Luis Fernando Veríssimo - O Estado de S.Paulo
Eu sei que a coisa é séria. Se o Kim Jong-un disparar
mesmo os foguetes que está ameaçando disparar contra bases americanas na
Ásia, teremos uma guerra nuclear com dimensões e consequências
imprevisíveis. Mas lendo sobre o perigo iminente não pude deixar de
pensar na história do homem que foi atropelado por uma carrocinha de
pipoca. Era um homem cauteloso que olhava para os dois lados antes de
atravessar a rua e só atravessava no sinal, e que dificilmente um carro
pegaria. Mas que um dia não viu que vinha uma carrocinha de pipoca, e
paft. Já no ambulatório do hospital, onde lhe deram uns pontos no braço,
o homem disse que tinha sido atropelado por um motoboy. Em casa, contou
que tinha sido atropelado por um carro e só por sorte escapara da
morte. Naquela noite, para os amigos que souberam do acidente e foram
visitá-lo, especificou: tinha sido atropelado por um BMW. No dia
seguinte disse aos colegas de trabalho que tinha sido atropelado por um
caminhão e não sofrera mais do que um corte no braço por milagre. E
quando um dos colegas de trabalho comentou que tinha visto o acidente e
vira o homem ser atropelado por uma carrocinha de pipoca, gritou:
"Calúnia!".
Por que me lembrei do homem que tinha vergonha de ter sido atropelado
por uma carrocinha de pipoca? Desde o fim da Guerra Fria a
possibilidade de um confronto nuclear entre duas potências, os Estados
Unidos e a Rússia, diminuiu, mas os estoques de armas nucleares
continuaram e sua proliferação também. Israel se segura para não usar
seus foguetes para destruir as bombas nucleares que o Irã está ou não
está construindo, Índia e Paquistão vivem comparando seus respectivos
arsenais nucleares como guris comparando seus pipis, a França e a
Inglaterra têm a bomba... Enfim, ainda se vive num frágil equilíbrio de
terror possível, exigindo de todos os nucleares um cuidado extremo, um
cuidado de atravessar a rua sem serem atropelados pelo imprevisto. E aí
aparece o Kim Jong-un empurrando uma carrocinha de pipoca em alta
velocidade...
Thatcher. Margaret Thatcher, aquela que encantou tantos com sua
sentença de que sociedade não existe, lutou duas grandes guerras: uma
contra o sindicato dos mineiros ingleses e outra contra os argentinos
para que as ilhas Malvinas continuassem Falklands. Esta última teve mais
mortos mas foi mais fácil. Sua vitória sobre os mineiros arrasou com os
sindicatos e lhe deu forças para arrasar com o sistema de bem-estar
social da Inglaterra e sua vitória sobre os generais de opereta da
Argentina lhe rendeu glória e votos. No seu prontuário, além dos mortos
para conservar um cisco do império no Atlântico Sul estão presos
irlandeses em greve de fome que ela deixou morrer e todas as vítimas do
neoliberalismo triunfante.
Nenhum comentário:
Postar um comentário