De garis e entulhos racistas: quem varre o quêO brasileiro tem vergonha de se demonstrar racista, mas está perdendo essa vergonha. O Brasil é tão racista quanto qualquer outro país. (Joel Rufino dos Santos) |
Antigamente, a gente ia ao cinema para ver mais do que o filme. Dentro dos cinejornais, aguardávamos com ansiedade a hora do Canal 100. Numa época em que as televisões engatinhavam, com tecnologias a lenha, as imagens do Carlinhos Niemeyer nos permitiam quase entrar nos estádios, com closes espetaculares, detalhes impossíveis de captar com as paquidérmicas câmeras de TV.
E não se diga que a paixão rubro-negra do Carlinhos privilegiava o Mais Querido. Tudo ao som viciante do Na cadência do samba (Que bonito é/as bandeiras tremulando/a torcida delirando/vendo a rede balançar...). Na era romântica do futebol, o Canal 100 foi um banquete. Tudo devagar, sem essa incontinência digital, que está fazendo o planeta nadar em informação e patinar em ignorância. Dizem que, até 2020, a produção de dados no mundo dobrará a cada dois anos. A criançada está cada vez mais conectada em máquinas e mais carente de contatos e conversas. Um psicólogo que escreveu sobre o assunto disse que já tinha visto um garoto escrevendo uma mensagem enquanto andava de bicicleta. Não é por nada não, mas isso é uma definição precisa de filme de terror, que as novas gerações já estão protagonizando. Eu, hein, Rosa?
Voltando à vaca fria. Inspirado em velhos cinejornais, escolho dois assuntos para exibir à distinta plateia. Não são tão voláteis quanto as inaugurações de estradas e os concursos de miss, arroz de festa das Atualidades Atlântida. O primeiro, se me permitem o bairrismo, foi a greve de garis no Rio. Em meio a declarações policialescas do prefeito Paes, nada espantosas na praia do engomado alcaide, creio que há algumas questões subterrâneas, estruturais, que merecem um olhar menos enviesado. Vamos a elas.
Antes de mais nada, o nível de desrespeito ao espaço público no Rio é descomunal. Não se trata apenas dos porcalhões, que, como o prefeito Paes, jogam restos de tudo no chão. Trafegar em automóveis nos acostamentos das estradas e nas faixas seletivas exclusivas de transportes coletivos, caminhar em ciclovias, pedalar em áreas de lazer restritas a pedestres, fumar e ouvir música em ônibus, estacionar em locais proibidos, pagar propina ao guarda de trânsito, pedir ao motorista de ônibus para dar um “jeitinho” e parar fora do ponto. São tantas as “pequenas” delinquências diárias que sumiram as fronteiras para elas se expandirem. Estamos em pleno vale tudo. Muitos cariocas, muitíssimos aliás, se julgam ixpertos, quando, em realidade, não passam de agentes conscientes da destruição da cidade. O que parece uma escala molecular, evolui em ondas e resulta numa convivência irrespirável. Neste contexto, reclamar do lixo acumulado durante uma greve pode parecer legítimo, mas não passa de ruído da multidão que tem enorme telhado de vidro.
Também me chamou a atenção um aspecto hipocritamente ignorado pelos meios de comunicação: as péssimas condições de trabalho dos garis. Ganhando menos de dois salários mínimos mensais, muitos deles são obrigados a inalar permanentemente lixo orgânico em decomposição, sem qualquer equipamento de proteção. Não há adicional de insalubridade que compense esta alimentação involuntária. Sim, alimentação. Tive um professor na faculdade que demonstrou que, ao cheirarmos, nosso organismo reage como durante o processo de ingestão de alimentos. Os garis comem, literalmente, porcaria.
São esses os trabalhadores que jornalistas inidôneos pediam, aos gritos, que voltassem logo ao trabalho, sem dar a eles o direito de defenderem suas reivindicações. Uma cobertura desprezível, patronal, de uma greve com aspectos complexos. Deu-se a palavra ao presidente da Comlurb e ao alcaide. O microfone e os monitores, no entanto, foram negados às lideranças grevistas. Qual foi o jornalista que pautou, por exemplo, uma reportagem sobre a rotina dos garis, para mostrar à população os que estavam sendo forçados a cruzar os braços, ameaçados de demissão?
Apesar de serem concessões públicas, os canais de televisão se comportaram, como de praxe, como braço intelectual da ideologia privada. O direito à informação abrangente foi sonegado.
Quando dois sindicatos, o dos petroleiros e o dos professores, hipotecaram solidariedade ativa aos grevistas, veio a tradicional reação pavloviana: estão politizando o movimento! Parece um déjà-vu da época da ditadura civil-militar. Política é crime, já diria o célebre filósofo-de-quepe Newton Cruz, o Nini de sei-lá-quantas estrelas. Ora, bolas, por que a burguesia pode internacionalizar-se, organizar-se horizontal e verticalmente, constituir organismos de autoproteção globalizados, e os trabalhadores devem restringir-se aos limites de suas categorias profissionais? Mais uma vez, a mídia reverbera, muito mais do que um preconceito, os imperativos de classe dos patrões.
Por fim, a greve atualizou uma velha questão do movimento sindical, abordada com propriedade por Lenin em Esquerdismo: a doença infantil do comunismo. O que fazer quando um sindicato se fossiliza e deixa de representar os interesses dos trabalhadores? Historicamente, se apresentavam duas alternativas. A primeira, tentadora, era abandonar o sindicato e trabalhar exclusivamente por fora da institucionalidade (o que Lenin criticava). A segunda impunha a luta dentro do aparato legal, único reconhecido pelos trabalhadores em condições não revolucionárias. Os garis que divergiram da direção sindical conseguiram uma importante vitória ao serem reconhecidos como interlocutores na negociação com a prefeitura. Agora, enfrentarão o dilema: conquistam o sindicato pelego e mudam sua orientação ou criam uma estrutura paralela? Qual será a melhor forma de organizar a massa de garis?
Passo ao segundo assunto. Desde moleque ouço dizer que o Brasil não é racista, que os casos detectados são isolados, que aqui a discriminação racial não sentou praça. Como se já não existissem provas fartas de que isso não passa de uma perigosa bobagem, agora vem o futebol para confeitar o bolo venenoso. Em poucos dias, um juiz e um jogador foram insultados por idiotas racistas. Não faz muito, um jogador do Cruzeiro foi vítima de racismo no Peru. Será uma escalada? O ódio racial nos estádios brasileiros terá saído do armário ? Difícil dizer. Como o futebol tem raízes fundas no imaginário brasileiro e, bem ou mal, reflete o que somos, cabe dar um trato na matéria.
A exclusão social, que, não raro, se confunde com vários preconceitos, está na origem do futebol no Brasil.
Em São Paulo, os primeiros times foram todos compostos pela elite branca, especialmente os oriundos das colônias inglesa e alemã. Quando o povo começou a organizar suas peladas em várzeas e pensou em aderir a uma proposta liga metropolitana, os clubes dos abonados se recusaram a misturar-se com os “canelas negras”, como desdenhosamente chamavam os varzeanos.
No Rio de Janeiro, há o caso da torcida do Fluminense. Em 1914, um século pois, chegou ao clube um jogador do América. Negro. Temeroso da reação dos torcedores, gente de nariz empinado, cobriu-se com pó de arroz para disfarçar a cor de sua pele. Foi só com muita luta que essas barreiras foram rompidas. Como, aliás, acontece com todas as causas populares.
Dos episódios recentes, sobram muitas constatações e perguntas. Os técnicos, mal chamados de “professores”, se omitem. A exceção é Muricy Ramalho. Felipão prefere distância indecente dos acontecimentos, achando que melhor é ignorar o racismo. Os cartolas fingem indignação, mas a revolta fica na retórica vazia de sempre. Os jogadores, sem lideranças reconhecidas e totalmente despolitizados (onde está o Bom Senso F. C. ?), vão a reboque dos acontecimentos.
Se tivessem um pouco de organização, não esperariam pelas nunca tomadas providências e se recusariam a continuar os torneios enquanto não se punissem as ofensas. Yaya Touré, da seleção de Costa do Marfim, propôs que os jogadores negros boicotem a Copa do Mundo da Rússia, em 2018, por conta do racismo de torcidas locais. Será que isso não devia valer para qualquer país? Não se combate a intolerância racial com bons modos. No país da Copa das Copas (sic), este não é um assunto menor.
Abraço.
E não se diga que a paixão rubro-negra do Carlinhos privilegiava o Mais Querido. Tudo ao som viciante do Na cadência do samba (Que bonito é/as bandeiras tremulando/a torcida delirando/vendo a rede balançar...). Na era romântica do futebol, o Canal 100 foi um banquete. Tudo devagar, sem essa incontinência digital, que está fazendo o planeta nadar em informação e patinar em ignorância. Dizem que, até 2020, a produção de dados no mundo dobrará a cada dois anos. A criançada está cada vez mais conectada em máquinas e mais carente de contatos e conversas. Um psicólogo que escreveu sobre o assunto disse que já tinha visto um garoto escrevendo uma mensagem enquanto andava de bicicleta. Não é por nada não, mas isso é uma definição precisa de filme de terror, que as novas gerações já estão protagonizando. Eu, hein, Rosa?
Voltando à vaca fria. Inspirado em velhos cinejornais, escolho dois assuntos para exibir à distinta plateia. Não são tão voláteis quanto as inaugurações de estradas e os concursos de miss, arroz de festa das Atualidades Atlântida. O primeiro, se me permitem o bairrismo, foi a greve de garis no Rio. Em meio a declarações policialescas do prefeito Paes, nada espantosas na praia do engomado alcaide, creio que há algumas questões subterrâneas, estruturais, que merecem um olhar menos enviesado. Vamos a elas.
Antes de mais nada, o nível de desrespeito ao espaço público no Rio é descomunal. Não se trata apenas dos porcalhões, que, como o prefeito Paes, jogam restos de tudo no chão. Trafegar em automóveis nos acostamentos das estradas e nas faixas seletivas exclusivas de transportes coletivos, caminhar em ciclovias, pedalar em áreas de lazer restritas a pedestres, fumar e ouvir música em ônibus, estacionar em locais proibidos, pagar propina ao guarda de trânsito, pedir ao motorista de ônibus para dar um “jeitinho” e parar fora do ponto. São tantas as “pequenas” delinquências diárias que sumiram as fronteiras para elas se expandirem. Estamos em pleno vale tudo. Muitos cariocas, muitíssimos aliás, se julgam ixpertos, quando, em realidade, não passam de agentes conscientes da destruição da cidade. O que parece uma escala molecular, evolui em ondas e resulta numa convivência irrespirável. Neste contexto, reclamar do lixo acumulado durante uma greve pode parecer legítimo, mas não passa de ruído da multidão que tem enorme telhado de vidro.
Também me chamou a atenção um aspecto hipocritamente ignorado pelos meios de comunicação: as péssimas condições de trabalho dos garis. Ganhando menos de dois salários mínimos mensais, muitos deles são obrigados a inalar permanentemente lixo orgânico em decomposição, sem qualquer equipamento de proteção. Não há adicional de insalubridade que compense esta alimentação involuntária. Sim, alimentação. Tive um professor na faculdade que demonstrou que, ao cheirarmos, nosso organismo reage como durante o processo de ingestão de alimentos. Os garis comem, literalmente, porcaria.
São esses os trabalhadores que jornalistas inidôneos pediam, aos gritos, que voltassem logo ao trabalho, sem dar a eles o direito de defenderem suas reivindicações. Uma cobertura desprezível, patronal, de uma greve com aspectos complexos. Deu-se a palavra ao presidente da Comlurb e ao alcaide. O microfone e os monitores, no entanto, foram negados às lideranças grevistas. Qual foi o jornalista que pautou, por exemplo, uma reportagem sobre a rotina dos garis, para mostrar à população os que estavam sendo forçados a cruzar os braços, ameaçados de demissão?
Apesar de serem concessões públicas, os canais de televisão se comportaram, como de praxe, como braço intelectual da ideologia privada. O direito à informação abrangente foi sonegado.
Quando dois sindicatos, o dos petroleiros e o dos professores, hipotecaram solidariedade ativa aos grevistas, veio a tradicional reação pavloviana: estão politizando o movimento! Parece um déjà-vu da época da ditadura civil-militar. Política é crime, já diria o célebre filósofo-de-quepe Newton Cruz, o Nini de sei-lá-quantas estrelas. Ora, bolas, por que a burguesia pode internacionalizar-se, organizar-se horizontal e verticalmente, constituir organismos de autoproteção globalizados, e os trabalhadores devem restringir-se aos limites de suas categorias profissionais? Mais uma vez, a mídia reverbera, muito mais do que um preconceito, os imperativos de classe dos patrões.
Por fim, a greve atualizou uma velha questão do movimento sindical, abordada com propriedade por Lenin em Esquerdismo: a doença infantil do comunismo. O que fazer quando um sindicato se fossiliza e deixa de representar os interesses dos trabalhadores? Historicamente, se apresentavam duas alternativas. A primeira, tentadora, era abandonar o sindicato e trabalhar exclusivamente por fora da institucionalidade (o que Lenin criticava). A segunda impunha a luta dentro do aparato legal, único reconhecido pelos trabalhadores em condições não revolucionárias. Os garis que divergiram da direção sindical conseguiram uma importante vitória ao serem reconhecidos como interlocutores na negociação com a prefeitura. Agora, enfrentarão o dilema: conquistam o sindicato pelego e mudam sua orientação ou criam uma estrutura paralela? Qual será a melhor forma de organizar a massa de garis?
Passo ao segundo assunto. Desde moleque ouço dizer que o Brasil não é racista, que os casos detectados são isolados, que aqui a discriminação racial não sentou praça. Como se já não existissem provas fartas de que isso não passa de uma perigosa bobagem, agora vem o futebol para confeitar o bolo venenoso. Em poucos dias, um juiz e um jogador foram insultados por idiotas racistas. Não faz muito, um jogador do Cruzeiro foi vítima de racismo no Peru. Será uma escalada? O ódio racial nos estádios brasileiros terá saído do armário ? Difícil dizer. Como o futebol tem raízes fundas no imaginário brasileiro e, bem ou mal, reflete o que somos, cabe dar um trato na matéria.
A exclusão social, que, não raro, se confunde com vários preconceitos, está na origem do futebol no Brasil.
Em São Paulo, os primeiros times foram todos compostos pela elite branca, especialmente os oriundos das colônias inglesa e alemã. Quando o povo começou a organizar suas peladas em várzeas e pensou em aderir a uma proposta liga metropolitana, os clubes dos abonados se recusaram a misturar-se com os “canelas negras”, como desdenhosamente chamavam os varzeanos.
No Rio de Janeiro, há o caso da torcida do Fluminense. Em 1914, um século pois, chegou ao clube um jogador do América. Negro. Temeroso da reação dos torcedores, gente de nariz empinado, cobriu-se com pó de arroz para disfarçar a cor de sua pele. Foi só com muita luta que essas barreiras foram rompidas. Como, aliás, acontece com todas as causas populares.
Dos episódios recentes, sobram muitas constatações e perguntas. Os técnicos, mal chamados de “professores”, se omitem. A exceção é Muricy Ramalho. Felipão prefere distância indecente dos acontecimentos, achando que melhor é ignorar o racismo. Os cartolas fingem indignação, mas a revolta fica na retórica vazia de sempre. Os jogadores, sem lideranças reconhecidas e totalmente despolitizados (onde está o Bom Senso F. C. ?), vão a reboque dos acontecimentos.
Se tivessem um pouco de organização, não esperariam pelas nunca tomadas providências e se recusariam a continuar os torneios enquanto não se punissem as ofensas. Yaya Touré, da seleção de Costa do Marfim, propôs que os jogadores negros boicotem a Copa do Mundo da Rússia, em 2018, por conta do racismo de torcidas locais. Será que isso não devia valer para qualquer país? Não se combate a intolerância racial com bons modos. No país da Copa das Copas (sic), este não é um assunto menor.
Abraço.
Jacques Gruman, no Portal Carta Maior
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