pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: O Kremlin agradece, Sérgio Augusto
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segunda-feira, 29 de abril de 2013

O Kremlin agradece, Sérgio Augusto


É preciso conhecer o contencioso entre a Chechênia e a Rússia para entender os atentados de Boston, dos quais Moscou parece ter sido o único beneficiário


Sérgio Augusto

Para entender o que ocorreu na Maratona de Boston é preciso conhecer a história da Chechênia e seu belicoso relacionamento com a Rússia. Não, retrucaram outros observadores e analistas do massacre: é preciso entender a América e seu complexo relacionamento com os imigrantes, isso sim. Uma terceira e majoritária corrente de palpiteiros cravou no que parecia mais óbvio, o fanatismo religioso islâmico.
Tais especulações flutuavam ao léu quando o jornalista e russólogo Oliver Bullough aproximou as chacinas de Columbine (executada por dois jovens americanos no Colorado, em abril de 1999) e Beslan (executada por terroristas chechenos numa escola da Ossétia do Norte, cinco anos depois), as "duas variedades tóxicas da violência moderna" que, juntas, com seu explosivo amálgama de desajuste social, desequilíbrio psíquico, ressentimentos acumulados e lavagem cerebral, compõem, a seu ver, o perfil do massacre do dia 15. Se não foi na mosca, passou muito perto.
Enquanto o New York Post, a CNN, a Fox News e o Wall Street Journal acumulavam "barrigas", precipitando-se sobre falsos suspeitos e dando trela a boatos palpitantes, de conluio com algumas redes sociais impulsivamente irresponsáveis, e os familiares dos irmãos Tsarnaev atribuíam a explosão das duas bombas a uma "armação do FBI" (mesma tecla em que Glenn Beck, Alex Jones e outros espiroquetas da conspiratocracia americana bateram sem parar durante a caçada a Dzhokhar Tsarnaev), o editor da revista The New Yorker, David Remnick, deu um furo ao alcance de qualquer internauta com um mínimo de neurônios: vasculhou o Twitter de Dzhokhar.
Remnick leu os tuítes postados a partir de 14 de março do ano passado, até o último, digitado em 16 de abril de 2013. No primeiro tuíte, um desabafo sintomático: "Uma década de América, chega." Em 1º de setembro, uma dúvida igualmente bandeirosa: "Gostaria de saber por que vocês não conseguem acreditar que o 11/9 foi uma tramoia armada pelo governo". Em 13 de março deste ano, um provérbio, possivelmente checheno, que mais parece uma das Leis de Murphy e ganharia contorno sinistramente metafórico 33 dias depois: "Jamais tente pegar um tomatinho com garfo se estiver vestindo camisa branca, ele explode". Um dia depois do atentado e 72 horas antes de ser capturado, o irmão caçula de Tamerlan Tsarnaev tuitou: "Sou um cara desestressado".
Resumo do retrato tuitado: Dzhokhar não aguenta mais o país que o acolheu e educou, acredita que o ataque às torres gêmeas foi "inside job" , considera-se um sujeito tranquilo, que sabe como não comer tomate, mas descobriu tarde demais que, no meio da multidão, um boné branco chama mais a atenção que um boné preto, sendo ambos inúteis para esconder o rosto do usuário se a viseira estiver virada para trás.
Ao que tudo por ora indica, Dzhokhar teve a cabeça feita pelo irmão, sete anos mais velho e comprovadamente empolgado pelo fundamentalismo e as vertentes mais violentas do jihadismo. Tamerlan deixou rastros de seu entusiasmo por Feiz Muhammad, clérigo australiano linha duríssima (já atacou até o "paganismo" de Harry Potter), e pela poderosa força militar dos Bandeiras Negras afegãos. Um armênio conhecido como Misha, residente em Massachusetts, foi apontado como seu mentor ideológico. Ao seu cérebro só faltava um pavio.
Tamerlan queixou-se de não ter feito amizades nos Estados Unidos, "por não entender os americanos". Caso típico de inadaptação social, dissintonia comum aos islâmicos europeus de segunda geração envolvidos em atentados à bomba em Madri, Londres e outras grandes cidades da Europa. Incapazes de reintegrar-se à sociedade em que foram obrigados a viver, esses filhos do exílio, emigrados na fase mais delicada da pubescência, tendem a mitificar a terra natal da qual mal se lembram e são presas fáceis para a doutrinação patrioteira e religiosa.
Tamerlan passou a primeira metade de 2012 visitando parentes no Daguestão, onde ele e Dzhokhar passaram a infância e seus país voltaram a viver. Entrou e saiu dos Estados Unidos sem problemas, pois o FBI, para indignação da CIA, menosprezou as informações da polícia russa a seu respeito. Apesar de nascidos no Quirguistão, trasladados para o Daguestão e crescidos na América, os irmãos Tsarnaev têm sangue checheno nas veias. Chamava-se Dzhokhar (Dudaiev) o maior herói da independência da Chechênia.
E aí voltamos ao ponto inicial: para entender a tragédia dos Tsarnaevs, precisamos conhecer o secular contencioso da Chechênia e demais povos do Cáucaso com o império russo, desde os tempos de Pedro, o Grande, até o reinado de Vladimir Putin. Stalin declarou o povo checheno "traidor da União Soviética" e deportou-o para a Ásia Central e as estepes do Casaquistão. Milhares de adultos e crianças morreram durante o percurso, de fome e frio. Kruchev permitiu que eles retornassem à terra natal, nos anos 1950.
Depois que a União Soviética veio abaixo, em 1991, rebeldes nacionalistas, herdeiros espirituais do mítico Hadji Murad, inventado por Tolstoi, travaram duas guerras de independência contra a Rússia. Em dezembro de 1994, forças militares russas invadiram a Chechênia e lá ficaram, com a desculpa de mantê-la em paz. Os Estados Unidos, então presididos por Bill Clinton, nem sequer protestaram. Com Putin no poder, as animosidades recrudesceram.
"Os chechenos não são rebeldes, são terroristas", proclama o reducionismo interesseiro do presidente russo. Putin foi o primeiro líder mundial a prestar solidariedade a Bush, no 11/9, e a oferecer seus préstimos a Obama após o massacre em Boston. Primeiro, porque de carnificina ele entende, como vítima e executor. Segundo, porque não quer desperdiçar a chance de diminuir as pressões da Casa Branca em favor dos direitos humanos na Rússia. Daí a suspeita de que o Kremlin possa ter sido o único beneficiário dos atentados de 15 de abril.

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