A que horas ela volta?
Por José Luiz Gomes
(cientista político)
(cientista político)
A sociedade brasileira nunca foi muito tolerante mesmo. Isso é histórico. Mas, nos últimos anos, observa-se um índice insuportável de práticas de intolerância – dirigidas a alguns grupos sociais específicos – notadamente aos políticos ligados ao PT, aos homossexuais, aos negros, às mulheres e aos mais fragilizados socialmente, que não contam com aquela blindagem dos bem-nascidos. As práticas de “justiçamento” nas ruas, por exemplo, acentuaram-se nos últimos meses, tornando o país campeão mundial nessa “modalidade” de justiça com as próprias mãos. Ex- ministros como Guido Mantega, Alexandre Padilha e, mais recentemente, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, foram vítimas de hostilidades. Eduardo Cardozo, em passeio pela Avenida Paulista, não contava com um grupo de manifestantes contra o Governo Dilma, que o identificou no outro lado da rua, e passou a agredi-lo.
Grosso modo, ao invés de diminuir, nossos padrões intolerância vem aumentando sensivelmente. No noite de sábado, no Cinema do Museu do Homem do Nordeste, da Fundação Joaquim Nabuco, recentemente inaugurado no bairro de Casa Forte, ocorreu a exibição do filme A Que Horas Ela Volta, seguido de um debate com a sua idealizadora, a cineasta Ana Muylaert. Não acompanhei o filme, mas os comentários indicam que se trata de uma película que se contrapõe ao machismo, colocando a mulher como protagonista. Depois da exibição, mediado pelo Luiz Joaquim, curador do Cinema do Museu, seguiu-se um debate. Eis que estavam no auditório, dois conhecidos cineastas pernambucanos, Cláudio Assis e Lírio Ferreira. Segundo dizem, sob o efeito de álcool, os dois cineastas teriam dirigidos ofensas e grosserias à diretora do filme, além de outros comentários desabonadores. Sobrou até para o maquiador, tratado como uma “bichona”.
O ser humano é realmente muito contraditório. Gosto muito dos filmes de Cláudio Assis. Assisti Amarelo Manga, Baixio das Bestas, Febre do Rato. Temas como a homossexualidade, a prostituição, a exclusão social são muito bem abordados em seu trabalho. Não conhecemos o outro jovem cineasta, Lírio Ferreira. A nós, de certa forma, a julgar pelos seus filmes, surpreende as atitudes de Cláudio Assis, visivelmente contraditórias. De imediato, a postura dos dois cineastas foi repudiada pela plateia presente ao debate. Depois, pelas redes sociais, o tema alcançou uma enorme repercussão. Em sua esmagadora maioria, o público condenou veementemente a atitude dos dois cineastas, típica de um comportamento eminentemente machista, de caráter preconceituoso. Quem tiver a curiosidade de observar o perfil de Cláudio Assis na rede Facebook, irá observar que a diretora ofendida é a roteirista do seu próximo filme.
Há coisas que não tem mais como consertar. A justificativa de Lírio Ferreira, de que estava sob efeito do álcool, pedindo desculpas à cineasta, longe de arrefecerem os ânimos, apenas colocaram mais lenha na fogueira dessa discussão. A Fundação Joaquim Nabuco, por sua vez, em duas notas, repudia o ocorrido; reitera seu respeito ao público presente à exibição do filme e ao debate que se seguiu; informa sobre os seu caráter plural, democrático e tolerante; e aplica uma punição aos dois cineastas, excluindo-os, durante um ano, da exibição de filmes e outros eventos dos dois cineastas em seus equipamentos.
A polêmica, no entanto, não se encerra por aqui. Longe disso. Continuam, pelas redes sociais, as discussões em torno do tema, agora relacionados ao caráter da punição aplicada aos dois cineastas. Não vou entrar aqui nos “fuxicos”, que apontam para a reincidências dessas atitudes, em outras ocasiões. Pelas postagens das redes sociais, parece convergir um consenso em torno da reprovação da atitude dos dois cineastas e o apoio das medidas da Instituição em relação ao caso. Houve quem observasse, no que concerne à proibição da exibição dos filmes, uma espécie de retorno aos tempos obscurantistas do regime militar, onde obras de arte eram solenemente censuradas pelo governo. Mas, como a medida é temporária e circunscrita aos equipamentos da Instituição, logo se percebeu que havia um certo exagero aqui. Quanto à punição pessoal, parece haver mesmo um consenso sobre o assunto, conforme observamos.
Como bem observava o filósofo francês, Pierre Bourdieu, ao contrário do que dizem os antropólogos, pouquíssimas coisas em nossa sociedade são “naturais”. Ensina-se o preconceito, aprende-se a ser machista. Uma das possibilidade de coibir esse círculo vicioso é através da educação, de medidas pedagógicas, que punam ou inibam esses comportamentos. No final, o que houve ali foi uma tentativa de inibir um discurso emancipatório feminino, proferido por atores que até trabalham muito bem esses temas em suas películas, mas, como seres humanos de uma sociedade patriarcal, aqui e ali – ali pelo menos estão interditados durante um ano – acabam externando atitudes preconceituosas, sob ou sem o efeito do álcool. O álcool não é machista. Eles são. Precisam reavaliarem as suas posições. Medidas pedagógicas como as tomadas pela Fundação Joaquim Nabuco ajudam bastante.
(Publicado originalmente no blog do Jamildo)
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