Será lançado no próximo dia 13 o livro “10 anos de
governos pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma.” Em meio a duas
dezenas de textos analíticos, a obra traz uma entrevista de Lula. Ocupa
20 das 384 páginas. Foi concedida ao educador argentino Pablo Gentili e
ao sociólogo Emir Sader, organizador do livro, em 14 de fevereiro –nas
pegadas das condenações do mensalão.
Em vários pontos da conversa,
Lula fez algo muito parecido com uma autocrítica. A certa altura, disse
que “o PT cometeu os mesmos desvios que criticava” nos outros partidos.
Atribuiu o rebaixamento ético ao peso do dinheiro
nas eleições. Disse que seu partido precisa voltar a acreditar nos
“valores” que o inspiravam no passado, para “provar que é possível fazer
política com seriedade.”
De repente, Lula saiu-se com essa: “Você
pode fazer o jogo político, pode fazer aliança política, pode fazer
coalizão política, mas não precisa estabelecer uma relação promíscua
para fazer política. O PT precisa voltar urgentemente a ter isso como
uma tarefa dele e como exercício prático da democracia.”
O
Lula do livro destoa do Lula que, em nome dos arranjos de 2014,
aconselhou Dilma Rousseff a devolver à Esplanada representantes dos
esquemas partidários que haviam sido varridos na pseudofaxina de 2011.
Esse Lula que dá aulas de balcão não orna com o Lula da entrevista: “Às
vezes tenho a impressão que partido político é um negócio, quando, na verdade, deveria ser um item extremamente importante para a sociedade.”
Em
todo o livro, a expressão “mensalão” foi utilizada uma mísera vez.
Pingou dos lábios do próprio Lula. Ainda assim para insinuar que a mídia
e a oposição se portaram mal. “Tentaram usar o episódio do mensalão
para acabar com o PT e, obviamente, acabar com o meu governo.”
Nesse
ponto, Lula carregou na ironia para alfinetar FHC, recém-retirado do
armário pelo tucanato: “Na época, tinha gente que dizia: ‘O PT morreu, o
PT acabou.’ Passaram-se seis anos e quem acabou foram eles. O DEM nem
sei se existe mais. O PSDB está tentando ressuscitar o jovem Fernando
Henrique Cardoso porque não criou lideranças.”
Lula chamou de
“tropeços” os crimes em série que renderam no STF a condenação de 25
pessoas. “Tivemos tropeços, é lógico. Muitos tropeços. O ano de 2005 foi
muito complicado.” Contou que parou de acompanhar o noticiário nessa
época. “Se não tivéssemos cuidado, não iríamos discutir mais nada do
futuro, só aquilo que a imprensa queria que a gente discutisse.”
Numa passagem que beirou o sincericídio
Lula confessou que foi radicalmente contra a divulgação da célebre
“Carta ao pobo brasileiro” –aquele documento veiculado na campanha de
2002 em que assumiu compromissos como honrar contratos, combater a
inflação e conservar o equilíbrio fiscal. “Ela dizia coisas que eu não
queria falar, mas hoje reconheço que ela foi importante.” Vão abaixo
trechos da entrevista.
— Qual o balanço que o sr. faz dos anos de governo do PT e aliados?
Esses
anos, se não foram os melhores, fazem parte do melhor período que este
país viveu em muitos e muitos anos. Se formos analisar as carências que
ainda existem, as necessidades vitais de um povo na maioria das vezes
esquecido pelos governantes, vamos perceber que ainda falta muito a
fazer para garantir a esse povo a total conquista da cidadania. Mas, se
analisarmos o que foi feito, vamos perceber que outros países não
conseguiram, em 30 anos, fazer o que nós conseguimos fazer em dez anos.
— Qual foi o grande legado dos dez anos de seu governo?
[...]
As pessoas sabem que este país tem governo, que este país tem política,
que este país passou a ser tratado até às vezes como referência para
muitas coisas que foram decididas no mundo. Esse é um legado que vai
marcar esses dez anos. E eu tenho convicção de que, com a continuidade
da companheira Dilma no governo, isso vai ser definitivamente
consagrado. Parto do pressuposto de que chegaremos a 2016 como a quinta
economia do mundo.
— Quando começou o governo, o sr.
devia ter uma ideia do que ele seria. O que mudou daquela ideia inicial,
o que se realizou e o que não se realizou, e por quê?
Tínhamos
um programa e parecia que ele não estava andando. [...] Eu lembro que o
ministro Luiz Furlan, cada vez que tinha audiência, dizia: “Já estamos
no governo há tantos dias, faltam só tantos dias para acabar e nós
precisamos definir o que nós queremos que tenha acontecido no final do
mandato. Qual é a fotografia que nós queremos.” E eu falava: “Furlan, a
fotografia está sendo tirada” [...] Tem que ter paciência. Eu acho que
fui o presidente que mais pronunciou a palavra “paciência”. Senão você
fica louco.
— Quando o sr. perdeu a paciência?
[...]
No começo tinha muita ansiedade. “Será que nós vamos dar conta de fazer
isso? Será que vai ser possível?”, eu me perguntava. Tivemos tropeços, é
lógico. O ano de 2005 foi muito complicado. Quando saiu a denúncia (do
mensalão) foi uma situação muito delicada. Se não tivéssemos cuidado,
não iríamos discutir mais nada do futuro, só aquilo que a imprensa
queria que a gente discutisse. Um dia, eu cheguei em casa e disse:
“Marisa, a partir de hoje, se a gente quiser governar este país, a gente
não vai ver televisão, a gente não vai ver revista, a gente não vai ler
jornal.” Eu tinha uma equipe e criamos uma sala de situação, da qual
participavam Dilma, Ciro (Gomes), Gilberto (Carvalho) e Márcio (Thomaz
Bastos). E era muito engraçado: eu chegava ao Palácio e eles estavam
todos nervosos. E eu estava tranquilo e falava: “Vocês estão vendo?
Vocês leem jornal… Vocês estão nervosos por quê?”
— Por
que seu governo provocou tanta reação da elite e da mídia? A reação das
oposições aos governos do PT não é desproporcional, tendo em vista os
resultados que foram apresentados?
[...] Eles achavam que nós
não passaríamos de uma coisa pequenininha, bonita e radical. E nós não
nascemos para sermos bonitos, nem radicais. Nós nascemos para ganhar o
poder.
— Mas vocês nasceram radicais… O
PT era muito rígido, e foi essa rigidez que lhe permitiu chegar aonde
chegou. [...] Eu era um indesejado que chegou lá. Sabe aquele cara que é
convidado para uma festa, e o anfitrião nem tinha convidado direito?
[...] E depois, tentaram usar o episódio do mensalão para acabar com o
PT e, obviamente, acabar com o meu governo. Na época, tinha gente que
dizia: “O PT morreu, o PT acabou.” Passaram-se seis anos e quem acabou
foram eles. O DEM nem sei se existe mais. O PSDB está tentando
ressuscitar o jovem Fernando Henrique Cardoso porque não criou
lideranças.
— A negociação é a pré-condição para a solidez do governo?
[...]
Nós aprendemos a construir as alianças necessárias. Se não for assim, a
gente não governa (…). O meu medo é que se passe a menosprezar o
exercício da democracia e se comece a aplicar a ditadura de um partido
sobre os demais. Não gosto muito da palavra hegemonia, sabe. O exercício
da hegemonia na política é muito ruim. Mesmo quando você tem
numericamente a maioria, é importante que, humildemente, você exerça a
democracia. É isso que consolida as instituições de um país e foi isso
que eu exercitei durante o meu mandato, e que a Dilma está exercitando
agora com muita competência.
— Os tabus foram quebrados à direita e à esquerda? Como se sentia com isso? [...]
Foram oito anos que permitiram que a gente, ao concluir, pudesse dar de
presente ao Brasil a eleição da primeira mulher presidenta. Essa foi
outra coisa muito difícil de fazer. Eu sei o que aguentei de amigos
meus, amigos mesmo, não eram adversários, dizendo: “Lula, mas não dá.
Ela não tem experiência, ela não é do ramo. Lula, pelo amor de Deus.” E
eu: “Companheiros, é preciso surpreender a nação com uma novidade.”
O
Brasil mudou nesses dez anos.
— E o sr., também mudou?
[...]
Mudei porque eu aprendi muito, a vida me ensinou demais, mas continuo
com os mesmos ideais. Só tem sentido governar se você conseguir fazer
com que as pessoas mais necessitadas consigam evoluir de vida.
— E o PT mudou?
[...]
Hoje, ou nós fazemos uma reforma política e mudamos a lógica da
política, ou a política vai virar mais pervertida do que já foi em
qualquer outro momento. É preciso que as pessoas compreendam que não só a
gente deveria ter financiamento público de campanha, como deveria ser
crime inafiançável ter dinheiro privado nas campanhas; que você precisa
fazer o voto por lista, para que a briga se dê internamente no partido.
Você pode fazer um modelo misto – um voto pode ser para a lista, o outro
para o candidato. O que não dá é para continuar do jeito que está.
— Por quê?
Às
vezes tenho a impressão de que partido político é um negócio, quando,
na verdade, deveria ser um item extremamente importante para a
sociedade.
— O PT não mudou necessariamente para melhor?
O
PT mudou porque aprendeu a convivência democrática da diversidade; mas,
em muitos momentos, o PT cometeu os mesmos desvios que criticava como
coisas totalmente equivocadas nos outros partidos políticos. [...] Você
começa a ser questionado quando vira alternativa de poder. Então, o PT
precisa saber disso. O PT, quanto mais forte ele for, mais sério ele tem
que ser. Eu não quero ter nenhum preconceito contra ninguém, mas acho
que o PT precisa voltar a acreditar em valores que a gente acreditava e
que foram banalizados por conta da disputa eleitoral. É o tipo de legado
que a gente tem que deixar para nossos filhos, nossos netos. É provar
que é possível fazer política com seriedade. Você pode fazer o jogo
político, pode fazer aliança política, pode fazer coalizão política, mas
não precisa estabelecer uma relação promíscua para fazer política. O PT
precisa voltar urgentemente a ter isso como uma tarefa dele.
(Publicado originalmente no blog do Josias de Souza, Portal UOL)
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