O que é democracia: Uma ideia tantas vezes subvertida
A ideia de um governo da maioria é frequentemente
subvertida para se prestar aos mais variados interesses. Numa época em
que é cada vez mais intenso o debate sobre os direitos das minorias,
estas considerações da historiadora indiana Romila Thapar são bastante
importantes
Por Romila Thapar - Por solicitação da Unesco
Em O Fim da História, o pensador norte-americano Francis Fukuyama
dizia que, com o colapso do comunismo, a democracia e o capitalismo se
firmaram como os grandes vitoriosos entre todos os sistemas e ideologias
existentes. Mas democracia é um conceito esquivo, como se tem visto
muito recentemente.
O Ato Patriótico, assinado pelo ex-presidente norte-americano George
W. Bush após os atentados de 11 de setembro de 2001, por exemplo, ia
contra uma série de direitos civis. Há dúvidas consideráveis a respeito
de os atuais regimes da Venezuela e do Irã poderem ser considerados
democracias. A historiadora indiana Romila Thapar, professora emérita da
Universidade Jawaharlal Nehru, de Nova Delhi, analisa a seguir os
vários aspectos que cercam a ideia de democracia.
Nas cidades-estado gregas, os escravos eram a maioria
O ideal democrático nunca foi totalmente traduzido na prática. Muitas
das chamadas sociedades democráticas do passado foram sequestradas e
tornaram-se oligarquias em que a retórica democrática era usada para
preservar a ficção de que o grupo dominante representava a maioria.
As cidades-estado gregas, por exemplo, são frequentemente citadas
como as primeiras democracias, mas é convenientemente esquecido que,
nelas, o número de cidadãos livres era superado pelo de escravos e estes
não eram representados nem tinham qualquer direito. À luz da
experiência histórica, como a democracia pode ser adaptada às
circunstâncias atuais?
Nos tempos modernos, a democracia tem sido frequentemente associada
ao Estado-nação. Mas talvez não devêssemos esquecer a experiência das
unidades políticas e sociais menores que, no passado, foram governadas
adotando programas semidemocráticos.
Aqueles que buscaram dotar o Estado-nação de uma identidade,
associando-o à classe média ou a um grupo regional, linguístico, étnico
ou mesmo religioso, afirmaram estar fazendo isso em nome da democracia.
Às vezes, tem-se argumentado, essas comunidades eram fictícias e sua
identidade ostensiva camuflava aspirações ocultas.
Ao equiparar-se a identidade do grupo ao nacionalismo, as causas
democráticas e nacionais se uniram. Mas, nesses Estados-nações, o
funcionamento da democracia era limitado pelo nacionalismo ao qual
estavam ligados. Agora que o Estado-nação está sendo cada vez mais
questionado, devemos também questionar a democracia - ou certos tipos de
democracia?
Uma questão que poderia ser feita é se a democracia pressupõe o
secularismo. Em muitas partes do mundo, a religião está sendo manipulada
politicamente numa escala sem precedentes. Ao dizer isto, não estou
contestando o direito de as pessoas praticarem sua fé, mas a maneira
como vários políticos e fundamentalistas distorceram esse direito. Se
questionar a função pública da religião leva necessariamente ao
secularismo, então isso poderia incentivar a promoção de outra abordagem
para a democracia, especialmente em sociedades nas quais várias
religiões existem lado a lado.
As minorias já sabem que não podem ser excluídas
A democracia implica representação e decisões baseadas nas opiniões
da maioria. Mas o que constitui uma maioria? Se é simplesmente uma
questão de número de votos nas eleições, isso abre caminho para fraudes
eleitorais ou para a mobilização de apoio da massa por ideologias que
parecem abraçar uma variedade de causas, mas que, na realidade, não são
mais do que um mecanismo para atrair e controlar um grande número de
pessoas.
Penso aqui sobre o tipo de populismo reacionário baseado em raça ou
religião que repetidamente causou tensões e violência em muitas partes
do mundo. Nos interesses de uma verdadeira democracia, valeria a pena
considerar como tais movimentos podem ser impedidos de impor sua
definição de governo da maioria, especialmente quando as comunidades
religiosas são exploradas politicamente, como parte de uma agenda
supranacional oculta.
O moderno Estado-nação também enfrenta o problema de acomodar as
culturas minoritárias, as quais estão cada vez mais conscientes de que
não podem ser excluídas da maioria democrática. Esse problema poderá se
tornar especialmente agudo nos países industrializados, onde grupos
nitidamente diferentes têm sido reunidos à força por meio de conexões
coloniais passadas e necessidades econômicas presentes, e onde uma
maioria numérica é, por vezes, reduzida à condição de uma minoria
política. Nas ex-colônias, onde tais conflitos também são conhecidos, os
grupos divergentes pelo menos compartilham normalmente alguma herança e
história comuns.
Se a maioria é simplesmente uma questão de número de votos nas
eleições, o processo abre caminho para fraudes eleitorais. Segundo
analistas políticos ocidentais, isso teria ocorrido nas últimas eleições
iranianas, nas quais o candidato governista Mahmud Ahmadinejad foi
reconduzido ao cargo.
A melhor maneira de entender a correlação entre cultura e democracia é
examinar a maneira pela qual os indivíduos ou grupos escolhem sua
identidade e percebem a diferença entre eles e os outros. Em parte, esse
é o resultado da socialização precoce. Também pode nascer de tensões e
conflitos, que aguçam a percepção das pessoas sobre sua identidade.
Por que, aliás, o Estado-nação deve insistir em uma única identidade?
Afinal, as pessoas têm identidades múltiplas. A esterilidade de uma
identidade única poderia ser substituída por uma multifacetada,
envolvendo padrões sociais e culturais mais complexos. A democracia
multifacetada também seria mais difícil de controlar politicamente.
A democracia representativa muitas vezes acaba com o poder removido e
distante do cidadão. Agora que o cinema, a televisão e a publicidade
entraram todos em ação, os supostos representantes do povo se veem
dirigindo-se a audiências que não podem sequer ver.
A verdadeira representatividade deve ser baseada em alguma referência
lastreada nos eleitores, que também devem manter o direito de cassar
seus representantes, se assim o desejarem. Esses direitos aparentemente
negativos podem fornecer um corretivo essencial para a tendência de os
representantes se transformarem em personalidades influentes.
O mercado livre tem suas qualidades, mas pode também prestar-se a outros tipos de demandas ditatoriais, como a do consumismo.
O colapso de algumas economias socialistas levou os povos desses
países a uma esperança desesperada de que o mercado livre iria
protegê-los do ressurgimento de regimes totalitários. Mas a experiência
de outros países mostra que o mercado não pode fazer isso. Infelizmente,
ele pode prestar-se igualmente bem a outros tipos de demandas
ditatoriais - do consumismo, da indústria de armamentos, das corporações
multinacionais e de outros interesses.
Tais demandas, que corroem a igualdade de oportunidades e a justiça
social, só podem ser combatidas por um sistema econômico justo e um
sistema jurídico que seja acessível a todos os cidadãos e impeça a
erosão dos direitos humanos e a anulação da dignidade humana.
No entanto, qualquer sistema pode ser prejudicado, maltratado ou
anulado se aqueles que o controlam não puder em ser contestados.
Instituições que supostamente agiriam como vigilantes muitas vezes
acabam por favorecer os abusos que deveriam evitar.
A articulação da discordância e do protesto
é imperativa para os sistemas democráticos. Mesmo nas sociedades
democráticas, quando se ensinam às crianças seus direitos e deveres,
raramente se dá atenção a seu direito de discordar. A conformidade é um
prêmio, e a discordância é desaprovada ou ignorada. O sujeito submisso,
em vez do indivíduo autônomo, é considerado o cidadão ideal.
Em defesa do caso do indivíduo autônomo, não estou defendendo uma
sociedade anárquica. Indivíduos autônomos não se estabelecem para
destruir a sociedade; eles estão preocupados em mudá-la por meio de
maneiras criativas. Eles não necessariamente fazem parte da estrutura do
poder em si, mas comentam sobre isso e, se for necessário, protestam
contra ações específicas tomadas pelos detentores do poder. Enquanto se
aceitar que há espaço para a autoridade moral, bem como a autoridade
política e social na gestão da sociedade, essas pessoas sempre terão um
lugar no processo democrático.
(Publicado originalmente na Revista Oásis)
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