Artistas e intelectuais brasileiros relembram o horror e as mudanças causadas pelo golpe militar de 1964
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Redação
CULT pediu a algumas personalidades de diversas áreas um depoimento sobre a noite de 31 de março para 1º de abril de 1964 e a escuridão dos dias que se seguiram ao golpe que derrubou o presidente João Goulart e impôs a ditadura militar no Brasil. Sem uma pauta rígida, cada uma falou de suas lembranças mais fortes, em relatos mais ou menos emocionados, todos muito significativos. O jornalista e escritor Ignácio de Loyola Brandão preferiu enviar um texto completo. É esse documento que conduz o material colhido pela equipe da revista.
Arquivo/DP/D.A Press
O Brasil estava mudado e ninguém se dava conta
Ignácio de Loyola Brandão
No dia 31 de março de 1964 eu, com 28 anos, estava na redação do jornal Ultima Hora em São Paulo, onde era editor da UH Revista, o caderno de variedades. Eventualmente, era também o secretário gráfico, como é chamado hoje o editor, aquele que recolhe as matérias de todos os setores, distribui pelas páginas e manda para a gráfica.
A Ultima Hora, como a chamávamos carinhosamente (outros usavam o Ultima Hora, referindo-se ao jornal, portanto masculino; não gostávamos) era vendida em bancas, não tinha assinaturas. Concorria em tiragens com um jornal forte, tradicional como O Estado de S. Paulo, da oligarquia paulistana, e nosso “inimigo”, uma vez que defendíamos Jango Goulart, o PTB, os trabalhadores, sindicatos, os estudantes. O Estadão era pura UDN. Nunca imaginei que um dia seria um dos cronistas deste jornal.
A UH nasceu sob a égide de Getúlio Vargas. Para nós, Samuel Wainer, chefe e ídolo, foi dos maiores jornalistas deste pais. Ainda por cima era casado com uma mulher deslumbrante, a Danuza [Leão]. Nosso jornal era popular e moderno. Uma delícia ver nas bancas o design arrojado, as grandes fotos na primeira página, a ousadia dos títulos. O logotipo era azul; o da terceira edição, que saía à tarde, vermelho.
Adorava trabalhar em um jornal que tinha, entre outros, nomes como Nelson Werneck Sodré, Adalgisa Nery, Jorge Amado, Rachel de Queiroz, Octavio Malta, Stanislaw Ponte Preta, Armindo Blanco, Bresser Pereira, Danton Jobim, Wilson Rahal, Dorian Jorge Freire, Arapuã, Benedito Ruy Barbosa (esse mesmo, o autor de novelas hoje), o cartunista Otavio, Nélson Rodrigues, Rubem Braga, Arthur da Távola, Jô Soares, Agnaldo Silva (tambem novelista), Ricardo Ramos, Ibiapaba Martins (dois belos autores), Egydio Squeff, Vinicius de Moraes, Tati de Moraes, Jacinto de Thormes (ele modernizou a crônica social provinciana), Walter Negrão (outro novelista), Denis Brian, Juca Chaves, Jaguar, Roberto Freire (o escritor, não o político), Fernando de Barros (o cineasta). Uma bela turma.
Minha geração tinha vivido crises como a morte de Getúlio, em 1954, a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, o impasse que conduziu ao parlamentarismo, no mesmo ano. Lembro-me que na renuncia do Jânio fui enviado à Base Aérea de Cumbica, para entrevistar o presidente fujão, que ali tinha se escondido. Cumbica não era o que é hoje, longe disso. Ficamos diante de uma porteira (era um batalhão de jornalistas). Vigiados por soldados armados, passamos a noite inteira debaixo de chuva. Para telefonar tínhamos de ir até Guarulhos, encontrar um bar aberto, pagar pela ligação. No meio da manhã, Jânio saiu, abriu uma janela, olhou para aquele grupo faminto, cansado, molhado e disse: “Bom dia, meus senhores. Passar bem!” E se foi.
Uma crise mais recente se desenrolava no país em 1964. No dia 13 de março, no Rio de janeiro, o presidente João Goulart realizara um comício tenso ao lado de Brizola em que pregara a desapropriação das petroliferas e a reforma agrária. Bandeiras vermelhas exigiam a legalização do Partido Comunista. Dali em diante, veio a efervescência, que já corria por baixo. No dia 19 de março, em São Paulo, aconteceu a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, com milhares de pessoas nas ruas, gritando contra o “comunismo”. No Rio de Janeiro, os marinheiros tinham se revoltado, havia greves por toda parte, crise econômica.
Na verdade, o golpe não era coisa apenas do Exército, a população também encampou, a classe média adorou, a elite se regozijou. A esquerda, os sindicatos rebatiam: estamos prontos para anular qualquer golpe. Na hora do golpe, o abastecimento de água não foi cortado; a luz não foi cortada; os transportes continuaram a funcionar; as fábricas, telefones, tudo. Não havia nenhum esquema de “contra revolução”.
Naquele 31 de março, reunidos no jornal, seguíamos as notícias da descida do general Mourão Filho na direção do Rio de Janeiro (vindo de Juiz de Fora) rodeado pela tropa. Estava no ar uma dúvida. Se o comandante do II Exército, São Paulo, general Amaury Kruel ia aderir ao golpe. Se não, o golpe não se concretizaria facilmente. Na redação, esperávamos em suspenso. As noticias não chegavam. Kruel tinha sido ministro da Guerra de Jango. Quem sabe resistisse? Não resistiu. Eram cinco da manhã quando chegou a informação: Kruel tinha aderido ao golpe militar. Estava acabado. Era primeiro de abril.
Fomos dormir inquietos, cansados, sem a mínima noção do que iria acontecer com o jornal que sempre apoiara Jango. Décadas mais tarde, em uma Comissão da Verdade, um velho major, de nome Moreira, garantiu que o general Amaury Kruel foi “comprado” com várias malas de dólares, que ele mesmo, Moreira, levou ao porta-malas do carro do general, falecido em 1996, se não me engano.
Dia seguinte, primeiro de abril, chegamos ao jornal no horário habitual, às 14 horas. A cidade parecia normalíssima, gente na rua, congestionamentos (não são de hoje), comércio, lanchonetes, restaurantes, cinemas e bancos abertos. Pouco depois chegou ao jornal uma informação ameaçadora. A de que o CCC, Comando de Caça Aos Comunistas, estava saindo do Mackenzie, fortemente armado, rumo à Ultima Hora, para depredar, incendiar, acabar com o jornal. As grandes janelas e portas de ferro foram abaixadas, a direção comunicou que todos deviam se retirar. Logo se ouviu um murmúrio: “Abandonar o jornal?”
Tínhamos receio, mas aquele jornal nos dera emprego, nos sustentara, trabalhávamos ali porque gostávamos dele, de sua linha. Ir embora? Até a aristocrática grega AlikKostakis, colunista social das mais lidas da cidade, não arredou pé: “Se tiver de morrer, morremos aqui!” Nos fundos do jornal havia um paredão de pedra, que sustentava o Colégio São Bento, impossivel de ser escalado. Onde era o jornal hoje é um estacionamento. Houve quem desertou, inclusive um conhecido diretor, mas para que mexer nisso? Disse que ia para o hospital ver a mulher internada. Voltou?
Olheiros do jornal foram para a Rua Xavier de Toledo, para observar, mandar informações. Era caminho do CCC para chegar ao Anhangabaú, onde estava nossa redação. Horas de espera. A turba vinha lenta, atrapalhava o trânsito, gritava slogans anti Jango, anti comunismo, “viva os militares”, o “Brasil está salvo dos vermelhos”. Mostravam as armas. Nem um só policial apareceu, nem um soldado da polícia do exército. Aquilo era café pequeno diante do rebuliço no Rio e em Brasília. Jango já tinha deixado a capital rumo ao Rio Grande do Sul.
De repente, um telefonema. Na praça Ramos de Azevedo, o CCC trinha se desviado para a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. “Ali está nosso verdadeiro inimigo”, proclamavam. O jornal estava a salvo. Por enquanto. Aliviados, mas ainda em sobressalto, continuamos a fazer o jornal normal. Logo soubemos que a redação do Rio de Janeiro tinha sido invadida e destruída. Nosso futuro se acabava ali?
Fim da tarde, caminhões com tropas de choque da Força Pública (hoje PM) estacionaram em frente ao jornal, desceram soldados armados, chutando portas, quebrando o vidro da cabine da telefonista (nós a chamávamos de peixinho, parecia um aquário o lugar), penetraram na redação, arrancaram telefones, gritavam para que saíssemos, quebravam máquinas de escrever, arrancavam laudas, rasgavam, punham fogo nos cestos de lixo. Subiram ao setor chamado copyright, onde estavam os teletipos e os equipamentos de telefotos que recebiam as agências internacionais, depredaram. Silvio Di Nardo, que cuidava do setor, foi acuado, ameaçado.
Alguns foram presos, não me lembro mais quais. O jornal ficou fechado. Fui para a casa do cineasta Fernando de Barros, fiquei ali abrigado. Telefonei para minha casa, meu pai quis saber se eu estava bem, anunciou que a cidade estava calma. Também São Paulo estava. Naquela noite fui para o Gigetto, então na rua Nestor Pestana. O restaurante era uma instituição. Estava lotado, fervia, conversas desencontradas, inquietação no ar. Ali se reuniam artistas, diretores, jornalistas escritores, artistas plásticos, havia de tudo.
Certo momento, empurrrando a porta com arrogância, caminhando com passos firmes, rostos orgulhosos, entraram dois conhecidos jornalistas da TV Tupi, Maurício Loureiro Gama, comentarista político, e o Tico-Tico, José Carlos de Morais. Estranhamos, não eram frequentadores. Soberbos, pararam na primeira sala e anunciaram: “O Brasil será outro daqui para a frente.” Para eles, a classe artística era subversiva com o Teatro de Arena, o Oficina, o CPC, a obra de Plínio Marcos, etc. Foram para os fundos à procura de mesa, jantaram sozinhos, ninguém os cumprimentou, falou com eles.
Nos dias seguintes circulei. Era como se nada tivesse acontecido, a vida continuava normal. Bares e supermercados cheios, cinemas, boates, ruas, ônibus. Ninguém tinha ideia de que tudo estava mudando?
Acho (a noção de tempo se diluiu em minha cabeça) que três semanas depois o jornal foi reaberto. Samuel Wainer tinha partido para o exílio. Muitos jornalistas presos. Outros desapareceram, saíram de circulação. Faltava muita gente. Os anunciantes se retraíram, éramos o “inimigo”. Mas havia um elemento novo na redação.
Um homem odiado, o censor. Ele era presença física em todas as redações, naquela que é considerada a fase pré-histórica da censura. Ele tinha mesa à sua disposição, junto ao secretário gráfico e editores principais. Tudo que seria publicado passava por ele, que autorizava ou vetava. As primeiras matérias proibidas nos deixaram perplexos. Não sabíamos o que fazer. Deixar em branco, trocar por o quê? Não havia diálogo, o homem dizia: “problema de vocês”. Os prazos de fechamento estouravam. Fomos proibidos de deixar espaço em branco. Quando perguntávamos por que, ele respondia: “Porque sim. Porque quero. Porque é contra a democracia”. Bela “democracia” a que eles estavam instalando.
Helena Ignez, atrizEm 1964 eu tinha 24 anos e estava no Rio de Janeiro trabalhando em teatro, o Centro Popular de Cultura (CPC) e na UNE (União Nacional dos Estudantes). Trabalhava também junto às Ligas Camponesas, fora do Rio. Eu estava exatamente do lado oposto ao golpe, e a notícia foi um golpe que começou a endurecer cada vez mais e a se tornar criminoso, destruindo as vidas de minha geração, que estavam engajadas politicamente, como eu.
Quando veio o AI-5, ficou impossível ficar no Brasil. Saímos e fomos em um grupo grande para Londres. Eu e o cineasta Rogério Sganzerla, meu marido, ficamos menos de um ano em Londres. Voltei dois anos depois, mas na clandestinidade. Não podia aparecer. Hoje em dia, em mim, não há resquícios da época. Somente uma apreensão muito grande em relação à perda de liberdade, que pode acontecer, como essa repressão às manifestações. Isso me assusta, essa guinada talvez para a direita que o país está tendo agora, de novo. Desarmar a polícia: é isso que nós desejamos; que a violência comece uma contagem descendente.
Clóvis Rossi, jornalista[Naqueles dias] eu circulava entre dois focos da conspiração, cobrindo o golpe para o jornal carioca Correio da Manhã. Ia do Palácio dos Campos Elíseos, sede do governo paulista, ao QG do então 2º Exército, à época no centrão (rua Conselheiro Crispiniano). No começo, o empoderamento dos militares me afetou pouco, mas aos poucos a censura foi se instalando e complicando o trabalho.
Ney Matogrosso, cantorO golpe não afetou o meu trabalho porque nessa época eu era funcionário publico em Brasília, onde morava. Eu trabalhava em um hospital e recebi a noticia com espanto e revolta. Defendi tanto o Jango que meu primo dizia que eu era comunista – e eu não era absolutamente comunista, mas eu defendia porque o Jango era o vice-presidente e tinha que assumir e governar até o fim do mandato .Eu comecei a observar muitas coisas acontecendo ao redor: amigos desaparecendo, isso logo no tempo do Castello Branco, que foi o primeiro. Fiquei sabendo que ele foi assistir algum concerto na Escola Parque em Brasília e uma menina que eu conhecia puxou uma vaia para ele. Essa menina desapareceu e, quando reapareceu, estava sem o bico dos seios – eles tinham cortado fora. Essa foi a primeira má impressão que a revolução deixou..revolução nenhuma, né? Um Golpe Militar. Então, não podem dizer que só em 1968 que a coisa ficou ruim: já em 1964 uma menina desapareceu e reapareceu sem os bicos dos seios. Além disso, eu sabia que muita gente estava sendo presa e que muita gente fugia de Brasília. Eu não fazia faculdade, mas tinha muitos amigos na Universidade de Brasília, que eu freqüentava bastante, porque era o que havia de mais avançado dentro do Brasil naquele momento. Experiências eram feitas por cientistas internacionais por lá, e foi tudo destruído a cacetete. Livros que não eram escritos em português – livros de artes maravilhosos – eram rasgados e queimados, e isso tudo ali, no comecinho. Hoje, eu acho que todos esses políticos que estão no poder estão envolvidos com isso, ou para o bem, ou para o mal.
Chico de Oliveira, cientista políticoNo dia 31 de março para 1º de abril, em Pernambuco, o centro de articulação era o Palácio do Governo, onde Miguel Arraes era governador. Ele não reagiu. Eu me desloquei da sede da Sudene, que era bem perto do Palácio do Governo de Pernambuco, e fui para lá, onde todo mundo que tinha uma importância política estava reunido. Não teve um ato institucional do golpe de estado, mas me lembro muito bem de ter testemunhado o comandante da Marinha (havia guarnição em Recife) convidando Arraes a permanecer como hóspede das Forças Armadas. Ele respondeu, com muita dignidade, mas sem capacidade de reação, que não poderia ser hóspede dele mesmo.
Essa típica amabilidade brasileira mostrava que os golpistas não tinham noção de que a oposição não tinha capacidade de reagir, e que os dominados de fato não tinham capacidade e avaliação da dimensão do golpe. Era um diálogo de surtos. Até que o comandante da Marinha deu ordem de prisão a Miguel Arraes, num ato bastante brasileiro: dizia-se que Arraes estava preso, mas, na verdade, não estava.
Eu e Celso Furtado fomos convidados a deixar o Palácio do Governo. Não precisei de aviso. Aquela mobilização em torno do Palácio mostrava que as forças da situação, legais, não tinham capacidade de reagir ao golpe, já desfechado. Dizia-se que era preciso ver a posição de São Paulo. O golpe era tipicamente brasileiro, uma acomodação de partes, sem muita violência, do tipo que se vê em revoluções. Era um acordo de comadres: uma mais poderosa, outra menos. As consequências é que seriam fatais e direcionariam a política e a economia brasileiras para sempre. Até hoje vivemos um modelo que se tornou hegemônico a partir do golpe.
[Para mim], iria começar uma roda viva de depoimentos e interrogatórios, e eu me mandei para o Rio de Janeiro. Terminei por renunciar não só ao meu cargo (na Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste – Sudene), mas à carreira de funcionário público. Um amigo me convidou para ir a são Paulo e redirecionei minha vida. A Sudene pagou preço muito alto pelo golpe. O Nordeste em geral era tido como o barril de pólvora brasileiro, e estouraria a qualquer momento. Foi um erro imenso. Não estourou, como não estourou até hoje.
Maria Bonomi, artista plástica
Uma bela manhã, o local (Estúdio Gravura, de Lívio Abramo, de quem era assistente) apareceu destruído e fomos acusados de atos subversivos. Lívio foi aconselhado a se exilar no Paraguai e nós encerramos nossas atividades. Tive minha vida monitorada desde então pelos órgãos de repressão e fui excluída de uma infinidade de oportunidades públicas, artísticas e sociais. A partir de 1964, estabeleceu-se um forte divisor de águas, que culminou para mim com o aprisionamento em 1974, como consta dos autos de minha defesa, por acusação de participar de atividades subversivas.
“A requerente foi aprisionada, encapuzada e amarrada sob mira de revólver por ‘Raul Careca’ e colocada violentamente no piso de um carro que percorreu a cidade por horas. Conduzida juntamente com o jornalista Alberto Beutenmuller, foram pegos brutalmente no MAM, no final de uma palestra, no Ibirapuera, por um grupo fortemente armado que, de um local isolado, os levaram para o quartel da Rua Tutóia, onde procederam aos interrogatórios isoladamente e onde Maria foi acusada de vários fatos. Sempre amarrada.”
Desenvolvi minha atividade profissional a duras penas, mas havia muita gente em zonas de apoio e resistência, mesmo dentro da Bienal e dos museus. Trabalhei com o Leste Europeu, onde fomos reconhecidos e ajudados — apesar de que quem fizesse isto fosse mal interpretado por aqui. O monitoramento era impressionante.
Emir Sader, cientista políticoNaquela época eu era estudante na Maria Antonia, na Faculdade de Filosofia. Na verdade, o golpe foi na madrugada, na noite do dia 31 de março. No dia 1º de abril, fomos para a faculdade e ficamos esperando uma manifestação se formar. Dois dias depois, veio a consequência concreta: invadiram a Faculdade de Filosofia. O resto era o que já se conhece: de imediato, veio a prisão de personagens públicos, quem estava mais exposto, como Darcy Ribeiro. As primeiras pessoas começaram a sair efetivamente do país. O próprio ex-presidente (quem?) da União Nacional dos Estudantes (UNE) foi um dos primeiros a sair do Brasil, o que foi um baque.
Mas a maior virada foi no AI-5, em 1968. Este teve consequências maiores, intensificando a repressão. Começou a ser decretada prisão de professores e alguns saíram preventivamente do país. Mais adiante, eu tinha vida dupla: por um lado, era professor na Universidade de São Paulo (USP); por outro, tinha militância clandestina. Em 1969, houve a revelação de que eu era militante. Preventivamente, fui para a clandestinidade e, mais adiante, sai do Brasil, no final de 1970. Primeiro fui para o Chile, mas passei pela Argentina, por vários lugares. Voltei no final de19 83. Antes, eu havia perdido meu cargo na USP. Fui condenado a quatro anos e meio de prisão. Mas a Faculdade de Filosofia tinha o critério de devolver os cargos às pessoas, e teve a anistia depois, então, quando voltei, me foi devolvido meu cargo na faculdade.
Todo o período teve um clima muito opressivo. Dando aula, eu começava a saber de notícias de gente muito jovem que desaparecia. No jornal, as notícias, em parte, tinham o objetivo de constranger, no sentido de mostrar o que pode acontecer com quem resiste. A imprensa toda era conivente com isso. A preocupação maior naquele momento era entender o que tinha acontecido. O artigo mais significativo que corria no meio intelectual era o do Celso Furtado, que tinha sido ministro do Planejamento no governo Jango (João Goulart). Ele associava industrialização com democracia, sendo assim, o fim da democracia significaria um retrocesso econômico. O maior autor da época, que foi copiado e repassado clandestinamente, foi o Ruy Mauro Marini, que falava diretamente as razões básicas do golpe do Brasil. Estava claro que o país não tinha uma esquerda tão forte quanto outras na América latina.
Aos poucos, o país chegava num dilema: houve de cara um arrocho salarial, e isso representava uma lua de mel para empresariado, porque não havia aumento de salário. A economia foi sumamente concentradora de renda durante a ditadura. E a repressão salarial teve reflexo no setor público: foi nesse momento em que começou a deterioração da educação e da saúde públicas. A classe média começou a ir para escola privada, começaram a aparecer planos de saúde privados… Houve um distanciamento entre classe média e setores pobres que perdura. Isso é uma mudança importante na vida da sociedade.
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
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