ESTÁ EM CURSO no Brasil um revival do sentimento mais primordial da
nossa nacionalidade: o ódio ao índio. Uma investida sem precedentes nos
últimos 40 anos sobre as terras indígenas se avizinha, agora que a
bancada ruralista passou com louvor e distinção no crucial teste de
forças do Código Florestal. Porém, se contra o código o latifúndio
investiu sozinho, contra os povos indígenas ele se volta em aliança com
os interesses minerários e o nacional-desenvolvimentismo estatal. Todas
essas forças se apressam em clamar pela “segurança nacional” e denunciar
os interesses das “ONGs estrangeiras”, mas não se acanham em fazer-se
acompanhar de traders do agronegócio, do capital minerário transnacional
e de investidores estrangeiros. Nada contra dinheiro de fora, veja bem; só peço coerência no discurso.
A guerra ao índio é assustadora por dois motivos: primeiro, ela
funciona mais ou menos na mesma lógica da Doutrina Bush, a do ataque
preventivo. Ora, cento e tantas etnias detêm 13% do território
amazônico, portanto, estão quase por default ocupando terras que são ou
serão de interesse da agropecuária, da mineração e da expansão do nosso
parque hidrelétrico (consta que o setor elétrico tem uma proposta em
fermentação de criar “reservas de potenciais hídricos”, uma espécie de
contraponto às reservas indígenas). Cabe, portanto, fazer o que for
possível para garantir que os silvícolas não ampliem seus reclames
territoriais. Ou, para usar a buzzword, é preciso garantir a “segurança
jurídica”.
A segunda coisa que torna a guerra ao índio insidiosa é o fato de o
lado agressor usar o recurso mais comum em qualquer guerra: desumanizar
seu oponente. Já vimos isso antes aqui mesmo: na conquista, quando os
portugueses justificaram o extermínio dos tupinambás pelo fato de sua
língua não ter os fonemas f, l e r (“não têm Fé, nem Lei, nem Rei”); nas
querelas metafísicas sobre se os índios possuíam ou não alma, o que
justificaria moralmente sua escravidão (a Santa Madre Igreja em
determinado momento resolveu que tinham, passando a bola para os
africanos – infelizmente era tarde demais para os tupis da costa); e na
imagem sedimentada ate hoje na fronteira de “índio preguiçoso”, “índio
libidinoso”, “índio cachaceiro”.
Hoje, o racismo antiindígena se manifesta principal e
convenientemente na negação do direito do índio à terra. Tenho ouvido de
gente do “setor público” e do “setor produtivo” argumentos na seguinte
linha: “Mas índio só quer tênis Nike e caminhonete último tipo! Como
quer ser índio assim?” ou “Mas eles querem que construam casas de
alvenaria nas aldeias [como compensação por hidrelétricas]!” ou, o mais
canalha, que eu ouvi de gente do próprio Ibama em Mato Grosso uns anos
atrás: “Mas a Funai plotou esses isolados aí!”
Acho que foi a Eliane Brum que colocou, brilhantemente, que esse tipo
de argumento pressupõe uma linha sem gradações entre a pedra lascada e o
iPad. Como se os produtos do desenvolvimento capitalista só pudessem
ser entregues a nações indígenas em troca de sua indianidade – e de seu
território. Como se populações rurais vulneráveis não pudessem ter
acesso a carro,
televisão, computador, posto de saúde e escola E AO MESMO TEMPO
reservarem-se o direito de continuar sendo populações rurais. Mais do
que isso, manter sua língua, seus costumes e sua religião. Ninguém está
falando aqui de um idílio alencariano, do índio pelado e pintado de
verde vivendo “na mais perfeita harmonia com a natureza”. Mas daí não
decorre logicamente que a alternativa seja a assimilação e a
destituição. Facilita se pensarmos os índios como agricultures
familiares que calham de falar outras línguas.
Ah!, dirá Kátia Abreu, mas agricultor familiar não tem esse tantão de
terra que os índios têm! Em seu artigo na Folha no último sábado, a
senadora faz uma conta aparentemente indignada: 107,7 milhões de
hectares para 517 mil índios, o que sá 206 hectares por índio, mais ou
menos. Como não sei quantos hectares a senadora e seus filhos possuem,
vou usar como indexador a área de uma única fazenda do meu amigo senador
Blairo Maggi (PR-MT), que (vai soar estranho, mas é verdade) é uma
liderança ruralista moderna e bastante progressista. Nada pessoal,
senador. Mas uma única fazenda do empresário e parlamentar no nordeste
de Mato Grosso tem 80 MIL hectares. Usemos esse exemplo extremo para
criar um índice de latifúndio (chamemo-lo provisoriamente de
“Indimaggi”). Os caiapós, que são um grupo bem fornido de terras, ocupam
uma área equivalente à da Áustria entre Mato Grosso e Pará. Seu
território é dividido entre 8.000 almas, o que lhes dá um Indimaggi de
apenas 0,017. Ou seja, cada caiapó teria “para si”, se fosse um
fazendeiro, menos de dois centésimos do que Blairo Maggi possui em uma
única propriedade. Só para colocar as coisas em perspectiva.
Enfim, o assunto não se esgota aqui. Ao contrário, a guerra está
apenas começando: tudo indica que amanhã, quarta-feira, o STF julgará os
famosos embargos de declaração, ou seja, ações contrárias, à
homologação da terra indígena Raposa-Serra do Sol. Trata-se de um ponto
precioso à agenda ruralista, com garantia de barulho qualquer que seja o
resultado. Prometo encontrar tempo para voltar ao assunto em outro
post.
PS (02/11): Só para colocar as coisas mais em perspectiva ainda, os
206 hectares que nós assumiremos aqui serem a parte que cabe a cada
índio no latifúndio Brasil equivalem a menos de dois módulos fiscais,
considerando a medida máxima do módulo fiscal em municípios da Amazônia
(110 ha). Estendendo esse raciocínio distributivo ao absurdo, se cada
índio fosse um proprietário de terras, ele seria considerado um pequeno proprietário, não um latifundiário. Faria até jus às dispensas de reserva legal e recomposição de APP do Código Florestal.
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