É preciso conhecer o contencioso entre a Chechênia e a Rússia para entender os atentados de Boston, dos quais Moscou parece ter sido o único beneficiário
Sérgio Augusto
Para entender o que ocorreu na Maratona de Boston é
preciso conhecer a história da Chechênia e seu belicoso relacionamento
com a Rússia. Não, retrucaram outros observadores e analistas do
massacre: é preciso entender a América e seu complexo relacionamento com
os imigrantes, isso sim. Uma terceira e majoritária corrente de
palpiteiros cravou no que parecia mais óbvio, o fanatismo religioso
islâmico.
Tais especulações flutuavam ao léu quando o jornalista e russólogo
Oliver Bullough aproximou as chacinas de Columbine (executada por dois
jovens americanos no Colorado, em abril de 1999) e Beslan (executada por
terroristas chechenos numa escola da Ossétia do Norte, cinco anos
depois), as "duas variedades tóxicas da violência moderna" que, juntas,
com seu explosivo amálgama de desajuste social, desequilíbrio psíquico,
ressentimentos acumulados e lavagem cerebral, compõem, a seu ver, o
perfil do massacre do dia 15. Se não foi na mosca, passou muito perto.
Enquanto o New York Post, a CNN, a Fox News e o Wall Street Journal
acumulavam "barrigas", precipitando-se sobre falsos suspeitos e dando
trela a boatos palpitantes, de conluio com algumas redes sociais
impulsivamente irresponsáveis, e os familiares dos irmãos Tsarnaev
atribuíam a explosão das duas bombas a uma "armação do FBI" (mesma tecla
em que Glenn Beck, Alex Jones e outros espiroquetas da conspiratocracia
americana bateram sem parar durante a caçada a Dzhokhar Tsarnaev), o
editor da revista The New Yorker, David Remnick, deu um furo ao alcance
de qualquer internauta com um mínimo de neurônios: vasculhou o Twitter
de Dzhokhar.
Remnick leu os tuítes postados a partir de 14 de março do ano
passado, até o último, digitado em 16 de abril de 2013. No primeiro
tuíte, um desabafo sintomático: "Uma década de América, chega." Em 1º de
setembro, uma dúvida igualmente bandeirosa: "Gostaria de saber por que
vocês não conseguem acreditar que o 11/9 foi uma tramoia armada pelo
governo". Em 13 de março deste ano, um provérbio, possivelmente
checheno, que mais parece uma das Leis de Murphy e ganharia contorno
sinistramente metafórico 33 dias depois: "Jamais tente pegar um
tomatinho com garfo se estiver vestindo camisa branca, ele explode". Um
dia depois do atentado e 72 horas antes de ser capturado, o irmão caçula
de Tamerlan Tsarnaev tuitou: "Sou um cara desestressado".
Resumo do retrato tuitado: Dzhokhar não aguenta mais o país que o
acolheu e educou, acredita que o ataque às torres gêmeas foi "inside
job" , considera-se um sujeito tranquilo, que sabe como não comer
tomate, mas descobriu tarde demais que, no meio da multidão, um boné
branco chama mais a atenção que um boné preto, sendo ambos inúteis para
esconder o rosto do usuário se a viseira estiver virada para trás.
Ao que tudo por ora indica, Dzhokhar teve a cabeça feita pelo irmão,
sete anos mais velho e comprovadamente empolgado pelo fundamentalismo e
as vertentes mais violentas do jihadismo. Tamerlan deixou rastros de seu
entusiasmo por Feiz Muhammad, clérigo australiano linha duríssima (já
atacou até o "paganismo" de Harry Potter), e pela poderosa força militar
dos Bandeiras Negras afegãos. Um armênio conhecido como Misha,
residente em Massachusetts, foi apontado como seu mentor ideológico. Ao
seu cérebro só faltava um pavio.
Tamerlan queixou-se de não ter feito amizades nos Estados Unidos,
"por não entender os americanos". Caso típico de inadaptação social,
dissintonia comum aos islâmicos europeus de segunda geração envolvidos
em atentados à bomba em Madri, Londres e outras grandes cidades da
Europa. Incapazes de reintegrar-se à sociedade em que foram obrigados a
viver, esses filhos do exílio, emigrados na fase mais delicada da
pubescência, tendem a mitificar a terra natal da qual mal se lembram e
são presas fáceis para a doutrinação patrioteira e religiosa.
Tamerlan passou a primeira metade de 2012 visitando parentes no
Daguestão, onde ele e Dzhokhar passaram a infância e seus país voltaram a
viver. Entrou e saiu dos Estados Unidos sem problemas, pois o FBI, para
indignação da CIA, menosprezou as informações da polícia russa a seu
respeito. Apesar de nascidos no Quirguistão, trasladados para o
Daguestão e crescidos na América, os irmãos Tsarnaev têm sangue checheno
nas veias. Chamava-se Dzhokhar (Dudaiev) o maior herói da independência
da Chechênia.
E aí voltamos ao ponto inicial: para entender a tragédia dos
Tsarnaevs, precisamos conhecer o secular contencioso da Chechênia e
demais povos do Cáucaso com o império russo, desde os tempos de Pedro, o
Grande, até o reinado de Vladimir Putin. Stalin declarou o povo
checheno "traidor da União Soviética" e deportou-o para a Ásia Central e
as estepes do Casaquistão. Milhares de adultos e crianças morreram
durante o percurso, de fome e frio. Kruchev permitiu que eles
retornassem à terra natal, nos anos 1950.
Depois que a União Soviética veio abaixo, em 1991, rebeldes
nacionalistas, herdeiros espirituais do mítico Hadji Murad, inventado
por Tolstoi, travaram duas guerras de independência contra a Rússia. Em
dezembro de 1994, forças militares russas invadiram a Chechênia e lá
ficaram, com a desculpa de mantê-la em paz. Os Estados Unidos, então
presididos por Bill Clinton, nem sequer protestaram. Com Putin no poder,
as animosidades recrudesceram.
"Os chechenos não são rebeldes, são terroristas", proclama o
reducionismo interesseiro do presidente russo. Putin foi o primeiro
líder mundial a prestar solidariedade a Bush, no 11/9, e a oferecer seus
préstimos a Obama após o massacre em Boston. Primeiro, porque de
carnificina ele entende, como vítima e executor. Segundo, porque não
quer desperdiçar a chance de diminuir as pressões da Casa Branca em
favor dos direitos humanos na Rússia. Daí a suspeita de que o Kremlin
possa ter sido o único beneficiário dos atentados de 15 de abril.
Nenhum comentário:
Postar um comentário