidade. Desde a Revolução de 30, quando as oligarquias estaduais perderam parte do poder de que gozavam, produziu-se um discurso saudosista, cujo objetivo era provar que o Brasil, a brasilidade, os brasileiros tinham nascido no Norte, no Nordeste, em Pernambuco ou em Apipucos, Olinda, nos Montes Guararapes ou no marco zero....
Essa astuta engenharia simbólica produziu uma religião, uma igreja e seus sacerdotes. O seu grão-mestre chamava-se Gilberto Freyre, e sua obra "a brasilidade nordestina". Na ausência da pompa e circunstância dos tempos dos barões, condes e viscondes, era indispensável agora escrever a epopeia civilizatória, a saga da oligarquia nordestina. Saga alimentada por mitos, fábulas e ficções que nos fizesse crer que éramos mais brasileiros do que os outros brasileiros. Criou-se até uma ciência cujo propósito era conferir legitimidade científica à fábula e os bardos armoriais passaram a falar em "nordestinados", "nor-destinos".
A posição de subalternidade econômica da nossa região, no contexto da nova divisão nacional do trabalho, passou a ser compensado com as proezas de João grilo, as memórias de alcova do senhor de engenho falido, ou a apresentação épica do patronato da "Casa Grande", os pais-fundadores da nordestinidade brasileira. Daí o salto para o nativismo, o nacionalismo, o republicanismo e até o socialismo caboclo foi rápido. Pernambuco era o berço precoce de todas as ideologias politicas modernas, convivendo é claro com o museu natural da história do escravismo e da dominação branca, cristã e lusitana, de que o patronato político sempre se achou hereditário.
Dessa tradição vem o costume de embalar os mortos e os falecidos com a bandeira do heroísmo, da honestidade, da coragem, da bravura indômita etc. O sujeito podia ter sido um cafajeste. Mas depois de morto, virava santo. A morte seria uma espécie de purgatório, que reabilitava as pessoas para a posteridade. Sobretudo, se fosse rico, bem sucedido, bem relacionado e influente. Aí, não tinha defeito o falecido. Só virtudes e qualidades. Imagine-se quantos mártires, santos e heróis pernambucanos não foram produzidos por essa astuta operação de elevação moral e cívica dos que se foram. Imagine os livros de estória (em quadrinhos) distribuídos nas escolas públicas com essa hagiografia cívica, produzida pela nossa "brasilidade nordestina"!
Essas considerações vem a propósito desse culto totêmico que costumamos fazer a determinadas personalidades politicas, econômicas e sociais da nossa região. Enquanto não formos capazes de "humanizarmos" essas criaturas, desmitologizando-as e reduzindo-as à sua condição de simples mortais, enterrando seus espíritos definitivamente nos jazigos e cemitérios, não construiremos jamais uma sociedade de homens e mulheres livres e iguais.
Michel Zaidan é filósofo, historiador e professor da UFPE
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