Há um romance épico sobre a saga do povo gaúcho chamado O tempo e o vento. Neste
romance o personagem "Bibiana" faz uma imprecação contra os ventos do
mes de agosto, dizendo que eles trazem sempre um mau presságio, uma
desgraça, uma catástrofe, coisa assim. E existe mesmo uma frase do
autor, Érico Veríssimo, indagando se no paraíso tem ventos.
Independentemente do que pensam os gaúchos sobre os augúrios do mes de
agosto e seus ventos, este mes costuma ser lembrado como um período de
desgraças, basta recordar o suicídio de Getúlio ou a morte de Arraes.
Pois foi exatamente no dia 13 de agosto de 2014 que "desapareceu" em
São Paulo o ex-governador de Pernambuco, com a explosão de um "avião
fantasma" de titularidade até agora não esclarecida.O político
pernambucano estava em plena campanha presidencial e era um trunfo
importante nas eleições estaduais.
A sua morte, em agosto do ano
passado, em circunstâncias trágicas e nunca elucidadas, alimentou uma
espécie de messianismo atávico que, em situações como estas, tende a
produzir uma taumaturgia política que beneficia sempre os aliados, os
protegidos, a família do falecido.É preciso dizer que o nosso povo é
pródigo em alimentar mitos e mitologia, às vezes de pés de barro e
fortemente reforçado pela grande mídia. Há também, entre nós, uma
jurisprudência penal curiosa:a morte (mais ainda em circunstâncias
trágicas e desconhecidas) redime todos os malfeitos, os ilícitos
penais, os crimes contra a República. Existe no Brasil, como na história
do Cristianismo, os bons ladrões e os maus ladrões. No geral, os bons
ladrões estão mortos, embora possam ser beneficiados (ou os seus) pelos
ilícitos cometidos. Os maus ladrões são os "bodes expiatórios", as
"genis", os "judas" da vida, expostos todos os dias pela televisão, as
revistas e os jornais, a sanha execradora e vindicativa da população
mais pobre e pouco escolarizada. Os que morrem têm sempre o benefício da
dúvida, a presunção de inocência ou a compaixão dos vivos. Os que ficam
cumprem o papel de ajudar exorcizar a raiva, o descontentamento, a
frustração dos vivos.
Esse preâmbulo foi escrito em
razão de uma sentença absolutória proferida pelo sr. Sérgio Moro, sem
nenhum alarido da mídia, sobre os implicados aqui de Pernambuco nos
escândalos das operações da "Lava-a-Jato". O Excelentíssimo
juiz-vingador público alegou que com a morte de dois ilustres políticos
do grupo de suspeitos, apontados, nas delações premiadas do senhor
Paulo Roberto Costa, por ocasião da construção da refinaria Abreu e
Lima, o processo se extinguiria, pois não havia como processar,
denunciar e sentenciar que já morreu. Pronto, resolvido o assunto. Era
só esperar o Juízo Final, para ver quem ia direto para o inferno ou quem
alcançaria, pelo menos, o purgatório, já que para o céu dificilmente
ninguém iria. Havia entre esses, políticos ligados ao PSDB, ao PSB e o
PMDB. Mas os jornais solicitamente silenciaram sobre o caso, como
continuam calados.
Muito bem. Quem morreu, morreu.
Mas há muita gente viva, vivíssima, querendo usar o capital político, o
patrimônio moral e material dos falecidos para se eleger a isso, àquilo,
a esse cargo, àquele cargo etc. Houve até uma procissão, com a estampa
reproduzida em estandarte com a figura impoluta do falecido, em ato
nitidamente eleitoral. Os apaniguados, cupinchas, afilhados, protegidos
ou mesmo os aventureiros que farejam o que podem ganhar se aproximando
desse cortejo, estão utilizando e vão utilizar a memória do morto como
trunfo político, como se os eleitores fossem destituídos de qualquer
forma de discernimento político ou moral. Crentes ou fiéis desse
neo-messianismo familiar, que acham que os mortos não têm defeito algum
e que é de péssimo costume falar acrimoniosamente de quem já se foi.
Aqui é onde entra a necessidade de
um julgamento póstumo, como em outros romances realistas fantásticos de
Érico Veríssimo. Os mortos ressuscitam para ouvirem uma condenação pelo
que fizeram ou deixaram. Sobretudo pela eleição de gestores
incompetentes, midiáticos, que transformaram o Estado e a cidade numa
imensa cratera moral, alimentada por taxas, contribuições e impostos,
que não produzem nenhum retorno social. É necessário fazer esse
julgamento - com todo respeito pela tragédia do falecido - porque a
memória de um político é um ativo disputado a tapas pelos acólitos,
pelos epígonos, pelos puxa-saco e coisa que o valha. Interessa à
sociedade passar a limpo o que produz e o que constitui essa memória,
para que o embuste, a fraude política não se perpetue, através dos paus
mandados, e continue a prejudicar ao povo de Pernambuco.
Pode ser que, assim, o falecido descanse em paz.
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da UFPE e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE
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