Boatos e fuxicos
ROBERTO DAMATTA - O Estado de S.Paulo
Minha experiência de vida foi marcada por fuxicos e
boatos. Mais velho, aprendi que o escândalo e o fuxico são poderosos
instrumentos de controle social. Cada qual sintoniza a seu modo coisas a
serem evitadas ou desejos ocultos e reprimidos. Seu denominador comum,
porém, como acentuaram Gordon W. Allport e Leo Postman num livro
pioneiro, denominado The Psychology of Rumor (A psicologia do boato) de
1947, é uma notória e excepcional ausência de informação entre o poder
público e o cidadão.
Ao lado da praga dos fuxicos e boatos, há as cartas anônimas - essas
irmãs daquilo que circula pelo mundo sem autoria. Tal como acontece com
as anedotas. Estas, porém, têm um desfecho ao passo que os boatos e
fuxicos ficam em suspenso até serem apurados e a ambiguidade neles
contida, desfeita pela informação aberta ou o pedido de desculpas. No
nazismo e no comunismo, pessoas foram punidas por contarem anedotas
sobre Hitler, ou Lenin. O único modo seguro de controlar a circulação de
notícias é pela censura. Não é por acaso que projetos de censura estão
sempre no ar e há um grande jornal debaixo de censura.
Não é agradável ouvir más notícias ou mentiras clamorosas sem
autoria. Sobretudo quando essas informações são negativas e colocam em
causa o que tomamos como sério e o que deve ser protegido ou honrado
como um país em guerra, um povo amordaçado por um regime autoritário, ou
um programa de governo tomado como vital pelos administradores
públicos.
Eu fui envolvido em boatos, fuxicos e uma vez recebi uma
desconcertante carta anônima. Estava num restaurante e, atendendo a um
encontro marcado com o cretino que queria me envenenar, dele recebi a
carta escrita em letra de forma e com muitos erros crassos de português o
que me conduziu imediatamente à suspeita de que o mensageiro era o
autor da mensagem. Numa página e meia, a epístola destruía a reputação
de uma moça. Lembro-me da revolta que senti ao ler as calúnias arroladas
por um suposto ex-namorado da jovem o qual, com o intuito sagrado de
proteger a minha inocência, era obrigado a denunciar a vida sexual nada
casta da minha querida amiga.
Após verificar o tamanho da falsidade e aquilatar a maldade do
documento, descobrindo pela primeira vez na vida todo o mal que existe
no fundo das almas humanas, não hesitei. Olhei nos olhos do
autor-mensageiro e disse: "Você sabe o que a gente faz com isso?". Em
seguida, risquei um fósforo. A chama fez a carta infame virar uma tira
negra de cinzas. O olhar desapontado do mensageiro confirmou minhas
suspeitas. Saí do encontro confiante na minha coragem de acreditar em
mim mesmo.
Não sei por que você está falando em carta anônima quando não se
escrevem mais cartas, diria um leitor desavisado. Ao que eu responderia,
sem medo de errar: é justamente pelo fato de trocarmos mensagens
instantâneas em casa, pela internet, que uma carta anônima teria hoje um
peso ainda maior. Justo porque ela seria da mesma ordem de gravidade de
uma notificação legal. O ato solene e mentiroso ("alguém me passou isso
para você na rodoviária"...) quando da entrega do envelope fechado, já
assinala o peso da mensagem. Quem vai se dar ao trabalho de escrever e
postar uma carta, senão para comunicar algo grave?
Essa combinação de moralidade e de denúncia, ao lado do anonimato que
aponta a má-fé, são o denominador comum de boatos e fuxicos. Essas
novidades que surgem nas entrelinhas do "real", mas que se ancoram na
plausibilidade. A ausência de autores - o sumiço de quem fez ou mandou;
ou a atribuição a uma instituição ou a um inimigo satanizado, tipificam
essas mensagens sem donos, mas - dependendo da reação - com temíveis
consequências. A mensagem é transmitida como um "ouviu dizer" e nessa
antiautoria jaz a sua autoridade. Pois, pelas regras da comunicação
humana, quanto mais séria a mensagem, mais demandamos saber a sua
origem. Quem foi que disse? Quem escreveu? Quem deu a ordem?
O boato e o fuxico, como já revelava o conto Quem Conta Um Conto (de
1873!), de Machado de Assis, ficam no ar até que alguém resolva
descobrir quem os originou. E, na origem, podemos ser surpreendidos ao
descobrir que autor e o receptor do fuxico, do conto, da anedota ou do
boato, são a mesma pessoa!
A lição a ser discutida e aprendida é que o boato tem a mesma
natureza incontrolável da moda, do sucesso, do frouxo de riso e do gol.
Ele nos escapa e some como um relâmpago. Resta apenas o significado
fulgurante e este depende - como no caso em pauta do boato da suspensão
do Bolsa-Família e da doação de um bônus pelo Dia das Mães - de nossa
imaginação a qual, por seu turno, está ligada a esse contexto eleitoral
antecipado que tem tudo a ver com o caráter inseguro e controlador dos
governantes; o que nos remete, de volta, a aspectos estruturais de nossa
história e sociologia política que revela o infinito turbilhão humano
com seus planos racionais e seus desejos ocultos.
Quem conta um conto...
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